A professora, a gente chamava de tia, a tia Maria tinha os cabelos brancos como algodão e media uns dois dedos a mais que nós, que tínhamos dez anos.
Apesar da idade avançada, era enérgica e comandava a quarta série com mão de ferro, toda sexta feira escolhia um texto, um poema, uma letra de música e tínhamos que tirar o sentido que havia ali.
Quando escolheu "À palo seco" de Belchior, expressou no rosto uma certa má vontade, a tia Maria era fã dos autores mais antigos e, o cearense era o top, dos tops de linha da época.
Mais do que um ídolo, Belchior era o meu filósofo de cabeceira, rezei para que não fosse chamado ou, se fosse, que não fosse no último verso.
A coisa funcionava assim:
Lia-se uma parte do texto e ela forçava a discussão, no fim ela dava o sentido exato que o autor pretendeu com a estrofe, uma dissecação do texto.
Nessa matéria, só havia um aluno que obtinha todas as notas máximas, um tal de Niltão, que em 1976 era um Niltinho, no máximo.
No final das contas, não adiantou rezar, a tia Maria leu a última estrofe e me perguntou:
_Nilton, o que o autor quer dizer com "Eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês".
_Tia, ele mandou um recado para quem não gosta dele e da juventude que ele representa.
_. Qual é o recado???
_. Que vão todos à merda.
Não vais precisar de esforço para adivinhar que a sala veio abaixo, as meninas se espantaram e os meninos riram a valer, gritaria generalizada na sala.
A tia Maria esperou a balbúrdia se acalmar, sentou-se em sua cadeira, apanhou uma caneta azul e uma vermelha, uma nota 10 e uma nota 0, respirou fundo e, se dirigindo à minha pessoa:
_. Isso mesmo, esse é o verdadeiro sentido, no entanto, isso poderia ser colocado sem palavras chulas, tenha a gentileza de se dirigir à sala da diretora.
