segunda-feira, 1 de maio de 2017

Dois titãs


Tinha um apelido, aquele homem sereno, de riso sincero e que ajeitava os óculos quadrados antes de falar, porém nunca o usei, pra mim, desde criança era "Seu Sebastião", sempre o chamei assim.
Seus filhos, Hércules e Junior, estudavam comigo no grupo escolar do Educandário Dom Duarte, desde então acostumei a ver o seu sorriso, era um adulto que eu admirava, eu pensava:
_Esse tiozinho é gente fina, trabalha, cuida da família e, nos fins de semana, comanda um time de futebol... cara, quando eu crescer, vou ser assim.
E, se isso não fosse suficiente, tinha como esposa, o anjo do bairro... mas, deixarei a dona Avanir pra outra hora.
Eu ainda era guri e já se sabia do Peñarol, o time auri-negro que o seu Sebastião comandava, cresci nessa pegada e, na minha curta carreira de atleta, joguei nesse time.
Sempre que encontrava com ele, em época da fúria adolescente, me parava, ajeitava os óculos à cara e me passava um sermão, estando eu aprontando ou não, depois abria um largo sorriso, batia em meu ombro, e eu respeitava isso.
Nunca tive paciência pra ser comandado e só o comando combinava com o meu amor ao futebol, assim que resolvi montar o Dínamo, fui ter com o mestre sobre a ideia, ele abriu o seu sorriso e disse:
_Se tem uma pessoa certa pra comandar os meninos da minha rua, essa pessoa está na minha frente.
Assim, com a benção do mestre, nasceu o outro time da Osvaldão.
Contra um adversário do Morumbi, o pobre uniforme do Dínamo faria feio e fui a ele pra alugar o do Peñarol, jogamos contra os Pequeninos do Jóquei portando preto e ouro, na hora de pagar, me exibiu o seu sorriso costumeiro e disse:
_Guarde o seu dinheiro, eu é que tenho que te pagar a honra de, no campo lotado do João XXIII, os meninos da minha rua, portando as cores do meu time.
E, se eu não corresse, ele faria ficar com o pagamento.
Na véspera de eu me mudar pra zona norte, parei as atividades do Dínamo e o Unidos do Morro me contratou provisoriamente, só o tempo que restava pra mudança de endereço, fizemos uns festivais e eu coloquei um padrão de jogo na equipe, ao lado da minha linda assistente Alessandra Zaffani, arrancamos um troféu do temível Havaí em plena COHAB 5, quebrando uma invencibilidade de 80 jogos.
Entrou o time no campeonato amador e o primeiro jogo seria contra o Peñarol, antes mesmo que eu soubesse disso, foi à minha casa o seu Sebastião, pra me contar e me desafiar, descemos ao bar do Klebão.
A última vez que havíamos feito isso foi nos anos 80, eu era gurizinho e o tempo havia conservado-lhe a mesma feição generosa, em respeito a essa memória, bati forte no balcão e gritei:
_Essa rodada é minha, o guri cresceu e vai derrubar o mestre.
Claro que essa declaração foi uma brasa na fogueira e foi longe a discussão.
O sol brilhava em seu resplendor, essa não era uma partida qualquer e ele queria assistir.
Antes mesmo das equipes saírem dos vestiários, já estávamos a postos, cada qual em seu lado do campo, o seu Sebastião tomou a iniciativa e se encaminhou para me cumprimentar, apertamos as mãos e dissemos juntos:
_Boa sorte.
Nesse instante, os times saíam dos vestiários, ao verem a cena, entraram em duas filas, e cumprimentavam a mim e a ele, os organizadores e algumas pessoas da torcida entraram na fila.
O Caetano, que vinha no fim da fila, nos abraçou e disse enternecido:
_Dois titãs
Em campo, a força do Peñarol sempre foi os filhos dele, com efeito, o Hércules e o Junior são lendas na várzea, armam desarmam e articulam, do meu lado havia os irmãos Nascimento... O Carlos Alberto Nascimento e o Tchesco Nascimento, esses são uns 10 anos mais jovens.
Jogo truncado, briga de cachorro grande, eles sufocando e nós nos defendendo, o sol castigava impiedoso, queria fazer parte do jogo também, empolgado com a superioridade que o time amarelo e preto imprime, ele grita de lá:
_Neném tem muito que aprender ainda.
Não respondo e, querendo passar um ar de fragilidade, abaixo a cabeça, termina o primeiro tempo e o sol continua querendo o seu espaço e eu corro pra tomar a garrafa de água gelada dos jogadores que estão em silêncio, perdíamos por um gol, peço pros atletas se sentarem enquanto passo as ordens pro segundo tempo.
Olho pro técnico adversário e ele está tranquilo, enquanto falo com os irmãos Nascimento, procuro parecer desesperado.
Ao passar por mim, o seu Sebastião pergunta:
_Tá aprontando né, moleque?
Eu me limito a sorrir, o mesmo sorriso do guri de 15 atrás, começa o jogo e ele não tira os olhos de mim, tentando adivinhar o meu pensamento, o sol é abrasador e o Peñarol se cansa, aparentemente o meu time também não se aguenta nas pernas.
A Alê grita pra mim:
_25 minutos.
Como um comandante que comanda um massacre, levanto a mão direita, os irmãos Nascimento acordam de seu sono simulado e ditam o ritmo do novo jogo, diante dos olhos estarrecidos do mestre e seus comandados, inicia-se um novo jogo e o sol faz o seu trabalho, a virada vem.
Findo o jogo, não comemorei, descemos juntos pra nossa rua em silêncio, o sol nos acompanha e forma na rua sombras iguais, não tenho qualquer pretensão de parecer superior à aquela lenda viva, com a maior calma do mundo diz:
_Se o discípulo não superar o mestre, o trabalho do mestre foi jogado fora.
As sombras são iguais e só agora percebo que meu sonho de criança havia se tornado realidade, forcei o olhar em direção ao céu e agradeci a Deus a honra de ter vivido essa história.