quarta-feira, 28 de junho de 2017

3 atos do teatro do Educandário Dom Duarte (parte 3)


   Essa terceira e derradeira foi vivida no ano de 1984, ano das "Diretas Já" e eu não sou mais interno do colégio, agora eu sou vizinho.
   Estamos em plena administração dos padres da congregação Dom Bosco, o Educa abre suas portas para a comunidade e redescobre a sua vocação social.
   Todos os remanescentes do meu tempo já foram embora, restando apenas o Claudinho do 16, o Neguinho, no entanto, o seu Felipe ainda é o porteiro e o Carlos Alberto (Zabé) vai buscar água na bica todos os fins de tarde.
   Bem nesse tempo, a quadra que se avizinha da piscina ganhou uma cobertura, a inauguração dela foi marcada por uma partida de vôlei, no derradeiro ponto, para testar a altura do telhado, mandei um "Jornada nas estrelas" e fechei o tai breack, vitória do time azul, sem choro nem vela.
   Envolvendo a comunidade, a administração fazia jogos e palestras, educando os poucos internos, esse projeto foi o embrião do que, mais tarde, levaria à criação do OZEM.
   Criaram uma olimpíada e a batizaram com o nome de "Faislandia", os times eram distintos por cores, o time azul era misto, comigo, o Zé Almir, o Viana, a Ilka (filha da professora Iris), a Tania, que morava na Eiras Garcia e a minha ainda namorada Ângela.
   Uma rivalidade saudável cresceu entre nós e o time vermelho, que era constituído de moradores vizinhos do Educa, entre outros, os dois filhos do seu Valter policial, faziam parte desse time.
   O resultado do vôlei serviu para empatar a competição, o futsal iria determinar o campeão e seria disputado dentro do teatro.
   Aquele prédio majestoso que formara profissionais da interpretação, que vira as risadas e o choro dos meninos no cinema e tremera nos ensaios da banda, ainda tinha cara de moderno, seu piso de madeira encerada fazia a bola cantar.
   Não era ruim o time deles, todo constituído de homens, mas, o nosso tinha três ex internos, o Zé ficou no gol, o Viana travava tudo e, de onde dava eu sentava o dedo, descobri que aquela parte de madeira, abaixo do palco, amortecia a bola.
   E, mais uma vez, o velho teatro me encheu de alegria.

3 atos do teatro do Educandário Dom Duarte (parte 2)


  O segundo ato acontece no ano de 1979, durante o apogeu da produção teatral do Educandário Dom Duarte e quero, através desta, trazer à memória do leitor (a), uma figura inesquecível, o Zezinho da cozinha.
   Outro funcionário que havia sido interno, dentre esses, o mais amado e odiado, acima de qualquer querência ou ódio, uma personalidade ímpar.
   Na minha memória, o Zezinho foi imortalizado por três cores:
   Branca...o cidadão era o braço direito do irmão Simão e usava um avental branco, quando se buscava a comida na cozinha central (pavilhão 23), se se reclamasse da demora da marmita, o sujeito se debruçava no balcão e dizia poucas e boas, no caso de insistência na reclamação, ele dizia palavrões e chamava para o pau.
   Preta...nos jogos do campeonato interno, ele usava um terno negro, sua diminuta estatura se agigantava, quando apitava os jogos, imitava o Romualdo, com direito às desmunhecadas e tudo.
   Azul...azul era a cor do rei na peça "Aquarela", papel que coube ao Zezinho.
   Não teve um curso de interpretação, tão pouco cursou uma universidade, era um raro ator e sua presença de palco ofuscava os profissionais.
   A situação não andava boa para ele, meses atrás, O Carlos Augusto havia arrebatado um prêmio, vivendo um Jesus negro, a última cena foi de uma grandiosidade tal que, ele foi crucificado aos olhos do público, os contrarregras também foram aclamados.
   O Luís Antônio, no teatro da Liga das Senhoras Católicas, quando ainda se localizava à rua Jaceguai, viveu o "Galo de Belém" arrebatou o público, a peça era um monólogo, o ator tinha que ficar, o tempo todo, enfiado numa fantasia de galo, havia na plateia, um crítico do Estadão, a chamada da matéria foi:
   "NASCE UMA ESTRELA"
   O teatro do Educandário Dom Duarte mostrava ao mundo sua capacidade e faltava a estrela do Zezinho se mostrar.
   Vivendo o papel do rei na peça "Aquarela", havia uma cena que o roteiro embarrigava, ele tinha que mostrar que era implacável, se aproveitando de o fato da metade da plateia não gostar dele, ele se dirige a eles e pergunta:
   _. Um mais um não é três???
   Os meninos na plateia se levantam e, numa só voz, gritam:
   _NÃO.
   O ator se vira para o palco e continua o diálogo:
   _. Não disse?? Um mais um é três.
   A plateia reconhece imediatamente o recado e o aplaude, interrompendo por cinco minutos a peça.
   Essa cena teve que ser reescrita, não havia nada disso no original.
   Esse rei deu ao Zezinho uma menção honrosa, concedida pelo teatro da USP.

3 atos do teatro do Educandário Dom Duarte.


   Esse prédio em estilo colonial guarda uma magnífica imponência de quem, parado, caminha com os sonhos de quem pisou em seu interior.
   Chorei, quando morreu o "Menino da porteira" e, tive cólicas ao rir do inesquecível Mazzaropi e sua espingarda de cano torto.
   _Pra quê Mazzaropi???
   _Pra pegar veado na curva.
   Quando descia a estrada do 14, meu lar, ele se avizinhava, crescia, conforme a caminhada e vinha para mais perto, pragmático que sempre fui, não seguia a estrada como todo mundo, fazia a volta nos buchinhos e ficava do lado dele, por vezes nem olhava e podia sentir a presença daquela colossal obra de arte, depois arrancava uma folha do jardim arredondado, punha no bolso e partia para a aventura de viver.
   Minha memória guarda muitas tardes, bem colado à coluna direita, folheando livros ou, só sentado na escada, ouvindo a passarinhada em seu canto.
   A minha relação com o teatro daria um livro, cada aventura, só selecionei três delas e, em tempos distintos.
   Em 1978, ainda fazendo parte do sexteto, trouxemos um enorme cacho de bananas e o escondemos naquela vala que ficava ao lado do teatro, servia para conter as águas do barranco e evitava o desmoronamento, na ausência das chuvas, virava esconderijo para os meninos.
   Enquanto dois tratavam de acomodar as frutas na vala, dois buscavam capim e folhas secas e os dois últimos ficavam na parte alta, "manjando cana", os cachos de bananas do 14 eram gigantes, um guri de 11 anos não poderia carregá-lo sem ajuda, a vegetação seca tinha duas utilidades, esconde e forçar o amadurecimento, essa manobra exigia vigilância, os chupins estavam por todos os lados e, qualquer movimento suspeito levaria à caça de outro esconderijo.
   Tudo pronto, agora era procurar uma brincadeira ou aventura, livres do estado de alerta, iniciamos a subida do barranco que ia dar na estrada do 15, quem sabe, a gente pudesse encontrar algum menino do 17 para rivalizar.
   Há meio barranco escalado, ouvi acordes de violão vindo às nossas costas, dentro do teatro, alguém dedilhava uma suave melodia, os outros meninos continuaram a subida e eu estaquei.
Ah, a música e eu, isso é uma parte que já cansei de escrever.
   Desci e não vi mais os amigos, a porta do fundo tinha um segredo, soltei uma parte das divisórias da porta sem fazer barulho, entrei no buraco e o fechei atrás de mim, fui esgueirando ao lado do palco e fiquei no escuro da plateia, de joelhos, para ninguém notar a minha presença.
Era um ensaio, o Luís Antônio do 14 tirava o som do violão, as filhas da dona Tereza do 22 faziam as vozes de acompanhamento, a primeira voz ficava à cargo do Jordão.
   ..."Vou voltar, sei que ainda vou voltar, para o meu lugar"...
   A voz das meninas (Rita e Cuca) era um misto de sofrimento e esplendor, o Luís Antônio era um artista completo, tocava a melodia do Tom Jobim com acordes hora de Chorinho e hora de fado e o Jordão...o que é que ainda eu posso dizer desse gigante???
   Presenciei essa maravilha sem poder me mostrar, ao fim da audição, eles se aplaudiram e cumprimentaram-se, detrás de mim vieram umas palmas entusiasmadas, o Zezinho da cozinha se levantou e gritou:
   _BRAVO.
   Correu ao palco e ficou com os amigos, do palco o Luís Antônio gritou para a plateia:
   _E aí moleque, gostou???
   Eu não respondi nada, a beleza tem o dom de me calar profundamente.