terça-feira, 16 de maio de 2017

O Pelezinho.




  Essa história é diferente das outras, é feito a vida e, a vida não é feita apenas de boas lembranças, fatos ruins são somente fatos, se contarmos só as alegrias, caímos no erro de omitir as verdades.
  No dia 2 de outubro de 1992, ocorreu o massacre do Carandiru, 111 mortos, segundo os dados oficiais, entre as vítimas estava o Wilson Roberto dos Santos, por nós conhecido como Pelezinho do lar 12.
  Não julgo ninguém, é prerrogativa de cada qual seguir o caminho que lhe convém, cada caminho leva à determinadas consequências, assim é a vida.
  O Pelezinho chegou ao Educandário Dom Duarte em 1977, mesmo ano que eu, vindo da FEBEM e, apesar de ele ter a mesma idade minha, era bem menor em estatura.
  O apelido, não era só pela aparência com o personagem do Maurício de Souza, a habilidade no campo, lhe conferia o merecimento de ser chamado de rei, e dos meninos de todos os pavilhões, do meu tempo, ele era o mais famoso, portar a camisa 10 do Grêmio era lhe fazer justiça.
  No campeonato interno de 1980, eu, o Viana e o Feliz nos reuníamos pra traçar as estratégias do próximo jogo, nossa função era destruir o meio campo adversário e o próximo jogo seria contra o 12.
  Sentados na caixa de alvenaria, ao lado da primavera, discutíamos sobre como parar o Pelezinho, éramos duros em campo, para não deixar o adversário jogar, era comum algumas jogadas mais violentas e discutíamos justamente isso... como parar o Pelezinho sem bater.
  Diferente dos outros adversários, o guri era nosso amigo e vizinho, por outro lado, se permitíssemos que ele jogasse solto, perderíamos o confronto.
  Passamos um bom tempo nessa conversa, sem que achássemos uma solução, pra falar a verdade, o Feliz nunca falava nada, eu e o Viana falávamos por nós e por ele.
  Acabou que não chegamos a lugar nenhum e encerramos a reunião, à noite a gente falaria sobre isso.
  Seguimos na direção do pomar, roubar mexericas como fazíamos quase todas as tardes, descemos pela horta do Japonês, antes, porém, uma nadadinha no lago.
  . Quando chegamos ao lago, já estava lá o pessoal do 12, ao nos ver cumprimentaram, à beira do lago havia umas arvores, os longos troncos das arvores serviam de trampolim, se o guri tivesse as manhas, poderia saltar do galho para o meio do lago e, lá estava o Pelezinho.
_Ó, o tripé de meio campo do 14. Disse isso com tom de ironia.
  Pulou na agua fazendo pose, mergulhou uns metros, subiu e com braçadas firmes, foi ter conosco.
  Ficamos ali conversando amenidades, sabendo que o jogo se aproximava, falamos de um tudo, menos de futebol, depois as duas turmas subiram pelo lado da mata, em busca das mexericas.
  A mesma história de sempre... dar nó nas mangas e na gola das camisas, vencer a vegetação da mata fechada, esgueirar-se no arame farpado, subir nas arvores, encher as camisas, desviar dos tiros de sal, correr dos cachorros, voltar pra casa e dividir o produto com os amigos.
  Voltamos pelo mesmo caminho, beirando a horta dava pra ver o campo do 14 e seguimos a estrada onde a majestosa araucária fazia uma sombra absoluta, nesse ponto os meninos do 12 se despediram, o Pelezinho ficou.
  Não desviou o assunto, com a camisa carregada de mexericas às costas disse:
  _Amanhã vou destruir vocês e não levem a mal.
  Diante de tal sinceridade, eu disse:
  _Neguinho, a gente estava discutindo um jeito de não picar a bota em você...
  A risada que ele deu foi estrondosa, beirava mesmo o desprezo:
  _Se eu fosse vocês, batia mesmo, por que eu vou deixá-los no chão, isso é uma promessa.
  Falou isso e ajeitou a camisa nas costas e, ainda rindo, foi-se.
  Ficamos ali, sorrindo, conforme ele se afastava de nós, nos mostrava no balançar do corpo um gingado de malandro e ria de nós.
  _Ó, que carinha cabuloso. Disse o Viana.
  Depois que o Pelezinho sumiu, o Feliz disse:
  _Amanhã vou bater nesse guri feito mala velha, pra tirar baratas.
  No jogo, fomos impecáveis, sem o recurso da violência, literalmente paramos o craque adversário e quando se anula o craque não dá outra, chocolate.
  Não falou o jogo todo, parecia mesmo resignado o Pelezinho, em qualquer lugar do campo que ele pudesse pegar a bola, lá estava o trio, se ele fintasse um, os outros lhe tomavam a bola, a cada roubada de bola, imitávamos o riso que ele dera na véspera.
  Quando o jogo já chegava ao final e a nossa vitória já se consolidava, o Feliz achou de sair brincando da defesa, passou o pé em cima da bola e, sem perceber que o dito cujo estava em cima dele, iniciou uma corrida pela esquerda, o Pelezinho emparelhou-se no lado oposto e tomou-lhe a bola, vendo isso, eu e o Viana corremos pra socorrer o Feliz, um de cada lado.
  Assim que teve a pose da bola, parou e ficou esperando o Feliz dar o bote, o Feliz foi com sede ao bote, muito rápido e sem espaço, o neguinho enfiou a bola no meio das pernas dele, eu vinha no embalo, travei a chapa e tomei o meu, passou por mim e ficou de cara com o goleiro Marcos, entrou na área e o Viana corria às suas costas, era só bater no gol, levantou a bola e tirou o corpo, no espaço que ele saiu o Viana passou lotado, aparou a bola com o pé esquerdo e completou a touca, com o mesmo pé ajeitou a bola, soltou o corpo no ar e deu um voleio.
  Eu, o Viana e o Feliz vimos àquela obra-prima deitados, ao invés de comemorar o gol, me deu a mão e, se não fosse isso, eu estaria lá no chão até hoje.
  No final do jogo, o Feliz argumentou:
  _Que adianta isso tudo? Nós ganhamos o jogo.
Muito senhor de si, o neguinho sentenciou:
  _. Não disse que ia ganhar o jogo, eu disse que ia deixar os três no chão.