quarta-feira, 5 de julho de 2017

No caminho da escola II




  . Quando se reuniam, os internos do Educandário Dom Duarte, dificilmente se podia tirar proveito do conteúdo das conversas produzidas por eles, na grande maioria dos diálogos haviam piadas sobre os amigos, cantigas sobre a comida do irmão Simão, aventuras nos pavilhões e bravatas sobre futebol.
  E tendo, os internos um vocabulário próprio, com palavras que só faziam sentido para eles, qualquer coisa que tivesse duplo sentido era recebida com um sonoro Nóóó!... e vinha depois uma enorme gargalhada conjunta, o autor da mancada era vítima de chacotas, até que se achasse um fato diferente para se rir.
  Quem sabe se, o seu Valdemar não tivesse sido tão agressivo no dia da carne e, então, ele tivesse evitado os meses que sofreu na mão dos meninos do Educandário Dom Duarte, pois é sabido que, um apelido só pega, se o apelidado se nega a recebe-lo.
  Não que os meninos fossem galhofeiros por natureza, nesse caminho que os conduzia até a escola, raramente se via, algum deles que saísse da calçada e tinham, por habito, cumprimentar os adultos que moravam na avenida vizinha, pessoas como o seu Alfredo, que cuidava de uma horta do outro lado da avenida e passava por eles com um carrinho de mão sempre carregado de verduras, o seu Pascoal ou o seu Valter, que era policial, à essas pessoas, os meninos saudavam com entusiasmo de dar inveja à meninos de colégios de freiras.
  Mas, o caso do sapateiro acabou esfriando, talvez por conta da consideração que tinham pelo seus filhos Jorge e Verônica, que estudava com eles, ou talvez tenha sido porque, a partir de um tempo, ele não mais respondeu aos insultos dos meninos...sabe-se que, um dia esfriou o caso e a vida voltou ao normal.
  O caminho pela estrada velha de Cotia era longo, os meninos iam em bandos, uma turma aqui, outra adiante e outra mais atrás e, ainda que, alguns meninos nem se falassem, iam juntos, vivendo essa aventura.
  Num dia, quando o sereno mal se dissipava e já havia passado o campinho dos predinhos, ali seguia uns terrenos desocupados com mato alto, antes da última curva que seguia para o Attiê, os meninos tiveram uma visão que mudaria a monotonia do caminho.
  Do alto da calçada, puderam ver que, do lado do casebre, que ficava numa parte mais baixa, umas folhas de bananeira se mexiam, pararam, pensaram se tratar de algum bicho e passaram a fazer conjecturas, a turma da frente voltou, a turma de trás se juntou ao bando e as folhas, numa distância de uns vinte metros, se mexeram mais forte.
  Para espanto dos meninos, alguns já se armavam com pedras e paus, um homem se levanta da moita, as calças arriadas e, como ele estava de costa para pista, exibiu sua nádega muito branca para plateia que havia se formado.
  Depois do espanto e da especulação, havia menino que não acreditava naquilo, aquilo não podia estar acontecendo, alguns se sentaram na guia para poderem rir.
  Ora, se fossemos adultos, viraríamos as caras para o outro lado e seguiríamos nossos caminhos e, o caso seria brevemente esquecido...mas qual, a coisa tomou proporções gigantescas, os que viram, contaram para os que não viram e o assunto dominou, acima de todas as matérias que foram dadas na escola, naquele dia.
  Na saída, todos que não viram ficaram sabendo da casa que se tratava e estava vazia, pararam ali e alguém gritou:
  _Ô...BUNDA.
  No dia seguinte, o homem estava em casa, lá de cima os meninos começaram a gritar BUNDA, o homem abaixou-se e pegou umas pedras e as lançou contra eles, desviando das pedras, os meninos insistiram BUNDA e correram para escola.
  E, como eram meninos de fanfarra e sabiam marchar e cantar, na saída, passaram em frente à casa em passo de desfile, cantando juntos, em tom marcial:
_Tá gá dá gá dá BUNDA Tá gá dá gá dá BUNDA Tá gá dá gá dá BUNDA.
Irritado, o homem se arma com um porrete e corre atrás do bando.

No caminho da escola.



 
  Quando o grupo escolar do Educandário Dom Duarte foi fechado para reformas e os internos foram transferidos para o Attiê, esse era o ano de 1978, só foi trocado o local da baderna, para chegar na escola se fazia necessário uma boa caminhada.
  À princípio, todos seguiam a estrada da horta, beirando o lago do 24, se seguia uma estrada de barro que tinha do seu lado esquerdo a horta do Japonês e do direito uma plantação de mamonas, paralelamente à avenida Eiras Garcia, ao contrário da avenida, essa estrada tinha uma leve inclinação e os internos chegavam pelo fundo da escola.
  O colégio tinha uma grande área geográfica, seus pavilhões eram distribuídos de forma aleatória, em alguns caso, a distância de um pavilhão a outro não se fazia em menos de 40 minutos de caminhada.
  E então, meninos do 20 ficavam parados no grande Carvalho da encruzilhada, para esperar a turma do 11, nesse meio tempo, outras turmas se juntavam ao bando e partiam pela estrada, na hora da volta, o processo se repetia, ficavam esperando o grupo crescer do lado de fora da escola e iam de volta para os pavilhões, geralmente, fazendo guerra de mamonas ou cantando, na encruzilhada do Carvalho, cada turma seguia o seu caminho.
  À certa altura desse tempo, a Eiras Garcia foi pavimentada e a ordem nova era que todos tinham que ir para a escola por esse novo percurso, agora, o caminho tinha que ser pela portaria do seu Felipe e seguido pela calçada que beirava a avenida, e a espera agora se dava na frente da portaria, quando a turma estava grande, partiam todos para a escola nova.
  Mas, todos sabem que muito menino junto sempre dá o que não presta.
  O seu Valdemar era sapateiro e morava quase vizinho ao Educa, alguns meninos associaram os sapatos à carne e perguntou para o homem se ele vendia carne, o homem era bruto e respondeu à altura:
  _Carne é a puta que te pariu, seu filho da puta...
  A reação dos meninos foi imediata, muito riso e em seguida veio a galhofa, daquele momento em diante, os meninos passavam pela sapataria e gritavam:
  _"Carne." Até o homem aparecer, quando ele aparecia, gritavam em couro e corriam para o Educa.
  Já cansado de ser atormentado pelos guris, um dia armou-se de uma garrucha e ficou esperando, quando os meninos passaram, brandiu a arma no ar e mandou que eles gritassem, se tinham coragem.
  Ouve um silêncio, os meninos enfim tinham perdido, o seu Valdemar falou poucas e boas, os meninos ouviram em silêncio, silêncio coagido.
  Certo da vitória, o seu Valdemar entrou na venda, depôs a arma embaixo do balcão, a turma estava lá, parada com o sol em seus rostos.
  Com a sensação de quem havia vencido uma guerra, o homem jogou os cotovelos no balcão e olhou para o céu.
  Ao vê-lo, agora desarmado e com ar de paisagem, riram, gritaram "CARNE" e correram para a portaria.
  E, toda essa bagunça eu não participei, só fui testemunha, o seu Valdemar era o pai da minha grande amiga Verônica.