terça-feira, 15 de agosto de 2017

Um choque coletivo.


De vez em quando, os internos eram encarregados de ajudar os funcionários do colégio em suas funções, creio que isso lhes daria noções de responsabilidades para o futuro, então, alguns meninos eram mandados para ajudar na rouparia, na cozinha, na lavanderia e etc.
O Juventino era um, dos dois únicos homens deste ambiente predominantemente feminino, o outro era o seu Paulo motorista.
O Juventino era o herói da molecada, havia até uma musiquinha que falava da barriga dele, de vez em quando, ele se encrespava com a euforia dos meninos e, fingindo estar de mau humor, fazia careta e gritava o seu bordão:
_ô raça ruim.
O xingamento que deveria servir para calar os meninos, tinha o efeito contrário, ele dizia isso com o seu sotaque de baiano do interior, o resultado era gargalhada geral.
A madre Lodir era vietnamita e não falava nem bom dia em português, não sorria a madre, na maioria das vezes ela gritava, ainda que eu não tenha provas disso, já que não sei coisa nenhuma dessa língua, pela cara que ela fazia, parecia xingamento tudo aquilo.
No entanto, a madre Lodir cuidava do jardim com uma dedicação tão grande que chegava a comover, se lhe faltava o trato bom com as crianças, com as plantas, ela compensava, suas botas de sete léguas e o habito não combinavam bem.
O jardim ficava na mesma altura da quadra, o que separava os dois espaços era a rampa que saia da portaria e subia até o hall da cozinha, haviam duas arvores grandes, uma encostada no muro oposto à rampa e outra no meio, mais para esquerda do terreno todo, o resto eram plantas ornamentais ou flores mesmo.
No canto, quatro metros da direção da porta do saguão da portaria, havia uma gruta, com uma linda imagem de Maria ao centro e, se eu disser que sou mariano, vou poupar o leitor de ter que descrever o amor que eu nutria por essa imagem, ela sempre dormia sob uma luz azul.
Bom, nessa tarde, eu estava ajudando a madre Lodir e, para a minha sorte, as ordens dela eram seguidas de mímica, enquanto ela podava umas folhas, eu regava as flores rasteiras, a irmã saiu a procurar uma ferramenta, eu acho.
A certa altura, chegaram o Juventino e seus ajudantes, o Álvaro, o Adilson e o André, tomei o cuidado para não molhar a ninguém, quando passaram por mim e foram até a gruta, ao que parecia, alguns ratos haviam roído os fios que ligavam o bocal da lâmpada azul, o Juventino e os meninos procuravam o tal fio.
A fiação passava, dentro de um conduíte, por baixo da terra, quando a levantaram, puderam ver os fios roídos, sorriram então, o Juventino ordenou que eles se afastassem, enquanto ele ia achar a caixa de força e, ele não fazia menor ideia de onde ela poderia estar, seguiu ele à portaria e nada, talvez estivesse dentro do quartinho de ferramentas, quase em frente ao corredor da lavanderia.
Com a demora do Juventino, o Álvaro, que era muito atentado, resolveu que podia dar jeito e levantou os fios, eu estava a uns dez metros de distância e gritei:
_. Não mexe, pode ser que...
Não terminei a frase, o alemão estava grudado e se retorcendo, bateu o desespero e querendo ajudar o amigo, o Adilson foi em socorro e ficou grudado também, o André que, dos três era o mais besta, se grudou aos outros, sabendo que, como eu estava, teria o mesmo destino, gritei para o Juventino.
O Juventino veio para salvar a pátria, pulou no jardim e ficou também na corrente elétrica, quatro pessoas eletrocutadas e eu, molhado sem poder fazer nada, a única solução era a de gritar por socorro.
Como se fosse um raio, a madre Lodir apareceu com suas botas de sete léguas, armou-se de um cabo de vassoura e, com habilidades de uma ninja, deu no meio dos quatro, a pancada provocou uma explosão e os quatro foram parar em baixo da rampa.
Quando voltaram à razão, os quatro tiveram que ouvir da freira, sem entender uma palavra, que é muito perigoso, esse negócio de eletricidade, eu acho, pois, tudo isso foi dito na língua dela.

A Margarida.


A moça do São José, que já era madura, foi a primeira pessoa que me fez rever os conceitos, toda essa coisa de mocinhos e vilões, bem e mal, enfim...essa papagaiada toda de filosofia e, fazendo isso, tive que admitir que eu não era um guri tão bom assim, vou logo me desculpando disso e usando a desculpa mais esfarrapado do mundo..."eu era criança".
Bom, todo menino que chegava no ano que ia completar os dez anos, passava para a quarta série e saia do pátio do São Pedro para o São José.
Essa praxe era um ritual de crescimento e, como tal, provocava nos internos um certo medo, não pelo ritual em si, efetivamente, se passava das mãos da carinhosa Rúbia para as mãos da Margarida.
A mudança dava calafrios, já contei em postagem passada que, para fugir das chineladas da Cinira, eu e meu amigo Fernandinho, usávamos a tática de correr, bater na parede e voltar, cada qual para um canto, no fim das contas, a pobre se cansava e não acertava nenhuma pancada, ou seja, nádegas ilesas.
A Margarida era o gatilho mais rápido do Oeste, a cada chinelada, havia a garantia total de uma nádega atingida, se o leitor não me acredita, presta atenção nisso:
Num finzinho de tarde, começo de noite, assim que a janta foi servida, a moça foi levar aquele carrinho de ferro de volta à cozinha, nesses poucos minutos de sua ausência, deu-se início à um falatório entre os meninos, que virou discussão e acabou em briga, sabe como é briga né???metade de um lado e metade para um outro, o único que não foi para lado nenhum, foi o Xavier, aquele guri que tinha uma saúde debilitada.
A Margarida entrou no refeitório sem dizer um a, fechou a porta atrás de si, tirou do pé o chinelo que, graças a Deus não era de borracha e, com a habilidade de um pistoleiro do velho oeste, passou a distribuir chineladas, à torto e à direito, trinta meninos era o efetivo de cada pátio, em todos os vinte e nove, ela deu duas chineladas, uma para cada lado da bunda, o Xavier estava sentado e sentado ficou, no fim, ela tirou uma nesga de cabelo dos olhos, soltou o chinelo no chão e o calçou, sem qualquer sinal de que isso a tivesse cansado.
Ah, deixa eu me corrigir, a moça era muito melhor que qualquer pistoleiro...58 chineladas por minutos, que marca incrível.
Não era bela, a Margarida, já passava dos trinta e cinco e pintava os cabelos, as enormes unhas sempre num vermelho chamativo e batom em cor igual, sua voz era meio grossa, cabelos grandes amarrados sempre, suas calças apertadas ao corpo, ajustavam aos seus mais de um metro e oitenta.
Por mais que eu gostasse da Margarida e note que esse gostar, já era um sinal de submissão à força feminina, fui convidado a participar da força tarefa que se vingaria da moça.
Juntaram-se ao bando vingador o Vladimir e o Adilson, que eram os chefes, o Alaor, o Oscar, o Luís Carlos Pezinho, o Silvano, o Fabiano e esse seu criado aqui.
O plano era bem simples, um susto na moça nos vingaria de todo mal que ela nos tivesse impingido, ah...a moça se arrependeria do dia que havia nascido.
A Margarida, por esse tempo, não morava no colégio feito as outras moças, que tinham seus quartos no hall das moças, quando chegava, por volta das duas da tarde, entrava pelo portão da garagem, subindo da lavanderia, dois lances de escadas davam acesso ao hall da cozinha, nos postamos no primeiro lance dessa, das nossas posições uma longa linha de costura se estendia ao chão, na ponta havia uma meia grande e preta de seda, o piso estava devidamente encerado, quando ela abria a porta vidrada de correr e iniciou a caminhada pelo saguão, uma coisa enorme passou na sua frente, parecia uma cobra, não me lembro o que veio primeiro, o grito de horror ou o baque do corpo ao chão, em todo caso, a gangue ria em alto volume.
O problema de planos mirabolantes de criança de dez anos é que eles só têm a primeira parte e, eu gostaria de dizer que essa vingança lavou nossas almas...ah, eu queria mesmo, mas...
Assim que a Margarida se recuperou do susto, se levantou e partiu como um foguete, subimos alguns lances de escadas e ela atrás, paramos na ante sala da clausura, ali era um local de silêncio total, paramos e ficamos encurralados, a Margarida venceu os últimos degraus da escada e parou, pensamos mesmo que ela ia respeitar aquele lugar, em câmara lenta ela pôs o dedo indicador na boca, tirou o chinelo do pé e, numa precisão cirúrgica de dar inveja, deu as chineladas...lépt, lépt, lépt...sem fazer barulho.
Pegamos castigo e, mais tarde, nos deliciamos com o prazer de ver a Margarida mancando no pátio, por uns dias sentávamos de lado, as chineladas podem não ter feito barulho, mas, foram fortes.
O que mais me incomodava com relação à Margarida era o fato de, mesmo eu não gostar muito dela, ela me adorava.
Então, quando eu já estava no E.D.D, na primeira oportunidade de passeio, fui visitar a Casa da Infância do Menino Jesus, ao revê-la, senti uma saudade imensa, um abraço demorado e um beijo, numa das mais importantes pessoas da minha vida.