domingo, 27 de agosto de 2017

Histórias


Sou um apaixonado por história, a matéria que, nesse tempo, se chamava de estudos sociais pois, englobava também a geografia, talvez isso explique o fato de eu tentar ser o mais fiel, no tocante aos locais nas narrativas, tudo se explica.
Mesmo nos pátios onde a leitura ainda não era conhecida, os três primeiros, o incentivo a ela era marcado e tudo levava o aluno a querer se alfabetizar bem rápido, por exemplo, no Nossa Senhora, havia uma salinha anexa ao dormitório que servia como área de exercícios e uma pequena biblioteca, nas paredes eram coladas ou grampeadas imagens de grandes vultos da história ou figuras notórias contemporâneas.
As freiras faziam questão de colocar cartazes nos lavatórios, com datas comemorativas e heróis, com figuras e textos e, mesmo sem estarem em tempos escolares, havia uma sala de aulas e um pátio com recreio no mesmo horário das outras turmas.
Essas pequenas atitudes, por parte das freiras, contribuíam para que grande parte dos alunos chegassem ao pré-primário, já dominando a leitura e a escrita.
Em 1970, houve uma campanha em âmbito nacional que, visava contar as aventuras do Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato, muito barulho feito e, no fim, uma descarada propaganda em massa do produto Biotônico Fontoura, junto um encarte da tal história em formado de HQ.
Essa questão educacional no tempo da ditadura era tão controversa que, quase ninguém percebeu que, naquele mesmo dia, foi dado aos meninos um outro livro, um encarte grosso chamado Histórias das Civilizações, ficou a impressão de que ele havia sobrado e, distribuiram junto, pois não tinha nada a ver com aquilo tudo, consumiram o produto que, segundo a publicidade, dava vigor e descartaram o livro.
Nesse ano eu estava no Nossa Senhora e guardei o livro embaixo do colchão, não sabia ler ainda, na hora do repouso, ficava tentando decifrar aquele amontoado de palavras.
E, pouco tempo depois eu estava lendo, no salão de jogos havia um monte de gibis, fui devorando tudo, enquanto os meninos brincavam.
A madre enfermeira me deu o primeiro livro, disse que o autor o havia feito de seus delírios na primeira guerra, o nome era O pequeno príncipe e, francesa que ela era, me deu outro, A vida de Napoleão.
A Benedita colecionava aqueles contos românticos desses bem bregas, enquanto ela passava as roupas, me deixava lê-los todos, acabei com a coleção e ela teve que comprar mais.
Uma tarde, no pátio, eu lia um desses enquanto todo mundo brincava, a madre Marcia disse que aquilo era literatura barata, mandou que eu subisse mais tarde à clausura e ela me daria coisa boa para ler.
E sendo ela uma gaúcha, coisa boa era Érico Veríssimo, até hoje tenho uma coleção desse autor.

Depois da prorrogação.


Quem pensou que eu não ia falar de futebol se enganou redondamente.
Eu disse, em postagem passada que, quando interno da Casa da Infância do Menino Jesus, não gostava de futebol e, isso é uma coisa que, quem me conheceu depois de 1976, não pode acreditar, pois na foto de 1979, eu apareço com o amigo Viana, defendendo o Grêmio, a seleção do Educandário Dom Duarte.
Eu não gostava de assistir transmissões de futebol e, quem assistia nos anos 1970, talvez concorde comigo, era um negócio triste de assistir, em preto e branco e de longe, quase não se podia ver a bola.
Outra coisa que não ajudava a prática do esporte era a quadra, aquele concreto grosso me dava medo, eu era daqueles guris que nunca se machucava, nunca teve uma fratura, nunca havia se cortado, então, eu não jogava bola nem por um decreto.
Meu asco com o futebol chega ao ponto de eu não me lembrar de nada da copa de 1970, quando eu estava no pátio do "Nossa Senhora" e me lembro de, neste mesmo ano, ter assistido a novela "Irmãos Coragem" e vou mais além, me lembro de ter visto a chegado do homem à lua, isso foi um ano antes.
Duas coisas aconteceram, num espaço de seis meses, que mudaram a minha trajetória, não fosse isso, o mundo jamais conheceria o professor Niltão, o carismático técnico do Dínamo.
Quem já estava marcado para sair da Casa da Infância e ir morar no Educa, fazia duas visitas à nova casa, uma nas férias escolares e uma na festa da Liga, isso servia para que o aluno tomasse um conhecimento do lugar que passaria a ser seu novo lar.
Na primeira visita, eu, o Josué Batata e o João Augusto descemos o barranco do campão do Educa e ficamos admirando o gramado, nos apaixonamos pelo espaço, sobretudo pela grama, entramos para pisar, nesse momento acontecia uma partida, pensei:
_Nossa, dificilmente uma pessoa se machuca por aqui.
Bom, nós estávamos perto do escanteio, dentro do campo, um guri loirinho que usava a camisa de goleiro, nos chamou de doidos, por estarmos dentro de campo, no meio do jogo.
Saímos, passamos por trás dele, a trave enorme estava forrada com a rede e, como ele ainda nos olhava com arrogância, bati na rede esticada e disse:
_. Quando eu vier morar aqui, vou enfiar uma bola nessa sua rede, só para você deixar de ser besta.
E, isso eu fiz mesmo, mas aí, já é outra história.
E mesmo tendo me encantado e feito tal promessa, na Casa da Infância eu continuei na mesma.
Havia uma professora de Educação Física e eu, desgraçadamente, não me lembro o nome dela, ela dava exercícios e corridas, depois disso, jogava a bola para os meninos e saia, eu pegava um livro e me sentava.
No último dia de aula, fizeram uma grande partida de despedida, São Paulo e Cruzeiro iam jogar, eu no time do Cruzeiro, o último reserva, se alguém quisesse sair eu entraria.
Todos os meninos, todas as moças, todas as freiras e todos os funcionários estavam na torcida, eu nunca havia visto a quadra tão lotada, gritaria sem fim e eu com o Conguinha desamarrado, doido para que aquilo tudo se acabasse, nossa técnica era a madre Brasil, ela pedia que eu prestasse atenção no jogo, a deles era a madre Marcia.
1 a 1 no placar, fim de jogo e prorrogação, em quadra, os dois melhores goleiros da Casa da Infância se antagonizam, o Sebastião e o Valdir Lustosa estavam pegando até pensamento, a cada defesa plástica do Valdir, o Sebastião fazia uma mais bonita e vice-versa.
A torcida aclama os goleiros, acaba que fica do jeito que eles queriam, disputa de penalidades.
Se durante a partida toda foi difícil fazer gol, em cobrança de pênaltis é que eles não iam deixar passar, o Valdir batias palmas, o Sebastião esticava os braços e dobrava as pernas, com a torcida dentro da quadra a gritar, os batedores amarelaram.
Bola no ângulo, eles pegavam, bicuda, eles pegavam, os jogadores se acabando e eles pegando, começaram a bater os reservas, tudo igual.
Vem os últimos reservas de cada time, o Vladimir foi à quadra pelo São Paulo, a madre Brasil me gritou:
_. Amarra o cadarço bebê.
Tive que empurrar o povo para me posicionar, o Vladimir era craque, sentou o dedo, o Valdir foi buscar e caiu naquele chão grosso.
Pronto, se eu convertesse meu time levava o troféu, o Adilson gritou que eu erraria dez vezes, se tentasse, o Sebastião chegou na frente da bola e disse que ia pular na direita, enquanto ele falava, avistei a Tânia atrás do gol, na rampa, fiz mesura para ela e ela sorriu com seus lábios grossos e os olhos castanhos mais lindos do mundo, apontei para a bola e para aquela deusa.
Ouvi o apito, levantei os dedos por dentro do Conga apertado e dei a bicuda, no canto que ele pediu e ele se esticou, a impressão que eu tive foi que ele pegou, porém, o povo gritou gol, por trás do Sebastião a bola jazia quieta, o peso de uns vinte guris me levou ao chão, me faltou o ar, só voltou quando a madre Brasil tirou todo mundo de cima.
Dez anos depois dessa, encontrei o Sebastião na praça das Bandeiras e ele me disse que, foi graças à ele, que eu havia ingressado no mundo da bola.

A amizade


Tenho visto, pela vida toda, todo tipo de amizade e ainda não achei uma que fosse tão forte quanto aquelas que começaram na infância.
Raramente, você verá um ex interno da Casa da Infância do Menino Jesus que esteja isolado, tem sempre um vizinho próximo ou eles dividem a mesma casa, essa amizade é tão forte que a vida os fez irmãos.
A esposa do Udiney me contou que até hoje, o marido dela e o Galito se tratam por irmãos e, isso começou na Casa da Infância, existem inúmeros casos assim, eu, por exemplo, quando resolvi sair de São Paulo, não vi sentido em deixar o Biriba sozinho, uma amizade desde os três anos, trouxe ele comigo, até porquê...para os meus filhos ele é o tio Biriba.
O esquema de separação dos pátios contribuiu para que as amizades se perpetuassem, haviam quatro cercas, cada duas turmas brincavam juntas, uma de idade menor e outra mais velha, o menino que subisse na tela do Nossa Senhora, podia ver no último pátio, os meninos mais velhos do São Pedro e São José, não havia contato entre os menores e os maiores, isso trazia a admiração.
Nesse pátio, onde ele estava, ele era o maior, no próximo ano ele passaria para o Anjo da Guarda e no pátio ele seria o menor, pois o dividiria com os mais velhos do João Batista...um ano maior e um ano menor.
Esse esquema evitava o Bwiling e quase não haviam brigas entre os internos, eu disse quase.
Estávamos agora no São José, do alto de nossos dez anos, sabemos que as outras turmas nos admiram, já que somos os mais fortes e inteligentes, para chegarmos até aqui, muita água rolou por baixo dessa ponte.
O Luís Carlos era um guri bem escuro, atarracado e endemoniado que nos acompanhava desde o Menino Jesus, gostava muito de futebol, mas nasceu com um defeito no pé direito, esse pé não tinha dedos e era reduzido, no formato de uma bola, por conta disso, era chamado de Luís Carlos Pezinho, usava uma bota ortopédica com proteção de aço, nada que o impedisse de praticar esportes, por isso ele jogava futebol e.…tome bica na canela.
O Fabiano também pertencia a essa turma desde o berçário, quando estávamos no Sagrado Coração, todos participamos do velório de sua avó, um guri branco com sardas no rosto e temperamento explosivo, o seu cabelo nunca descia, então o apelido era Fabiano Testão, esse não só gostava de futebol, era um craque na verdadeira acepção da palavra.
O que tinham em comum esses dois???
Tirando o amor pela bola, nada, absolutamente nada, qualquer situação era, para eles, um motivo para rivalidade e, isso vinha desde cedo, viviam a discutir por tudo e por nada, muitas vezes foram separados bem na hora fatal.
Eu disse que, eu e o Fernandinho éramos tão amigos que dividíamos os castigos, pois bem, esses dois eram tão inimigos que dividiam os castigos também, esse era o tempo de paz da turma.
Quanto mais se convivia com esses dois, mais se tinha a certeza de que um dia, mais cedo ou mais tarde, eles chegariam às vias de fato.
A vantagem de se ser grande é que, quando a Margarida resolveu passar uma tarde nos jardins do museu do Ipiranga, nem precisou pedir a ajuda das freiras, perguntou quem topava e, macaco come banana???sequer precisávamos dar as mãos para atravessar as ruas, nada como estar no cume, mestres do universo.
Não entramos no museu, o entorno é uma área enorme e, enquanto a moça se refastelou num banco, ficamos brincando relativamente perto, afinal, nada de mais poderia nos acontecer.
Brincamos um pouco na grama e resolvemos subir à parte superior, escadas eram um incômodo para o Luís Carlos, mas, se alguém fizesse menção de ajudá-lo, ele se ofendia.
Vencemos a escada e ficamos a esperar, no corrimão largo haviam uns guris da região, uns cinco ou seis, o levantar e pisar da bota do Luís Carlos produzia um som metálico, esses meninos passaram a reproduzir esse som, em tom de gozação.
O Luís Carlos não levava desaforo e agarrou um deles pelo pescoço, rolaram a escada e se esmurravam, os outros meninos desceram para ajudar o amigo.
O tempo fechou, o Fabiano veio como uma bala e se atracou, pulamos todos e, na minha opinião, uma das melhores brigas que participei na vida, uma beleza mesmo.
Os meninos da área se aproveitaram, quando a Margarida interveio, eles fugiram.
Um senhor, que presenciara tudo, explicou o que realmente houve, não fosse isso, a moça já ia pegando o chinelo, ele aconselhou que fôssemos embora rápido, pois aquela turma era muito maior que aquilo.
No caminho de volta, o Luís Carlos tinha um corte na boca e o Fabiano tinha um dos olhos inchado e, para espanto de todos, andavam abraçados.
Tudo bom, não fosse o assustador silêncio da Margarida, essa felicidade não ia durar, assim que a coisa fosse jogada no ventilador, iríamos ser punidos.
Quando chegamos na porta, na parte de fora da portaria, a Margarida sentenciou:
_. Ninguém fala nada, sobre coisa nenhuma, deixem comigo.
Na versão oficial, antes de sairmos, os dois quebraram o pau, um machucou o outro, a Margarida os corrigiu e fomos todos passear.
Quem ouviu isso, não deixou de dizer:
_Ufa, finalmente eles brigaram.
No dia seguinte, o Fabiano entrou na fila no lugar do Luís Carlos, esse não gostou e começaram outra discussão.
Descobrimos, então, que existem vários tipos de amizade.