terça-feira, 30 de maio de 2017

Tempo da fúria




  Passos não tem endereços certos, caminhos são escolhidos em cima da hora propícia, alguns hão de escolher o lado de lá da ponte, outros vão ficar deste lado, onde as águas são claras e límpidas e, ainda existem os que não escolherão caminho algum, penderam pra sempre entre o bem e o mal, sabendo que o mal ou o bem é uma questão de visão ou de perspectiva.
  Uns poucos, muito poucos, podem abrir um portal do tempo e ver o seu futuro provável e, talvez assim, podem mudar os passos que a vida lhe reservou.
  Fui criado pra ser católico, amar como Jesus amou e tal e coisa... mas a percepção, me deu o livre arbítrio, e vendo que a maioria dos pregadores da palavra se perdiam na vaidade mundana, entre a escravidão da religião e a devassidão, me tornei um cristão reservado, depois da primeira comunhão abri mão dessa condição e, se Maria substituiu a minha mãe, virou meu símbolo de fé, se não houvesse Maria, eu seria ateu.
  E, sempre houve uma Maria a endireitar o meu caminho ou virar o meu olhar na hora exata do perigo, todas as freiras da ordem que administrava a Casa da Infância tinham Maria no primeiro nome, os olhos castanhos de uma Maria me salvou da morte no baile do Pombal e, outra Maria seria decisiva na minha hora crucial.
  Quando deixamos a brincadeiras dos pavilhões e o futebol parou de mover nossas vidas, crescemos e nos juntamos todos no lar 22, a infância havia passado e viramos adultos de uma hora pra outra, veio o tempo de fúria, em bailes mostrávamos poder e conquistávamos territórios, o número maior servia pra aniquilar e amedrontar a quem se pusesse no caminho.
  Alguns de nós já andavam armados e já faziam suas vítimas, as noites de São Paulo passaram a oferecer perigo, saindo do Asa Branca, dois caras correram em minha direção e pararam, sacaram os revólveres e descarregaram-nos, surpreendido com a rapidez da ação, só me coube o tempo de fechar os olhos, os doze estampidos me ensurdeceram, quando abri os olhos, a multidão havia se espalhado e um corpo jazia na calçada da Rua Paes Leme, desse amigo eu sabia pouco, que morava no bairro do Campo Limpo e tinha 14 anos de idade, imaginei que houvesse uma mãe pra chorar a perda.
  Ainda que ele estivesse a menos de um palmo de distância de mim e, isso fosse um grande argumento pra eu sair dessa vida, me deixei ficar.
  A Sorte é um espírito que anda ao seu lado e te promete fidelidade eterna, o outro espírito chama-se Medo, ele não fala, por vezes, só sussurra.
  Ainda que os amigos fossem os mesmos da infância, muitos deles já não eram os mesmos, uma sombra havia tomado suas almas e tudo indicava que eu seguiria o mesmo caminho.
  Na festa da primavera do colégio Vidigal, tiveram a infeliz ideia de me convidar pra encenar uma peça, argumentei que não ficaria bem de príncipe, meu porte e a minha cor não combinavam com tal personagem, o argumento da turma era exatamente esse mesmo, apresentar um príncipe negro seria uma quebra de tabu, relutei o máximo que pude e, no fim aceitei.
  A princesa da peça era a Ana Maria Puopolo e, chamar a Aninha de princesa era a coisa mais natural do mundo, tal era a beleza da moça.
Sequer havia um beijo na cena, apenas um abraço rápido e a plateia delirou, os amigos do Educa apareceram por lá e puxavam o coro, o tio da moça estava lá e não gostou de nada daquilo, me fuzilava com os olhos.
  Quando terminou a peça, ficamos ali pelo pátio a conversar e o cara ainda a encarar, incomodado com essa situação, resolvi que iria tirar satisfação, desse no que desse.
  Antes que eu saísse do bolinho e caminhasse na direção do homem, um revólver foi posto no bolso da minha jaqueta, enfiei a mão no bolso e o segurei pela coronha sem tira-lo de lá.
  A Aninha e a mãe dela seguravam o homem, ele tentava vir na minha direção, notei que a Aninha começava a chorar.
  A arma pesava no bolso e meu dedo indicador já dormia no cão, só faltava o impulso pra partir, subitamente percebi que uma força me impedia de andar, naquele pátio lotado o tempo avançou e, eu vi o futuro.
  Como se eu não estivesse no meu corpo, vi as coisas de cima.
As pessoas corriam pra se proteger, o homem caído na escada de saída e o sangue a escorrer nos degraus, guardei a arma quente no bolso e desci a escada correndo, não tinha como não pisar na poça vermelha, ganhei a rua e corri em direção à Raposo Tavares, quanto mais eu me distanciava da escola, os gritos da Ana Maria se faziam mais altos.
Quando voltei pro presente, as duas já haviam arrastado o homem para a escada, sabia que a Aninha estava me defendendo, virei de frente para os amigos e entreguei a arma para o Viana.
  _Vai ficar por isso mesmo?
  _Vai...Talvez fosse até o certo a se fazer, mas tem um porém.
  _Qual é?
  _Eu jamais faria Maria chorar.

sábado, 27 de maio de 2017

A vingança



  Os mais espiritualizados costumam dizer que a vingança é nociva para a alma, mas como eu nunca tive vocação pra santo, prefiro a máxima popular, que reza, "a vingança é um prato que se saboreia frio”... gelado, de preferência.
  Na primeira geração do Dínamo, nos demos ao luxo de ficar 2 anos sem jogar em casa, vários desses jogos foram realizados em favelas, onde impera as leis locais, muitas vezes, apanha-se e, não se tem o direito do revide.
  Eu sempre disse, para o meu time:
  _"Casa deles, regra deles"
  No caso do Dínamo, nunca foi bom negócio revidar, havia sempre muita criança junto.
  A "seleção" disputou um festival, certa feita, na favela do São Remo (Jardim Rio Pequeno - SP), fomos com os 3 times, o feminino, o infantil e o amador...que era chamado de SELEÇÃO.
  Nos 2 primeiros jogos tudo bem, vencemos fácil e levamos os troféus, bem como manda o figurino.
  Na mesa, quando ainda apresentava a ficha do time amador, encostou do meu lado, um jogador e me perguntou:
  _. Trouxe a sacola???
  Um frio percorreu minha espinha, percebi que a partida não ia acabar bem e, como não fujo mesmo de briga, fiquei tranquilo.
  A partida foi de arrepiar, arbitro que só via o que convinha ao dono da casa, violência desproporcional, enfim, tudo que se cabe num bom processo criminal, quatro jogadores expulsos e, como havia sido prometido...goleada.
  O cretino da mesa, atendia pelo apelido de Piúta, no finzinho do segundo tempo, já que tinha o placar elástico a seu favor e a vantagem numérica em campo, resolveu tripudiar...tendo o gol livre à sua frente, sentou-se na bola.
  O Berruga, que vinha no embalo, chutou-lhe...tumulto, minha vontade primeira foi, subir o gás dele, os meninos do infantil e as meninas estavam, do meu lado, fui obrigado a pedir para o meu time ter calma.
  Encerrou-se o jogo, pegamos nossos troféus e fomos para a Avenida Rio Pequeno, esperar o ônibus do Nelcindo Diniz, para ir para casa.
  Anos se passaram, o Dínamo mais forte que nunca, e ...sempre a sombra do passado assombrando, eu nunca esqueci essa partida, ficou entalada como uma espinha de peixe.
  Pois é, como eu disse não sou uma pessoa muito espiritualizada, juro que respeito a paz, mas, eu gosto mesmo é de guerra.
  E qual não foi minha surpresa no terceiro Cingabol, quando foi anunciado um novo time da zona Oeste.
  Chamava-se Real Parque e, adivinha quem era o técnico???
  KKKKKKKKKKKKKK...o tal do Piúta.
  . Na reunião da Secretária de Esporte de São Paulo, passei por ele e ele não me reconheceu.
  . Ficou decidido que, o campeonato seria realizado no módulo pontos corridos, o time que chegasse na última partida com o maior número de ponto seria o campeão, medalhas, troféu e tudo que se tem direito.
  . Meu time já vinha no embalo e manteve a regularidade nas partidas, nos bastidores, haviam dois favoritos ao título...O Dínamo e o Real Parque.
  No dia da partida esperada, teve até participação especial, o Alisson, primo do Maciel Henrique, apareceu...só pra eu lembrar dos tempos do Butantã.
  Quando chegou a hora de entregar os documentos, dos jogadores na mesa, era habito que a Stephanie Victorino fizesse isso, eu pedi para ela me dar a honra e, quando o técnico adversário acabou de conferir os papeis, eu falei, em tom baixo:
  _Trouxe a sacola ???
  Naquele instante, os olhos dele arregalaram-se e...a ficha caiu.
  Para azar dele, meu time voava baixo, naquele dia os meninos estavam implacáveis.
  8 x 1, sem choro nem vela.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

De sonhos, bicicletas e papagaios.




Tem pouco tempo, com a ajuda do meu neto Miguel, abri uma fábrica de pipas.
Somos três sócios ao todo, eu, o Miguel e o nosso cachorro Nino, um poodle que acha que é Pitbull.
Devidamente aposentado, quis fazer uma coisa que me fazia feliz na infância e, por gosto, contei essa passagem pro meu neto.
Verão de 1979, já o velho Odilon havia ido embora e o seu João era o larista do 14, respirávamos uma liberdade que nunca havíamos podido antes, já se podia andar em qualquer lugar do Educa, sem ter medo do corcel II do Domingão.
É claro que o parceiro de sempre era o Viana, havíamos acabado de perder uma pipa, um cara, lá na colchoaria empinava uma enorme pipa preta e cortava todos os outros, um a um.
Isso representava guerra, já que, o Viana se considerava o dono dos ares, juntamos o pouco dinheiro e fomos comprar papel e linha.
Ao lado do mercado Paraná, a meio caminho do Guiomar, havia uma papelaria e estavam muito caro, fomos pela Asdrúbal, no sentido da Moreninha, onde havia outra papelaria, no caminho encontramos o Zanella montado numa bicicleta, ele parou e nos cumprimentou, desceu e nos mostrou à magrela, ficamos maravilhados com as modificações e a conservação. Disse-nos o preço e que o pai havia entrado nas prestações.
_Putz, ainda vou ter a minha. Disse o Viana.
O Zanella disse que ali perto, havia um senhor que estava vendendo uma usada, descemos a rua que sai do ponto final do Arpoador, seguindo as casa do BNH, quando chegamos, a vimos na garagem, uma linda Caloi barra forte com garupa e lanterna no guidom e foi paixão à primeira vista.
Batemos palma e o dono da casa veio nos atender, seu Hélio era um militar aposentado da Marinha e tinha história ótimas da caserna, fora precocemente aposentado por conta de sua postura socialista, agora o filho havia crescido e se alistado, não ia usar mais a bicicleta.
_São 90 cruzeiros, a exata metade do preço de uma nova na loja.
Disse isso e deve ter percebido as nossas caras de tristeza, quase não olhamos pra ele, todos os olhos estavam naquela maravilha de duas rodas. Despedimo-nos do amigo Zanella compramos as coisas na papelaria, no caminho de volta só falamos na Caloi.
Descendo a João de Lorenzo, o motorista do ônibus da Castro buzinou e abriu a porta traseira, subimos e era o China ao volante, seu filho estudava comigo no Attiê, agradecemos e ele nos deixou no portão do Educa, uma saudação ao seu Felipe na portaria e seguimos a estrada de paralelepípedos que leva ao SENAI e quebramos à esquerda, paramos na escada do teatro, a conversa foi toda sobre como levantar 90 cruzeiros, ideias e mais ideias vinham e eram descartadas e nada de concreto.
A certa altura da conversa, olhamos pro céu e uma pipa verde fazia manobras no céu, um menino sentado no barranco da piscina se divertia, soltava a linha, segurava e dava soquinhos, sua pipa desbicava no ar, ficamos admirando as evoluções.
Coisa duns 10 minutos ficamos ali em silêncio.
Por detrás da casa da dona Camila, veio de roldão, uma enorme pipa preta, em diagonal desceu a linha só tocou na linha do guri e cortou solto no ar a pipa do guri voou ao vento, a pipa preta foi buscá-lo, subiu e desceu, enrolou-se na rabiola e a recolheu.
O guri da piscina chorava, pasmos com a habilidade do vilão, falamos juntos:
_Cortou e aparou.
Corremos pro 14 e juramos inimizade eterna ao cara da colchoaria, antes era por vaidade, agora era por fazer um guri chorar.
No dia seguinte, afinamos o bambu e modelamos uma gigantesca pipa branca, desenhamos uma cruz vermelha dos templários e a colamos ao centro, batizamo-la com o nome de Justiceiro do ar.
Confeccionamos outro, de tamanho normal, que seria a isca, plano bolado por dois neguinhos desaforados...
Eu iria levantar o meu, assim que o vilão se mostrasse, o Viana vinha e zás, exibiríamos a pipa preta na trave do campão.
Quando terminamos, já se fazia noite e deixamos a vingança pro dia seguinte, nessa noite... Sonhamos com pipas e bicicletas.
Vingança não é uma coisa saudável pra uma criança, o bom do destino é que ele não escolhe a hora de fazer o mal virar bem, sem perceber, ele muda as coisas.
Costumávamos empinar as pipas na estrada do 12, mas desta feita iríamos mudar o local, queríamos que todos vissem a nossa vitória.
Peguei o pipa grande, sua envergadura cobria toda a extensão das minhas costas, do pescoço até a cintura, fomos em sentido à jaqueira, no meio do caminho o Viana se lembrou que tinha uns abacates para enrustir, fiquei na estrada e ele adentrou o bananal, sentei-me na caixa de alvenaria ao lado do milharal e fiquei a esperar.
Vindo do Cenáculo, uma Veraneio parou do meu lado, um homem que aparentava uns 30 anos abriu a janela e disse:
_Ô menino, quer vender essa pipa?
Fiquei em silêncio e fiz uma cara de que não havia entendido a isso se dá o nome de presença de espirito, na verdade, eu não fazia a menor ideia de quando devia fazer o preço. Ele repetiu a pergunta.
_Moço, eu acho que você não teria o dinheiro suficiente pra pagar essa pipa aqui...
O homem perdeu a paciência, saiu do carro e gritou:
_Comprei uma pipa na Vila Borges e paguei cinco cruzeiros.
_Conheço essas da Vila Borges, nem chegam aos pés dessa, pode observar.
Com a gigantesca pipa na mão, ele pareceu hipnotizado, era dos nossos, jogou a pipa dentro do carro, tirou a carteira e disse:
_Só dou 10.
_15?
_10.
_15.
_12.
_Fechado.
Quando o Viana saiu, teve um susto ao me ver de mão abanando, mostrei as notas e fomos pra papelaria, compramos o material pra confeccionar 30 pipas e um troquinho pra Tubaína, confeccionamos as pipas e vendemos na feira de quinta e na de domingo.
Apuramos 78 cruzeiros e ficamos com medo de alguém comprar antes de chegarmos à quantia exata, resolvemos entregar ao seu Hélio o que tínhamos e ele tirava a placa de venda, até a gente conseguir o resto.
Quando o homem viu o dinheiro em nossas mãos, ficou boquiaberto, contamos o que fizemos e fizemos a proposta.
_Então, vamos recapitular... eu fico com o dinheiro, guardo a bicicleta e quando me derem a quantia restante, levam a bicicleta?
_Isso mesmo.
Estava espantado com a nossa disponibilidade, coçou a cabeça e disse:
Guardem o dinheiro, venham amanhã, vou pensar e amanhã faço uma contra proposta, quando íamos embora, o vimos levar a bicicleta pra dentro.
No dia seguinte, lá estávamos nós e haviam duas bicicletas na garagem.
Impressionado com a nossa atitude, o homem não só não aceitou o nosso dinheiro, como deu uma bicicleta pra cada.
E, os guris que queria ser os reis dos ares, tiveram que se contentar em ser os reis da estrada.