segunda-feira, 17 de abril de 2017

E, a vida segue seu rumo...


  Toda vida e todo destino segue o rumo que tem que seguir, alegrias e sofrimentos vem, conforme o merecimento de cada um.  Minha mãe, alguns anos atrás, pediu desculpas pelas coisas que aconteceram e me levaram a viver uma vida de órfão, sorri pra ela e disse:_Não tem o que perdoar, jamais abriria mão da vida intensa, das aventuras, dos aprendizados e dos amigos que conquistei.  E, não fiz média não, se eu vivesse uma vida comum, lá no Bexiga, tenho certeza que não teria metade das coisas que tenho pra contar, aprendi a olhar o comportamento humano e a ser tolerante com a vida e a natureza das pessoas, medir as consequências dos meus atos e a respeitar a opinião alheia...Bom, essa última eu ainda estou aprendendo.  Relegado ao meu papel secundário e sempre na posição de observador, vi a injustiça aflorar, vi milagres e lições que, só quem presta muita atenção vê e, nada disso eu poderia ver, senão na pele do órfão.  Sempre fui poupado pela sorte que, me virava os olhos nas horas do perigo, pude ver que, nessa vida não cabe espaço para “mocinhos e bandidos”, cada qual dá o seu melhor e a vida se desenrola, independente se alguém a está observando.  Minha vida no Educandário Dom Duarte se deu na passagem da infância pra adolescência e, convenhamos... esse é o tempo melhor da vida.  O Ovinho do 14, tinha o nome de Adilson, o apelido era devido ao formato da cabeça, em época de corte de cabelo obrigatório, o tampo da cabeça dele lembrava um ovo deitado.  Era daqueles guris hiperativos, vindos da FEBEM muito pequeno, tão pequeno que, nem fazia a mínima ideia de sua família, como todos nós tínhamos problemas nesse departamento, não costumávamos falar desse assunto, a melhor terapia era bater uma bolinha e esperar as coisas se ajeitarem.  É claro que isso era uma fuga do assunto, geralmente funcionava bem, mas em domingos de visita essa condição ficava insuportável e, depois do almoço, sumíamos do Educa.
  Na Rua Santa Barbara, o Ovinho tinha uma namorada e fugindo do fusquinha do irmão Domingos, íamos pra lá.
  Pra não ficar segurando vela, aproveitava pra visitar os amigos da escola e o Edson Pirata (ex-interno do 16) que já tinha mulher e duas filhas, quase de noite, voltávamos para o colégio.
Ambos tínhamos 11 anos, idade certa pro time dos pequenos, não me sentia pequeno e, não tendo vaga pra mim no time dos médios, me recusei a disputar o campeonato de 1978, torci pro meu pavilhão e ensinei o Ovinho a se posicionar como centro avante na área, ele terminou o campeonato com 47 gols, não parece muito, mas, em 12 jogos disputados é muita coisa.
  Assim crescem as crianças, alheias as condições e circunstância, o importante é se divertir.
  Se o seu mundo é limitado, sua capacidade de ser feliz não conhece limitações.
  Num belo dia, quando assávamos milho verde na brasa, bem perto do milharal, apareceu no lar 14 um senhor dizendo ser o pai do Ovinho, digo Adilson e, isso foi um susto.
  O homem contou uma história com passagens complicadas e circunstância triste, não que tenhamos entendido metade de tudo aquilo, mas ficamos felizes pelo amigo e, foi-se embora o amigo Adilson.
  Fui algumas vezes visitar a sua família, que possuía residência na Consolação e escritório na Paulista e podia se perceber que o novo Adilson se sentia um peixe fora d’água, tinha saudades de ser o Ovinho.
  Todo domingo de visita, saía do luxo de sua vida nova, comprava doces e visitava os irmãos que a vida lhe dera.

A gente dá o que tem.


  O seu Odilon e a dona Ana, é bem provável que tivessem tido uma passagem bem desgraçada, cada um deles, em suas infâncias.
  Isso justificaria os maus tratos à que submeteram os internos do lar 14, dois bichos, que resolveram constituir família e acharam um empregoo com casa e comida.
  Sua função era bem específica; cuidar de 45 menores, dar-lhes uma educação e protegê-los.
  Não que isso fosse um serviço fácil, mas, durante o tempo que o exerceram, deturparam tudo... espancavam, castigavam e os expunham-nos à escravidão infantil e, lucravam com isso, com a conivência da diretoria e da Liga das Senhoras Católicas.
  Analfabeto e coxo da perna esquerda carregava sempre um revólver à cinta, a esposa achava tudo isso normal.
  Quando explodiu na imprensa, a verdadeira condição à que os internos do Educandário Dom Duarte eram submetidos, a primeira cabeça que rolou, depois das dos irmãos, foi a do Odilon.
  A sensação de liberdade que nos alcançou nesse dia, deve ter sido igual à da assinatura da lei áurea, quando voltamos da escola, já havia se escafedido o nosso algoz.
  Respiramos um ar de liberdade que não conhecíamos e ficou, em seu lugar, o Luís Antônio, que era o interno mais velho, como nosso responsável.
  Luís Antônio, aliás, uma das almas mais iluminadas que eu já tive o prazer de conhecer.
  Nesse ponto, tem uma coisa que acontece com meninos e, que não cabe explicação... era ruim o Odilon? Ah, ele era bem pior que eu descrevi.
  Mas, para meninos que não tinham pai, era um pai ruim, mas era a única coisa que se aproximava da figura de um pai, pelo menos, para aqueles que não tinham um pai...que coisa doida.
  E então, contrariando tudo o que o bom senso chama de razoável, fomos, eu, o Viana e o Adilson (Ovinho) visitar o Odilon em sua nova residência.
  Foi morar na Vila Borges, bem perto da Foseco, nos recebeu bem o casal, ficamos a tarde toda e eu tive a chance de brincar, de novo, com a menina Márcia, a filha caçula deles, que tinha uns seis anos.
  Quando voltamos para o Educa, já nos paralelepípedos que ladeiam o campão e parte em direção ao Aprendizado, nós três tinham a companhia do arrependimento e o silêncio pesava.
  Não falei palavra nenhuma, o Viana disse:
  _Que merda a gente acabou de fazer? Esse casal tratava a gente feito bicho e a gente sai para visitar, como se fossem pessoas de bem.
  Quando o Viana ficava nervoso, uma veia aumentava e ficava visível em sua testa, permaneci em silêncio, sentia mesmo a vergonha do amigo.
  E, veio do Adilson, o amigo de menor inteligência entre todos os meus amigos:
  _. Eles não eram bons, é verdade, mas nós somos. 
  Nascemos assim e nem a longa convivência com pessoas ruins, nos há de tirar essa bondade, se é verdade que cada um dá o que tem, nós acabamos de dar a eles o que eles nunca nos deram.

O menino do piano.

O menino do piano.
Antes de me fixar no Butantã, morei no centro, no bairro oriental da Liberdade, ainda que fosse um quartinho e uma cozinha, que juntos, não chegavam a 5 metros quadrados, eu gostava de morar no centro da Paulicéia desvairada.
Na Rua Conselheiro Furtado, de frente com a boate coreana um portão de ferro fundido abria para um longo corredor, um casarão antigo, que o dono transformou em oito quartos, oito portas e oito janelas, no fundo, o banheiro servia a todos, bem como os dois tanques.
A vizinhança era constituída de migrantes, um mineiro dois alagoanos, um baiano e quatro pernambucanos, uma verdadeira colcha de retalhos, por ser o único paulistano, além do dono, todos os vizinhos gostavam de me expor seus costumes musicais e suas histórias, eu tinha 17 anos e absorvia tudo, com a curiosidade de um guri de seis anos.
Algumas noites de balada, eu não conseguia voltar para casa e me hospedava onde estava, quando apontava no portão, todos os vizinhos vinham me ver, eram tempos de perigo e todos me tinham como um irmão caçula, para alguns, eu era um filho.
Todos os dias, exatamente ás 18:00 horas, do terceiro andar do prédio ao lado, cuja frente ficava na Rua da Glória, vinham os mesmos sons.
Primeiro um bater agonizante de aparelhos metálicos contra o assoalho de madeira, depois o abrir da tampa do piano que, de velho rangia alto, em seguida o torturante estalar de dedos e, por fim, as mãos batiam nas teclas do piano, nervosos num primeiro momento e, se enchia o ar de música, uma mais bela que a outra.
Nesse tempo, que durava uma hora e meia exatamente, todos paravam seus afazeres e ouviam em silêncio, pessoas de gostos diversos eram reféns da música do menino que, por conta de uma paralisia infantil, andava, à custa de esforço, apoiado em próteses metálicas.
Não fazíamos ideia de como era a aparência do menino, mas, nos era uma lição, geralmente eu me deitava no colchão e cerrava os olhos, permitindo que a música me levasse por mundos imaginários, talvez, sem a exatidão comprovada da data, isso se deu em 1984.
Num belo sábado, com todo mundo no corredor, apreciando um malte, deu 18:00 horas e a música não veio, todos olhamos para janela do apartamento e as luzes estavam apagadas, tristes nos recolhemos, parecia que nossas vidas não estavam completas.
Eu trabalhava na Rua Lavapés, no horário de almoço fui ao prédio do menino e o porteiro me contou que ele estava doente e internado no Hospital Adventista, me dei conta que nunca o havia visto.
Na saída, comprei um ramo de flores, Nany, a florista filipina, me trouxe as últimas rosas do estoque e se desculpou... me fui ao hospital, menti que era maior de idade e era amigo da família, no meio da minha conversa com a recepcionista, uma senhora que vestia negro e tinha um olhar sofrido, acenou para ela.
Veio até mim e segurou meu braço, como a conduzir-me e, numa voz suave disse:
_Ele vai receber a todos, mas, tem muita gente, nunca pensei que meu filho tivesse tantos amigos assim.
Quando cheguei à sala de espera, tomei um susto.
Todos os amigos do corredor estavam lá, bem como todos os vizinhos dos quarteirões.