quarta-feira, 24 de maio de 2017

De sonhos, bicicletas e papagaios.




Tem pouco tempo, com a ajuda do meu neto Miguel, abri uma fábrica de pipas.
Somos três sócios ao todo, eu, o Miguel e o nosso cachorro Nino, um poodle que acha que é Pitbull.
Devidamente aposentado, quis fazer uma coisa que me fazia feliz na infância e, por gosto, contei essa passagem pro meu neto.
Verão de 1979, já o velho Odilon havia ido embora e o seu João era o larista do 14, respirávamos uma liberdade que nunca havíamos podido antes, já se podia andar em qualquer lugar do Educa, sem ter medo do corcel II do Domingão.
É claro que o parceiro de sempre era o Viana, havíamos acabado de perder uma pipa, um cara, lá na colchoaria empinava uma enorme pipa preta e cortava todos os outros, um a um.
Isso representava guerra, já que, o Viana se considerava o dono dos ares, juntamos o pouco dinheiro e fomos comprar papel e linha.
Ao lado do mercado Paraná, a meio caminho do Guiomar, havia uma papelaria e estavam muito caro, fomos pela Asdrúbal, no sentido da Moreninha, onde havia outra papelaria, no caminho encontramos o Zanella montado numa bicicleta, ele parou e nos cumprimentou, desceu e nos mostrou à magrela, ficamos maravilhados com as modificações e a conservação. Disse-nos o preço e que o pai havia entrado nas prestações.
_Putz, ainda vou ter a minha. Disse o Viana.
O Zanella disse que ali perto, havia um senhor que estava vendendo uma usada, descemos a rua que sai do ponto final do Arpoador, seguindo as casa do BNH, quando chegamos, a vimos na garagem, uma linda Caloi barra forte com garupa e lanterna no guidom e foi paixão à primeira vista.
Batemos palma e o dono da casa veio nos atender, seu Hélio era um militar aposentado da Marinha e tinha história ótimas da caserna, fora precocemente aposentado por conta de sua postura socialista, agora o filho havia crescido e se alistado, não ia usar mais a bicicleta.
_São 90 cruzeiros, a exata metade do preço de uma nova na loja.
Disse isso e deve ter percebido as nossas caras de tristeza, quase não olhamos pra ele, todos os olhos estavam naquela maravilha de duas rodas. Despedimo-nos do amigo Zanella compramos as coisas na papelaria, no caminho de volta só falamos na Caloi.
Descendo a João de Lorenzo, o motorista do ônibus da Castro buzinou e abriu a porta traseira, subimos e era o China ao volante, seu filho estudava comigo no Attiê, agradecemos e ele nos deixou no portão do Educa, uma saudação ao seu Felipe na portaria e seguimos a estrada de paralelepípedos que leva ao SENAI e quebramos à esquerda, paramos na escada do teatro, a conversa foi toda sobre como levantar 90 cruzeiros, ideias e mais ideias vinham e eram descartadas e nada de concreto.
A certa altura da conversa, olhamos pro céu e uma pipa verde fazia manobras no céu, um menino sentado no barranco da piscina se divertia, soltava a linha, segurava e dava soquinhos, sua pipa desbicava no ar, ficamos admirando as evoluções.
Coisa duns 10 minutos ficamos ali em silêncio.
Por detrás da casa da dona Camila, veio de roldão, uma enorme pipa preta, em diagonal desceu a linha só tocou na linha do guri e cortou solto no ar a pipa do guri voou ao vento, a pipa preta foi buscá-lo, subiu e desceu, enrolou-se na rabiola e a recolheu.
O guri da piscina chorava, pasmos com a habilidade do vilão, falamos juntos:
_Cortou e aparou.
Corremos pro 14 e juramos inimizade eterna ao cara da colchoaria, antes era por vaidade, agora era por fazer um guri chorar.
No dia seguinte, afinamos o bambu e modelamos uma gigantesca pipa branca, desenhamos uma cruz vermelha dos templários e a colamos ao centro, batizamo-la com o nome de Justiceiro do ar.
Confeccionamos outro, de tamanho normal, que seria a isca, plano bolado por dois neguinhos desaforados...
Eu iria levantar o meu, assim que o vilão se mostrasse, o Viana vinha e zás, exibiríamos a pipa preta na trave do campão.
Quando terminamos, já se fazia noite e deixamos a vingança pro dia seguinte, nessa noite... Sonhamos com pipas e bicicletas.
Vingança não é uma coisa saudável pra uma criança, o bom do destino é que ele não escolhe a hora de fazer o mal virar bem, sem perceber, ele muda as coisas.
Costumávamos empinar as pipas na estrada do 12, mas desta feita iríamos mudar o local, queríamos que todos vissem a nossa vitória.
Peguei o pipa grande, sua envergadura cobria toda a extensão das minhas costas, do pescoço até a cintura, fomos em sentido à jaqueira, no meio do caminho o Viana se lembrou que tinha uns abacates para enrustir, fiquei na estrada e ele adentrou o bananal, sentei-me na caixa de alvenaria ao lado do milharal e fiquei a esperar.
Vindo do Cenáculo, uma Veraneio parou do meu lado, um homem que aparentava uns 30 anos abriu a janela e disse:
_Ô menino, quer vender essa pipa?
Fiquei em silêncio e fiz uma cara de que não havia entendido a isso se dá o nome de presença de espirito, na verdade, eu não fazia a menor ideia de quando devia fazer o preço. Ele repetiu a pergunta.
_Moço, eu acho que você não teria o dinheiro suficiente pra pagar essa pipa aqui...
O homem perdeu a paciência, saiu do carro e gritou:
_Comprei uma pipa na Vila Borges e paguei cinco cruzeiros.
_Conheço essas da Vila Borges, nem chegam aos pés dessa, pode observar.
Com a gigantesca pipa na mão, ele pareceu hipnotizado, era dos nossos, jogou a pipa dentro do carro, tirou a carteira e disse:
_Só dou 10.
_15?
_10.
_15.
_12.
_Fechado.
Quando o Viana saiu, teve um susto ao me ver de mão abanando, mostrei as notas e fomos pra papelaria, compramos o material pra confeccionar 30 pipas e um troquinho pra Tubaína, confeccionamos as pipas e vendemos na feira de quinta e na de domingo.
Apuramos 78 cruzeiros e ficamos com medo de alguém comprar antes de chegarmos à quantia exata, resolvemos entregar ao seu Hélio o que tínhamos e ele tirava a placa de venda, até a gente conseguir o resto.
Quando o homem viu o dinheiro em nossas mãos, ficou boquiaberto, contamos o que fizemos e fizemos a proposta.
_Então, vamos recapitular... eu fico com o dinheiro, guardo a bicicleta e quando me derem a quantia restante, levam a bicicleta?
_Isso mesmo.
Estava espantado com a nossa disponibilidade, coçou a cabeça e disse:
Guardem o dinheiro, venham amanhã, vou pensar e amanhã faço uma contra proposta, quando íamos embora, o vimos levar a bicicleta pra dentro.
No dia seguinte, lá estávamos nós e haviam duas bicicletas na garagem.
Impressionado com a nossa atitude, o homem não só não aceitou o nosso dinheiro, como deu uma bicicleta pra cada.
E, os guris que queria ser os reis dos ares, tiveram que se contentar em ser os reis da estrada.