quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Futebol é coisa de homens?


Com a patroa a coisa não é diferente, tendo ela um marido técnico de futebol e dois filhos atletas, enquanto os homens assistem as partidas pela televisão, sempre tem alguma coisa para fazer na cozinha, suponho que seja assim em quase todos os lares.
E quando sai um gol, vem a pergunta clássica:
_Gol de quem?
Definitivamente, mulher não tem a mesma paixão, que temos nós, homens.
Um dos times da cidade ia disputar uma partida do campeonato baiano e resolvemos ir ao estádio prestigiar, perguntamos se ela queria nos acompanhar, só para desencargo de consciência e ela respondeu:
_Vamos lá, assistir um futebolzinho.
Tai uma frase clássica de mulher..."assistir um futebolzinho".
Supõe-se que uma mulher que vai à um estádio, acompanhada do marido e de dois filhos barbados, vai só para fazer figuração, isso, fomos todos então.
O estádio Armando de Oliveira tem capacidade para 3.500 pessoas e, para essa partida do Camaçariense, haviam, no máximo, umas 500.
Jogo morno e difícil de se assistir, mais conversávamos que assistíamos o jogo, quero dizer, nós homens não víamos o jogo, a madame não tirava os olhos do gramado.
Nos assustamos, quando ela gritou, olhando para o banco de reservas do time da casa:
_Que merda, hein?!?
A segunda palavra saiu com o R bem aberto, digno de uma paulista, filha de paranaense e, sendo todo mundo lá embaixo baiano, a comissão técnica e os reservas olharam para a arquibancada, à procura da autora da frase.
Para ser mesmo identificada, a madame bateu palmas e abriu os braços, quando percebeu que tinha a atenção de todos, torpedeou:
_Ó, tem mais de 40 minutos que estamos vendo esse jogo e esse time não conseguiu, até agora, uma troca simples de 3 passes, não armou uma jogada pelo meio e não fez uma jogada de linha de fundos, para assistir um jogo medíocre igual a esse, eu não preciso pagar ingresso.
Quando ela terminou de falar, o pessoal do banco continuou olhando, como quem vê e ouve uma coisa surreal.
Providencialmente, nos afastamos dela e, se alguém nos perguntasse, negaríamos de pés juntos, qualquer parentesco com aquela pessoa sem noção.

Só para não dizerem que não falei das flores...


  Olha, com esse golpe, digo, remanejamento de poder, quem saiu perdendo não foram só as mulheres, foi a própria evolução da humanidade...
  Calma, que me explico...
  Até bem pouco tempo, costumava-se dizer, quando a coisa estava russa:
  _A culpa é dos homens.
  Então, com as conquistas que, merecidamente, obtiveram as mulheres a coisa mudou, passou a se dizer:
  _A culpa é da Dilma.
  Pronto, pode-se dizer então que, houve uma evolução com relação ao que se entende por poder instituído, certo???
  Bom, na atual conjuntura, a mulher é modelo, papagaio de pirata e, do lar, foi uma queda bem significativa.
  _Mas, Niltão...você está de má vontade com a moça, ela é linda.
  _Claro que é linda a moça, no entanto, não fede nem cheira.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Ainda invicto



Ainda invicto
  . Todo esse tempo e nunca fui assaltado, tem gente que pensa que é mentira, pode ser sorte ou, então é a lua mesmo.
  Dia desses eu me encontrava no lugar e no dia mais fácil de ser assaltado em Camaçari.
  Em frente ao Correio, do outro lado da prefeitura municipal, era feriado e, se você quiser ser assaltado, esse é o lugar, se for feriado e era. então, prato cheio.
  Não que eu quisesse estar ali, estava com pressa e não queria entrar na rodoviária para seguir viagem para Salvador.
  Haviam no ponto, sete pessoas, todas elas com celulares no ouvido, uma moto passou e parou ali, poucos metro à frente, dois ocupantes nela, o da garupa desceu, puxou o revolver, que estava dentro da calça e anunciou o assalto, o único que teve o trabalho de tirar o celular do bolso fui eu, as outras pessoas já estavam com eles na mão e, só entregaram, eu fui o terceiro que estendeu o celular, o assaltante fez que não viu.
  Estiquei a mão e mostrei o meu celular:
_Meu irmão, não quero essa bosta não.
  Recolheu todos os sete e eu enfiei o meu no bolso, o assaltante subiu na garupa da moto e queimou o chão.
  Situação embaraçosa, todo mundo com cara de tacho e, por consideração, me ofereci para ligar para a polícia e todos concordaram.
_Não vai dar não, esqueci-me de carregar.

O doutor Sócrates

Ser Corintiano hoje em dia é fácil, quando eu era moleque, o Corinthians não era esse fenômeno todo e alternava entre a mediocridade e a raça, raça sempre foi o forte do meu clube.
Mesmo assombrando o mundo com a conquista de 1977, não melhorou muito.
Nessa época, eu era ajudante de pintura de dois inimigos, ambos tinham mais de 40 anos e mesmo tendo opiniões oposta em tudo, se davam bem.
O Sergio era branco, protestante e torcia para o São Paulo, era especialista em acabamento, o Claudio era negro, católico, torcia para o Palmeiras e podia pintar 3 casas numa tarde.
Eu fazia parte da equipe, era menor de idade, tinha 13 anos e, tinha que aguentar os dois, os únicos momentos em que eles concordavam entre si, era quando escrachavam o meu time, é claro que eu me defendia, mas havia passado 23 anos na fila, não havia muito o que falar.
Meu sofrimento acabou no dia que o doutor Sócrates fechou contrato com o Timão e, daí então, eu fiquei insuportável.
Em todas as segundas, depois de um clássico contra um dos times deles, eu vinha gritando, cobrando a aposta e a gozação durava até o próximo domingo.
Num belo domingo, quando eu chegava ao Morumbi, para assistir ao jogo contra o Santos, dei de cara com os dois na bilheteria, na fila da torcida do Corinthians...fiquei de boca aberta.
Ao me ver, os dois disseram juntos:
_Não enche o saco neguinho, viemos assistir ao show do Doutor.

domingo, 27 de agosto de 2017

Histórias


Sou um apaixonado por história, a matéria que, nesse tempo, se chamava de estudos sociais pois, englobava também a geografia, talvez isso explique o fato de eu tentar ser o mais fiel, no tocante aos locais nas narrativas, tudo se explica.
Mesmo nos pátios onde a leitura ainda não era conhecida, os três primeiros, o incentivo a ela era marcado e tudo levava o aluno a querer se alfabetizar bem rápido, por exemplo, no Nossa Senhora, havia uma salinha anexa ao dormitório que servia como área de exercícios e uma pequena biblioteca, nas paredes eram coladas ou grampeadas imagens de grandes vultos da história ou figuras notórias contemporâneas.
As freiras faziam questão de colocar cartazes nos lavatórios, com datas comemorativas e heróis, com figuras e textos e, mesmo sem estarem em tempos escolares, havia uma sala de aulas e um pátio com recreio no mesmo horário das outras turmas.
Essas pequenas atitudes, por parte das freiras, contribuíam para que grande parte dos alunos chegassem ao pré-primário, já dominando a leitura e a escrita.
Em 1970, houve uma campanha em âmbito nacional que, visava contar as aventuras do Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato, muito barulho feito e, no fim, uma descarada propaganda em massa do produto Biotônico Fontoura, junto um encarte da tal história em formado de HQ.
Essa questão educacional no tempo da ditadura era tão controversa que, quase ninguém percebeu que, naquele mesmo dia, foi dado aos meninos um outro livro, um encarte grosso chamado Histórias das Civilizações, ficou a impressão de que ele havia sobrado e, distribuiram junto, pois não tinha nada a ver com aquilo tudo, consumiram o produto que, segundo a publicidade, dava vigor e descartaram o livro.
Nesse ano eu estava no Nossa Senhora e guardei o livro embaixo do colchão, não sabia ler ainda, na hora do repouso, ficava tentando decifrar aquele amontoado de palavras.
E, pouco tempo depois eu estava lendo, no salão de jogos havia um monte de gibis, fui devorando tudo, enquanto os meninos brincavam.
A madre enfermeira me deu o primeiro livro, disse que o autor o havia feito de seus delírios na primeira guerra, o nome era O pequeno príncipe e, francesa que ela era, me deu outro, A vida de Napoleão.
A Benedita colecionava aqueles contos românticos desses bem bregas, enquanto ela passava as roupas, me deixava lê-los todos, acabei com a coleção e ela teve que comprar mais.
Uma tarde, no pátio, eu lia um desses enquanto todo mundo brincava, a madre Marcia disse que aquilo era literatura barata, mandou que eu subisse mais tarde à clausura e ela me daria coisa boa para ler.
E sendo ela uma gaúcha, coisa boa era Érico Veríssimo, até hoje tenho uma coleção desse autor.

Depois da prorrogação.


Quem pensou que eu não ia falar de futebol se enganou redondamente.
Eu disse, em postagem passada que, quando interno da Casa da Infância do Menino Jesus, não gostava de futebol e, isso é uma coisa que, quem me conheceu depois de 1976, não pode acreditar, pois na foto de 1979, eu apareço com o amigo Viana, defendendo o Grêmio, a seleção do Educandário Dom Duarte.
Eu não gostava de assistir transmissões de futebol e, quem assistia nos anos 1970, talvez concorde comigo, era um negócio triste de assistir, em preto e branco e de longe, quase não se podia ver a bola.
Outra coisa que não ajudava a prática do esporte era a quadra, aquele concreto grosso me dava medo, eu era daqueles guris que nunca se machucava, nunca teve uma fratura, nunca havia se cortado, então, eu não jogava bola nem por um decreto.
Meu asco com o futebol chega ao ponto de eu não me lembrar de nada da copa de 1970, quando eu estava no pátio do "Nossa Senhora" e me lembro de, neste mesmo ano, ter assistido a novela "Irmãos Coragem" e vou mais além, me lembro de ter visto a chegado do homem à lua, isso foi um ano antes.
Duas coisas aconteceram, num espaço de seis meses, que mudaram a minha trajetória, não fosse isso, o mundo jamais conheceria o professor Niltão, o carismático técnico do Dínamo.
Quem já estava marcado para sair da Casa da Infância e ir morar no Educa, fazia duas visitas à nova casa, uma nas férias escolares e uma na festa da Liga, isso servia para que o aluno tomasse um conhecimento do lugar que passaria a ser seu novo lar.
Na primeira visita, eu, o Josué Batata e o João Augusto descemos o barranco do campão do Educa e ficamos admirando o gramado, nos apaixonamos pelo espaço, sobretudo pela grama, entramos para pisar, nesse momento acontecia uma partida, pensei:
_Nossa, dificilmente uma pessoa se machuca por aqui.
Bom, nós estávamos perto do escanteio, dentro do campo, um guri loirinho que usava a camisa de goleiro, nos chamou de doidos, por estarmos dentro de campo, no meio do jogo.
Saímos, passamos por trás dele, a trave enorme estava forrada com a rede e, como ele ainda nos olhava com arrogância, bati na rede esticada e disse:
_. Quando eu vier morar aqui, vou enfiar uma bola nessa sua rede, só para você deixar de ser besta.
E, isso eu fiz mesmo, mas aí, já é outra história.
E mesmo tendo me encantado e feito tal promessa, na Casa da Infância eu continuei na mesma.
Havia uma professora de Educação Física e eu, desgraçadamente, não me lembro o nome dela, ela dava exercícios e corridas, depois disso, jogava a bola para os meninos e saia, eu pegava um livro e me sentava.
No último dia de aula, fizeram uma grande partida de despedida, São Paulo e Cruzeiro iam jogar, eu no time do Cruzeiro, o último reserva, se alguém quisesse sair eu entraria.
Todos os meninos, todas as moças, todas as freiras e todos os funcionários estavam na torcida, eu nunca havia visto a quadra tão lotada, gritaria sem fim e eu com o Conguinha desamarrado, doido para que aquilo tudo se acabasse, nossa técnica era a madre Brasil, ela pedia que eu prestasse atenção no jogo, a deles era a madre Marcia.
1 a 1 no placar, fim de jogo e prorrogação, em quadra, os dois melhores goleiros da Casa da Infância se antagonizam, o Sebastião e o Valdir Lustosa estavam pegando até pensamento, a cada defesa plástica do Valdir, o Sebastião fazia uma mais bonita e vice-versa.
A torcida aclama os goleiros, acaba que fica do jeito que eles queriam, disputa de penalidades.
Se durante a partida toda foi difícil fazer gol, em cobrança de pênaltis é que eles não iam deixar passar, o Valdir batias palmas, o Sebastião esticava os braços e dobrava as pernas, com a torcida dentro da quadra a gritar, os batedores amarelaram.
Bola no ângulo, eles pegavam, bicuda, eles pegavam, os jogadores se acabando e eles pegando, começaram a bater os reservas, tudo igual.
Vem os últimos reservas de cada time, o Vladimir foi à quadra pelo São Paulo, a madre Brasil me gritou:
_. Amarra o cadarço bebê.
Tive que empurrar o povo para me posicionar, o Vladimir era craque, sentou o dedo, o Valdir foi buscar e caiu naquele chão grosso.
Pronto, se eu convertesse meu time levava o troféu, o Adilson gritou que eu erraria dez vezes, se tentasse, o Sebastião chegou na frente da bola e disse que ia pular na direita, enquanto ele falava, avistei a Tânia atrás do gol, na rampa, fiz mesura para ela e ela sorriu com seus lábios grossos e os olhos castanhos mais lindos do mundo, apontei para a bola e para aquela deusa.
Ouvi o apito, levantei os dedos por dentro do Conga apertado e dei a bicuda, no canto que ele pediu e ele se esticou, a impressão que eu tive foi que ele pegou, porém, o povo gritou gol, por trás do Sebastião a bola jazia quieta, o peso de uns vinte guris me levou ao chão, me faltou o ar, só voltou quando a madre Brasil tirou todo mundo de cima.
Dez anos depois dessa, encontrei o Sebastião na praça das Bandeiras e ele me disse que, foi graças à ele, que eu havia ingressado no mundo da bola.

A amizade


Tenho visto, pela vida toda, todo tipo de amizade e ainda não achei uma que fosse tão forte quanto aquelas que começaram na infância.
Raramente, você verá um ex interno da Casa da Infância do Menino Jesus que esteja isolado, tem sempre um vizinho próximo ou eles dividem a mesma casa, essa amizade é tão forte que a vida os fez irmãos.
A esposa do Udiney me contou que até hoje, o marido dela e o Galito se tratam por irmãos e, isso começou na Casa da Infância, existem inúmeros casos assim, eu, por exemplo, quando resolvi sair de São Paulo, não vi sentido em deixar o Biriba sozinho, uma amizade desde os três anos, trouxe ele comigo, até porquê...para os meus filhos ele é o tio Biriba.
O esquema de separação dos pátios contribuiu para que as amizades se perpetuassem, haviam quatro cercas, cada duas turmas brincavam juntas, uma de idade menor e outra mais velha, o menino que subisse na tela do Nossa Senhora, podia ver no último pátio, os meninos mais velhos do São Pedro e São José, não havia contato entre os menores e os maiores, isso trazia a admiração.
Nesse pátio, onde ele estava, ele era o maior, no próximo ano ele passaria para o Anjo da Guarda e no pátio ele seria o menor, pois o dividiria com os mais velhos do João Batista...um ano maior e um ano menor.
Esse esquema evitava o Bwiling e quase não haviam brigas entre os internos, eu disse quase.
Estávamos agora no São José, do alto de nossos dez anos, sabemos que as outras turmas nos admiram, já que somos os mais fortes e inteligentes, para chegarmos até aqui, muita água rolou por baixo dessa ponte.
O Luís Carlos era um guri bem escuro, atarracado e endemoniado que nos acompanhava desde o Menino Jesus, gostava muito de futebol, mas nasceu com um defeito no pé direito, esse pé não tinha dedos e era reduzido, no formato de uma bola, por conta disso, era chamado de Luís Carlos Pezinho, usava uma bota ortopédica com proteção de aço, nada que o impedisse de praticar esportes, por isso ele jogava futebol e.…tome bica na canela.
O Fabiano também pertencia a essa turma desde o berçário, quando estávamos no Sagrado Coração, todos participamos do velório de sua avó, um guri branco com sardas no rosto e temperamento explosivo, o seu cabelo nunca descia, então o apelido era Fabiano Testão, esse não só gostava de futebol, era um craque na verdadeira acepção da palavra.
O que tinham em comum esses dois???
Tirando o amor pela bola, nada, absolutamente nada, qualquer situação era, para eles, um motivo para rivalidade e, isso vinha desde cedo, viviam a discutir por tudo e por nada, muitas vezes foram separados bem na hora fatal.
Eu disse que, eu e o Fernandinho éramos tão amigos que dividíamos os castigos, pois bem, esses dois eram tão inimigos que dividiam os castigos também, esse era o tempo de paz da turma.
Quanto mais se convivia com esses dois, mais se tinha a certeza de que um dia, mais cedo ou mais tarde, eles chegariam às vias de fato.
A vantagem de se ser grande é que, quando a Margarida resolveu passar uma tarde nos jardins do museu do Ipiranga, nem precisou pedir a ajuda das freiras, perguntou quem topava e, macaco come banana???sequer precisávamos dar as mãos para atravessar as ruas, nada como estar no cume, mestres do universo.
Não entramos no museu, o entorno é uma área enorme e, enquanto a moça se refastelou num banco, ficamos brincando relativamente perto, afinal, nada de mais poderia nos acontecer.
Brincamos um pouco na grama e resolvemos subir à parte superior, escadas eram um incômodo para o Luís Carlos, mas, se alguém fizesse menção de ajudá-lo, ele se ofendia.
Vencemos a escada e ficamos a esperar, no corrimão largo haviam uns guris da região, uns cinco ou seis, o levantar e pisar da bota do Luís Carlos produzia um som metálico, esses meninos passaram a reproduzir esse som, em tom de gozação.
O Luís Carlos não levava desaforo e agarrou um deles pelo pescoço, rolaram a escada e se esmurravam, os outros meninos desceram para ajudar o amigo.
O tempo fechou, o Fabiano veio como uma bala e se atracou, pulamos todos e, na minha opinião, uma das melhores brigas que participei na vida, uma beleza mesmo.
Os meninos da área se aproveitaram, quando a Margarida interveio, eles fugiram.
Um senhor, que presenciara tudo, explicou o que realmente houve, não fosse isso, a moça já ia pegando o chinelo, ele aconselhou que fôssemos embora rápido, pois aquela turma era muito maior que aquilo.
No caminho de volta, o Luís Carlos tinha um corte na boca e o Fabiano tinha um dos olhos inchado e, para espanto de todos, andavam abraçados.
Tudo bom, não fosse o assustador silêncio da Margarida, essa felicidade não ia durar, assim que a coisa fosse jogada no ventilador, iríamos ser punidos.
Quando chegamos na porta, na parte de fora da portaria, a Margarida sentenciou:
_. Ninguém fala nada, sobre coisa nenhuma, deixem comigo.
Na versão oficial, antes de sairmos, os dois quebraram o pau, um machucou o outro, a Margarida os corrigiu e fomos todos passear.
Quem ouviu isso, não deixou de dizer:
_Ufa, finalmente eles brigaram.
No dia seguinte, o Fabiano entrou na fila no lugar do Luís Carlos, esse não gostou e começaram outra discussão.
Descobrimos, então, que existem vários tipos de amizade.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O especialista


Quando fecharam a olaria do Educandário Dom Duarte, fez muita falta, o convívio que se tinha ali, guris de pavilhões distintos, juntos, num local de trabalho, cada momento era único e jamais serão esquecidos.
Na parte financeira, foi um baque também, repentinamente eu me senti pobre, quase à beira da miséria.
Meu pagamento era de 10 cruzeiros por semana, uma nota vermelha com a cara de Dom Pedro primeiro...com essa fortuna, que eu pegava na mão do seu Tinoco toda sexta feira, dava para comprar três pacotes de bolacha, um quilo de açúcar e um filão com mortadela, os primeiros produtos comprados no mercado Paraná e o último na mão do irmão José.
Antes da terra argilosa entrar na máquina, ser moída e compactada para virar uma forma retangular, ela era escavada do solo que ficava ali perto, aquela região baixa de lagos era rica em argila, o seu Paulo operava o trator, empurrava a terra até uma espécie de caixa de concreto que era protegida por uma cobertura de telhas.
Dentro dessa caixa trabalhavam o Osvaldo e o Turquinho, o primeiro tinha cerca de trinta anos, usava chapéu de feltro verde e roupas sociais quadriculadas, quando ria, levava a mão à boca sempre, esse gesto evitava que todos vissem que ele não possuía os quatro dentes frontais superiores, o segundo aparentava mais que cinquenta carnavais, usava chapéu de algodão já desbotado, tinha óculos fundo de garrafa e quando alguém o chamava de "véio", ele retrucava na mesma hora:
_Véio é o seu pai.
A função desses dois era, com a pá, jogar constantemente a terra sobre uma esteira, essa esteira levava tudo acima da boca da máquina, que ficava num plano mais baixo, quando caía nessa máquina, a terra era moída e caía numa outra esteira, já no formato de tijolo, essa máquina era comandada pelo seu Luiz, que usava chapéu de palha, muito branco, quando sorria ficava vermelho, se os dois lá de cima usavam botas, esse usava chinelos e vivia trocando o ferrinho que segurava as tiras, três personagens inesquecíveis que, se não existissem, eu inventaria, só para criar uma história bonita.
Porém, nem tudo é perfeito nessa vida e vem aí o vilão, ou a bruxa...sei lá.
O Marco Aurélio era o encarregado, sua odiosa função era manter os meninos na linha e, tinha autorização para usar de castigo, corporal, se preciso fosse.
E, apesar da maricona do ex interno, era muito bom o convívio entre os meninos e os funcionários.
Livrar a terra de algum detrito mais resistente era a função de algum menino que estivesse na esteira de cima, nesse dia não havia nenhum, alguma coisa grande passou e travou a máquina, o seu Luiz desligou a chave geral e passou a consertar, isso era normal e durava cerca de meia hora, sempre havia um guri que carregava uma bola, então... tome bobinho ou rebatida.
O seu Luiz achou o objeto que travou nos dentes da máquina, era um pedaço de osso, ao vê-lo nas mãos do maquinista, o Marco Aurélio gritou:
_. Isso é osso de gente, eu conheço bem.
Diante da incredulidade dos outros funcionários e o terror dos meninos, ele disse que havia feito um curso de não sei o quê, não sei aonde e, isso o qualificava para afirmar aquilo.
Com o osso na mão, o seu Luiz dizia que era osso de carneiro, lembrou que muitos anos passados, havia um criatório ali mesmo, naquela baixada.
Seguro de si, o encarregado boçal apressou-se em ligar para o irmão Domingo, apavorado com a notícia, o diretor ligou para a polícia e desceu o Domingão com seus dois metros, se apertando no Fusquinha azul, logo em seguida apareceu a polícia, não a polícia comum, aquela viatura preta e vermelha, veio um Jeep da polícia do exército, quatro periquitos com armas automáticas à mão:
_. Cadê o osso humano???
O seu Luiz o entregou ao mais velho deles, antes de segurar o osso, o homem já declarou:
_. Que bosta, isso é osso de carneiro.
Olhou mais detalhadamente, com ares de especialista e agastado gritou:
_. Que bosta, qual foi a besta que disse que isso era humano???
Todo mundo apontou para o Marco Aurélio e, ao invés de pedir desculpas, voltou a afirmar o impropério, o homem chegou bem perto dele, nossos olhos o acompanharam de perto.
_. Você é cientista, meu jovem???
Eu tive a impressão de que ele não tinha vontade de levantar a mão, mas, como todo mundo pedia mentalmente que ele fizesse isso, ele não resistiu e plantou a mão cheia no meio da fuça, depois do barulho e da queda, ele gritou:
_Da próxima vez, a gente volta e arranca um osso seu para a comparação.
Moral da história:
Só quem tem unhas grandes, sobe na parede.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Um tempo tenebroso.


Em 1975, o Brasil foi assolado por um surto de meningite, se no mundo todo, o vírus fora erradicado, no país progressivo que rasgava a Amazônia, prendia e matava inimigos políticos, a doença ganhou corpo, matou pessoas e tomou posse do país, virou epidemia.
Não, não se assuste com o discurso, essa visão veio bem depois, na época eu era apenas um guri que lia os romances da Benedita da rouparia e as revistas da portaria, as notícias alarmantes do rádio e da televisão pouco mudava o rigoroso cotidiano da Casa da Infância do Menino Jesus.
A única medida que podia ser tomada no combate ao vírus foi tomada e então, a dona Augusta foi chamada a defender a vida dos meninos internos.
A dona Augusta era uma senhora negra, dessas que lembrava a figura de descendentes de escravos, usava saias rodadas e um torço cobria os cabelos brancos, chinelos e uma meia grossa completava o figurino, dificilmente um guri que a tenha conhecido, não vá se lembrar da tia Anastácia do Sito do Pica Pau Amarelo ou da Bá, a ama que cuidava da Escrava Isaura.
A função da dona Augusta era consertar as roupas e, ela o fazia na mão mesmo, pouco se via a habilidosa costureira sentada na Singer do século XIX.
Com a ajuda de seus melhores ajudantes, o Hélio e o Sebastião, confeccionou bolsinhas de pano, cada qual levava duas pedrinhas de cânfora, amarradas num grosso cordão, era um colar nos pescoços dos meninos.
Participei dessa empreitada, não como ajudante, pois não tinha habilidade, porém, era bom ouvinte e ela gostava de contar suas histórias, aquele espaço em que ficava a rouparia, fizesse sol ou chovesse, era sempre frio, a dona Augusta vivia com saudades do sol.
Nas filas ou nas salas de aulas, os guris viviam cheirando o colarzinho.
Mesmo que, mais tarde, fosse confirmado que a cânfora não tinha qualquer propriedade eficaz no combate à meningite, sempre compro um potinho de Vic Vaporub, o aroma me lembra a dona Augusta.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Uma aventura na Bertioga.


A Olga era a moça que tomava conta do pátio do Sagrado Coração, rosto suave, cabelos longos e louros, boca pequena e olhos de um castanho quase verde, dona de uma beleza de tirar o fôlego..., porém, se eu quiser ser fiel ao pensamento da criança que eu era em 1973, tenho que retirar toda a descrição que acabei de fazer.
Calma, que me explico já.... Na cabeça de um menino de sete anos, a consideração de beleza é muito relativa, a beleza, obrigatoriamente, tem que ser acompanhada da bondade.
Bondade era uma coisa que a moça não tinha, portanto, no critério dos meninos, a moça não era bonita, era um canhão.
Outra coisa, para essa aventura trocaremos o cenário do prédio da Casa da Infância do Menino Jesus, no emergente bairro do Ipiranga e vamos à bucólica Bertioga, uma praia que, por esse tempo, era o paraíso na terra.
No mês de janeiro a turma reduzida, por conta das férias, descia a Serra do Mar e se alojava numa escola municipal, nas salas, todas as carteiras eram amontoadas num canto e se armavam os beliches de lona, parecidas com as do exército.
Nos quadros, ao lado da lousa, ainda ficavam expostos os trabalhos de sala dos alunos e com as notas, o pátio de recreio virava uma enorme sala e a cantina virava cozinha.
A escola era enorme e murada, no mato crescido da área de lazer, vaga-lumes voavam e a lua chegava bem perto, acima da montanha que ficava ali pertinho.
Meu amigo mais comum era o Fernandinho, sempre, a corda e a caçamba, nessa aventura, o Oscar se juntou à nós.
O Oscar era um guri albino, muito branco na pigmentação e para enxergar bem, tinha que se aproximar muito das coisas, em contraponto, era de nós, o mais esperto, o que tinha maior presença de espírito, para usar um termo atual...o mais descolado.
A turma era tão reduzida que não se usava o critério das divisões de pátios, todo mundo junto, nem todas as moças iam para o passeio e, para nosso azar, depois de um ano aguentando a Olga, ela foi conosco.
Uma coisa que merece nota, em janeiro de 1974, a rede Globo estreou o programa Fantástico, aquela abertura que tinha a Clara Nunes e os Secos e Molhados, assistimos em Bertioga.
Me lembro de ter dito:
_. Ah, que lindo. Logo depois, o trio correu à caça dos vaga-lumes na noite escura.
A praia ficava a menos de 1 quilometro da escola, Bertioga era uma cidade interiorana, à medida que chegávamos mais perto, o barulho do mar aumentava.
As freiras vestiam maiôs e pediam para que, não disséssemos a ninguém que eram freiras, ora, os maiôs eram tão grandes que, era como se elas estivessem vestindo seus hábitos.
Brincando de castelo de areia, eu o Fernandinho e o Oscar percebemos que um jovem aproximou da Olga, o jovem, encantado com a beleza da moça, investiu.
O cara tinha boa presença e a moça se derreteu toda.
_. Por que você está sozinha??
_. Estou cuidando dos meus sobrinhos.
_. Ah, você é um anjo que caiu do céu.
A sobrinhos, ela se referia a nós, dois guris pretos e um albino, aproximou-se do trio e passou a nos acariciar, aquela bandida e, o trouxa caindo como um patinho.
Ainda que ele quisesse, ela não permitiu que fosse beijada, ela olhava disfarçada para o resto dos meninos e as freiras.
Quando as freiras resolveram voltar para a escola, ela se despediu do laranja, digo jovem, pegou na minha mão e fomos todos, numa relativa distância do grupo, quando ela se certificou que já estava longe, soltou a minha mão, o Oscar ria e esfregava as mãos.
Mais tarde, ela deu desculpa que ia num mercado, para que não desse na vista, pediu para levar o trio, para nós tudo bem, era hora do repouso e, junto do jovem Romeu, fomos conhecer o forte de São João, que beleza, nós vimos, a moça não, estava ocupada e com os olhos fechados.
O rapaz tinha uma moto e queria se exibir, deu cavalinho de pau, pulou umas rampas, acelerou e freou.
Agachado, catando conchinhas não percebi a aproximação da moto e fui atropelado.
Atropelado é força de expressão, eu cai e o pneu dianteiro passou em cima do meu braço, nem doeu e nem marca deixou, correram os meninos para me socorrer, o Oscar chegou primeiro e antes que eu me levantasse, ele disse:
_. Não, não levanta não.
Eu ia dizer a ele que não havia acontecido nada, ele me segurou no chão e gritou:
_. Olha aí, quebrou o osso, a madre Marcia não vai gostar nada disso.
O Fernandinho que não era bobo, me ajudou a levantar e já ensaiava um choro, o rapaz estava branco feito uma vela e a moça tremia feito vara verde.
Aí foi que o passeio ficou bom, até de Bugre nas areia eles nos levaram, pela primeira vez na vida, experimentamos o gosto de um bom Sunday.

sábado, 19 de agosto de 2017

O fujão


Alguns meninos viraram lendas por terem conseguido fugir do colégio, os muros altos e a vigilância atenta das pessoas que cuidavam dos internos na Casa da Infância do Menino Jesus, faziam dessa missão, uma missão impossível.
Mentira, a única pessoa que eu soube, que logrou êxito foi o Álvaro, no entanto, nessa narrativa eu cuidarei de outra pessoa, aliás, os dois eram muito amigos, entre eles...a fome e a vontade de comer, senta que lá vem história.
O Chicão fora batizado com o nome de Francisco de Assis, uma homenagem ao santo protetor dos animais, as mães gostam dessas coisas, pensam que estão assegurando, pelo nome, que o rebento será uma pessoa de paz, na maioria das vezes, o tiro sai pela culatra.
Deixa eu interromper a narrativa, só para constar que o batismo do Chicão se deu no mesmo dia que o meu, a minha madrinha foi a doutora Zilda Arns e a dele foi a tia Erotildes da segunda série, desculpe-me e voltemos à história.
Nem de longe, o Chicão tinha um comportamento de santo, ele gostava de ficar pendurado nas rampas, da segunda ele se jogava no jardim, as vezes na quadra, na última de cima, ele também ficava, enfrentava as moças, brigava com os outros meninos...bom, o menino era o cão chupando manga, ao cubo e, sempre que ficava de castigo, dizia que na primeira oportunidade que tivesse, fugiria e se meteria no mundão.
Particularmente, eu gostava muito dele, mas, essa amizade me custava muita manutenção.
Um dia, nós nos brigamos e passamos a não nos falar por um tempo, coisa de uma semana, ao cabo desse tempo, me veio o Chicão e disse:
_Nilton, vamos voltar a conversar???
_. Não.
_. Por que???
_. Tem uma semana que não fico de castigo.
E, de tanto a praga me aborrecer, cruzamos os dedos mindinhos.
Presta atenção para como isso funciona, nossa moça era a Cinira, ela era do pátio do São Miguel, cursávamos a segunda série, portanto, o ano era 1974, morou na jogada???
Mais uma interrupção, vamos de volta lá.
Algumas vezes, a Cinira nos levava a brincar na quadra, era proibido brincar no jardim, subir a rampa e entrar na portaria e vai todo mundo brincar de esconde-esconde.
Alta tarde, todo mundo no pique e, ninguém achava o Chicão, para que a brincadeira pudesse ter continuidade, fazia-se imperativo que todos saíssem à cata do moleque.
Bateram em todos os cantos e, nada do Chicão, a Cinira foi alertada, ela chamou as freiras, todo mundo na busca.
A última pessoa que o havia visto, disse que ele estava perto da porta da lavanderia, essa porta estava destrancada, a porta que dava acesso à garagem também.
Conclusão lógica, o Chicão se escafedeu.
A notícia passou com alegria pelo pensamento dos meninos, o revoltado havia cumprido o que prometia há tempos.
Uma das freiras acabou com a alegria deles, disse que o menino não tinha familiar nenhum em São Paulo, todos os parentes dele moravam no interior.
Ninguém mais comemorou a fuga do amigo, a ideia do Chicão vagando pelas ruas, sem destino, nos entristecia.
Todos tristes, de volta ao pátio, era sexta-feira, dia de lavagem geral.
Quatro meninos eram escalados para lavar os corredores e halls, eu e o Wilson pelo São Miguel, Zé Almir e Vander pelo São Pedro, essa atividade começava às 8 da noite e terminava às 10, 11 ou meia noite.
Era muito divertido, enquanto o resto do colégio dormia, uns poucos felizardos se divertiam e acabavam dormindo tarde, só que essa noite não foi divertido, o pensamento no Chicão estragou tudo.
Depois de terminado o serviço, a Cida Preta nos dava um café reforçado acompanhado de biscoitos generosos, feito pelas vovozinhas da cozinha, que já haviam ido para as suas casas.
A mesa ficava no hall, bem de frente à escada que levava à lavanderia, comíamos e conversávamos sem pressa.
Um arrastar de pés veio daquela escada, todos ficaram atentos, de lá uma voz falou:
_. Caramba, estou morrendo de fome.
O Zé era o mais velho de todos e foi o primeiro que correu, o Chicão apareceu cambaleando.
Ele não havia fugido, havia entrado na rouparia, para se esconder e pegou no sono.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Um choque coletivo.


De vez em quando, os internos eram encarregados de ajudar os funcionários do colégio em suas funções, creio que isso lhes daria noções de responsabilidades para o futuro, então, alguns meninos eram mandados para ajudar na rouparia, na cozinha, na lavanderia e etc.
O Juventino era um, dos dois únicos homens deste ambiente predominantemente feminino, o outro era o seu Paulo motorista.
O Juventino era o herói da molecada, havia até uma musiquinha que falava da barriga dele, de vez em quando, ele se encrespava com a euforia dos meninos e, fingindo estar de mau humor, fazia careta e gritava o seu bordão:
_ô raça ruim.
O xingamento que deveria servir para calar os meninos, tinha o efeito contrário, ele dizia isso com o seu sotaque de baiano do interior, o resultado era gargalhada geral.
A madre Lodir era vietnamita e não falava nem bom dia em português, não sorria a madre, na maioria das vezes ela gritava, ainda que eu não tenha provas disso, já que não sei coisa nenhuma dessa língua, pela cara que ela fazia, parecia xingamento tudo aquilo.
No entanto, a madre Lodir cuidava do jardim com uma dedicação tão grande que chegava a comover, se lhe faltava o trato bom com as crianças, com as plantas, ela compensava, suas botas de sete léguas e o habito não combinavam bem.
O jardim ficava na mesma altura da quadra, o que separava os dois espaços era a rampa que saia da portaria e subia até o hall da cozinha, haviam duas arvores grandes, uma encostada no muro oposto à rampa e outra no meio, mais para esquerda do terreno todo, o resto eram plantas ornamentais ou flores mesmo.
No canto, quatro metros da direção da porta do saguão da portaria, havia uma gruta, com uma linda imagem de Maria ao centro e, se eu disser que sou mariano, vou poupar o leitor de ter que descrever o amor que eu nutria por essa imagem, ela sempre dormia sob uma luz azul.
Bom, nessa tarde, eu estava ajudando a madre Lodir e, para a minha sorte, as ordens dela eram seguidas de mímica, enquanto ela podava umas folhas, eu regava as flores rasteiras, a irmã saiu a procurar uma ferramenta, eu acho.
A certa altura, chegaram o Juventino e seus ajudantes, o Álvaro, o Adilson e o André, tomei o cuidado para não molhar a ninguém, quando passaram por mim e foram até a gruta, ao que parecia, alguns ratos haviam roído os fios que ligavam o bocal da lâmpada azul, o Juventino e os meninos procuravam o tal fio.
A fiação passava, dentro de um conduíte, por baixo da terra, quando a levantaram, puderam ver os fios roídos, sorriram então, o Juventino ordenou que eles se afastassem, enquanto ele ia achar a caixa de força e, ele não fazia menor ideia de onde ela poderia estar, seguiu ele à portaria e nada, talvez estivesse dentro do quartinho de ferramentas, quase em frente ao corredor da lavanderia.
Com a demora do Juventino, o Álvaro, que era muito atentado, resolveu que podia dar jeito e levantou os fios, eu estava a uns dez metros de distância e gritei:
_. Não mexe, pode ser que...
Não terminei a frase, o alemão estava grudado e se retorcendo, bateu o desespero e querendo ajudar o amigo, o Adilson foi em socorro e ficou grudado também, o André que, dos três era o mais besta, se grudou aos outros, sabendo que, como eu estava, teria o mesmo destino, gritei para o Juventino.
O Juventino veio para salvar a pátria, pulou no jardim e ficou também na corrente elétrica, quatro pessoas eletrocutadas e eu, molhado sem poder fazer nada, a única solução era a de gritar por socorro.
Como se fosse um raio, a madre Lodir apareceu com suas botas de sete léguas, armou-se de um cabo de vassoura e, com habilidades de uma ninja, deu no meio dos quatro, a pancada provocou uma explosão e os quatro foram parar em baixo da rampa.
Quando voltaram à razão, os quatro tiveram que ouvir da freira, sem entender uma palavra, que é muito perigoso, esse negócio de eletricidade, eu acho, pois, tudo isso foi dito na língua dela.

A Margarida.


A moça do São José, que já era madura, foi a primeira pessoa que me fez rever os conceitos, toda essa coisa de mocinhos e vilões, bem e mal, enfim...essa papagaiada toda de filosofia e, fazendo isso, tive que admitir que eu não era um guri tão bom assim, vou logo me desculpando disso e usando a desculpa mais esfarrapado do mundo..."eu era criança".
Bom, todo menino que chegava no ano que ia completar os dez anos, passava para a quarta série e saia do pátio do São Pedro para o São José.
Essa praxe era um ritual de crescimento e, como tal, provocava nos internos um certo medo, não pelo ritual em si, efetivamente, se passava das mãos da carinhosa Rúbia para as mãos da Margarida.
A mudança dava calafrios, já contei em postagem passada que, para fugir das chineladas da Cinira, eu e meu amigo Fernandinho, usávamos a tática de correr, bater na parede e voltar, cada qual para um canto, no fim das contas, a pobre se cansava e não acertava nenhuma pancada, ou seja, nádegas ilesas.
A Margarida era o gatilho mais rápido do Oeste, a cada chinelada, havia a garantia total de uma nádega atingida, se o leitor não me acredita, presta atenção nisso:
Num finzinho de tarde, começo de noite, assim que a janta foi servida, a moça foi levar aquele carrinho de ferro de volta à cozinha, nesses poucos minutos de sua ausência, deu-se início à um falatório entre os meninos, que virou discussão e acabou em briga, sabe como é briga né???metade de um lado e metade para um outro, o único que não foi para lado nenhum, foi o Xavier, aquele guri que tinha uma saúde debilitada.
A Margarida entrou no refeitório sem dizer um a, fechou a porta atrás de si, tirou do pé o chinelo que, graças a Deus não era de borracha e, com a habilidade de um pistoleiro do velho oeste, passou a distribuir chineladas, à torto e à direito, trinta meninos era o efetivo de cada pátio, em todos os vinte e nove, ela deu duas chineladas, uma para cada lado da bunda, o Xavier estava sentado e sentado ficou, no fim, ela tirou uma nesga de cabelo dos olhos, soltou o chinelo no chão e o calçou, sem qualquer sinal de que isso a tivesse cansado.
Ah, deixa eu me corrigir, a moça era muito melhor que qualquer pistoleiro...58 chineladas por minutos, que marca incrível.
Não era bela, a Margarida, já passava dos trinta e cinco e pintava os cabelos, as enormes unhas sempre num vermelho chamativo e batom em cor igual, sua voz era meio grossa, cabelos grandes amarrados sempre, suas calças apertadas ao corpo, ajustavam aos seus mais de um metro e oitenta.
Por mais que eu gostasse da Margarida e note que esse gostar, já era um sinal de submissão à força feminina, fui convidado a participar da força tarefa que se vingaria da moça.
Juntaram-se ao bando vingador o Vladimir e o Adilson, que eram os chefes, o Alaor, o Oscar, o Luís Carlos Pezinho, o Silvano, o Fabiano e esse seu criado aqui.
O plano era bem simples, um susto na moça nos vingaria de todo mal que ela nos tivesse impingido, ah...a moça se arrependeria do dia que havia nascido.
A Margarida, por esse tempo, não morava no colégio feito as outras moças, que tinham seus quartos no hall das moças, quando chegava, por volta das duas da tarde, entrava pelo portão da garagem, subindo da lavanderia, dois lances de escadas davam acesso ao hall da cozinha, nos postamos no primeiro lance dessa, das nossas posições uma longa linha de costura se estendia ao chão, na ponta havia uma meia grande e preta de seda, o piso estava devidamente encerado, quando ela abria a porta vidrada de correr e iniciou a caminhada pelo saguão, uma coisa enorme passou na sua frente, parecia uma cobra, não me lembro o que veio primeiro, o grito de horror ou o baque do corpo ao chão, em todo caso, a gangue ria em alto volume.
O problema de planos mirabolantes de criança de dez anos é que eles só têm a primeira parte e, eu gostaria de dizer que essa vingança lavou nossas almas...ah, eu queria mesmo, mas...
Assim que a Margarida se recuperou do susto, se levantou e partiu como um foguete, subimos alguns lances de escadas e ela atrás, paramos na ante sala da clausura, ali era um local de silêncio total, paramos e ficamos encurralados, a Margarida venceu os últimos degraus da escada e parou, pensamos mesmo que ela ia respeitar aquele lugar, em câmara lenta ela pôs o dedo indicador na boca, tirou o chinelo do pé e, numa precisão cirúrgica de dar inveja, deu as chineladas...lépt, lépt, lépt...sem fazer barulho.
Pegamos castigo e, mais tarde, nos deliciamos com o prazer de ver a Margarida mancando no pátio, por uns dias sentávamos de lado, as chineladas podem não ter feito barulho, mas, foram fortes.
O que mais me incomodava com relação à Margarida era o fato de, mesmo eu não gostar muito dela, ela me adorava.
Então, quando eu já estava no E.D.D, na primeira oportunidade de passeio, fui visitar a Casa da Infância do Menino Jesus, ao revê-la, senti uma saudade imensa, um abraço demorado e um beijo, numa das mais importantes pessoas da minha vida.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A visão do mundo.


Em 1976, tudo o que eu entendia por mundo havia se modificado, esse era o meu último ano na Casa da Infância e a angustia de me afastar do meu lar me consumia.
Eu, o Fabiano, o Valdir Lustosa e o Hélio combinamos que, mesmo em pavilhões separados, no Educandário Dom Duarte, jamais deixaríamos de nos encontrar, nossa amizade atravessaria os confins do infinito, essa promessa fora feita no pátio do São José, com toda a pompa que a ocasião merecia.
Ir embora da minha casa, não sendo mais a pessoa que eu havia sido, me tirava o sono...alguma coisa havia me tirado do contato com o menino que eu era em 1969 e, eu não podia atinar o que podia ser.
Quando eu estava no segundo ano de colégio, no pátio do Nossa Senhora, houve um mutirão de extração de amídalas, todos os meninos, com exceção dos mais velhos sofreram a cirurgia.
É lógico que o tratamento consistia em repouso e muita gelatina e sorvete na dieta, para que os pontos se cicatrizassem, a alimentação era ótima, mas o repouso me agoniava.
Subindo na cabeceira da cama, com esforço, se alcançava a janela gigante vidrada e se tinha a visão do mundo, a igreja matriz, um pedaço da avenida Nazareth e um pedaço do pátio do São José, os meninos gritavam e seus gritos nos alcançavam.
Essa era a visão do meu mundo, da minha visão de casa.
Voltei ao presente e estava me trocando para sair com meu padrinho, para passar as festas de fim de ano.
Quando estava já arrumado, fui à janela e lancei um olhar para fora, o prédio da administração me impedia de ver a imagem completa do mundo, talvez fosse essa, a resposta.
Corri e desci a escada, no primeiro andar, entrei no segundo dormitório e ele estava vazio, agora eu não precisava mais subir na cama, encostei o nariz na janela e lá estava a visão do começo, perfeita.
Certo de que o mundo era o mesmo, desci para a portaria, confiante que, o que viesse não me assustaria.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Das histórias tristes


Bem cedo, aprendi que histórias não se separam pela emoção, tristes ou alegres, não importa, são histórias.
Eu não seria verdadeiro, se dissesse que, só vivi de alegrias e, meus amigos eram fidalgos e perfeitos, não daria.
As borboletas e abelhas beliscavam de leve as flores amarelas dos hibiscos que seguia ladeando o campão, no campo de cima, bando de anus gritavam seu canto agoniado e bandos de bico de latas davam rasantes por cima do lago, pequenas frutas caíam dos oitis que circundavam o lago, a força dos ventos faziam os galhos dos bambus se contorcerem, o entrelaçamento deles emitia um som peculiar e tudo era vida.
No ponto de ônibus, do lado oposto da portaria do Educandário Dom Duarte, uma pequena multidão se acotovela, um público formado de meninos internos assistia ao trabalho do gênio.
Indiferente à balburdia que se instalava ao seu lado, o Satírio olha para a tela, instalada num cavalete médio, fecha um dos olhos, compara a imagem do outro lado da calçada e molha o pincel na tinta, fecha o outro olho e, vigorosamente, lança o pincel à tela.
O Satírio não era um gênio do futebol, era muito mais raro que isso então.
Acostumado a fazer desenhos em cadernos com as canetas simples, enquanto voava por outros mundos em sala de aula, chamou a atenção da professora Anésia de educação artística, imediatamente, ela indicou-o ao curso de belas artes e ele voltou assim, genial.
O Satírio era do lar 20, um amigo de conversações e considerações filosóficas, de assuntos espirituais e políticos e até, um piadista de primeira, a mente do amigo fervilhava.
E, correndo o risco de ser indelicado para com os demais amigos, falo com sinceridade, a mente mais brilhante, dentre todos os meus contemporâneos.
Quando andavam, os gênios da bola, feito o Valdevino, o Pelezinho e o Esquerdinha, tinham seguidores, o Satírio tinha os seus, eu nesse meio.
Quando terminou a tela, eram quatro horas da tarde e o retrato da portaria, saiu iluminado pelo sol do meio dia e, se para nós, que olhamos a imagem final, já nos havíamos esquecido do sol, ele estava na tela...imortalizado.
Essa obra prima foi exposta no antigo prédio da Liga das Senhoras Católicas, ainda na rua Jaceguai e, por lá ficou.
A mente do Satírio realmente fervilhava, toda aquela genialidade pulsava de maneira galopante e evolutiva.
Ainda criança, eram assíduos seus ataques de sonambulismos e as depressões, bem como surtos eufóricos e os tais ataques foram evoluindo.
Se ocorressem nos dias de hoje, esses sintomas seriam facilmente diagnosticados, um profissional prescreveria remédios e tratamento e pronto, estaria o amigo curado, vivendo em sociedade.
Mas qual, em 1981, o Satírio teve um violento surto, seguido de uma profunda depressão, uma ambulância foi busca-lo no pavilhão 22 e, nunca mais se teve notícias.
Eu tenho a obrigação de informar, aos que não sabem que, por esse tempo, pessoas que sofriam de distúrbios de qualquer natureza, eram tratados como bichos e amontoados em sanatórios infectos.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

O tempo emoldura.


A evolução é parte da natureza humana, tudo o que se vive, tudo o que se aprende, ficará guardado na memória.
Evoluir é tocar à frente, você jamais será aquilo que foi no passado, mas, sempre restará a memória de tudo.
Não, não são antônimas, a evolução e a memória, são apenas passageiras de aventura e, por vezes, caminham juntas.
Muitas paisagens hão de desaparecer e as pessoas vão, inexoravelmente envelhecer, essa é a força da evolução.
A memória pode trazer ambos, pessoas e paisagem, juntas, como eram no passado.
E, se envelhecer te fez cínico e descrente do que virá, lembrar dos fatos, com a cabeça de uma criança, será uma boa coisa a se realizar.
Todas as pessoas que passaram pelo meu caminho, contribuíram para a minha obra, a obra de viver, posto que, o meu passado e o meu presente me pertencem, essas pessoas são personagens dessa obra e, sempre agradeço a honra de tê-los conhecido...o que virá daqui por diante, pertence a Deus.
Então, direto da minha memória, ainda sem a evolução, mais dois personagens queridos e importantes.
Nas manhãs geladas de junho a cerração escondia a igreja, olhando da parte leste do pavilhão 14, nem se podia avistar o pavilhão 16, que estava uns 10 metros abaixo, acima dos pinheiros da estrada do 15 só se via uma névoa branca.
Do lado oposto, a horta do Japonês amanhecia branca, uma camada de gelo por cima da plantação, descer por esse caminho para alcançar a olaria era impossível, a terra vermelha se transformava em lama, uma descida íngreme findava no lago da olaria, isso não convinha às pernas do Lucídio.
O melhor caminho era a estrada do 12, apesar de o Lucídio ser mais velho, eu cuidava dele, suas galochas Verlon arrastavam nos pedriscos da estrada e ele sempre cantava, fizesse sol ou chuva, o neguinho Lucídio cantava, à medida que ele caminhava, as pedrinhas eram levantadas, numa pedra maior ele tropeçava e ria do infortúnio.
Apesar de ter entrevamento dos joelhos e, isso o impedisse de levantar os pés como todo mundo, ele nunca se lamentava, sorria com seus dentes perfeitos e muito brancos.
O Lucídio era do mesmo signo do Zabé, aquele tipo de pessoa que, mesmo que o ambiente e as circunstancias sugiram, são incapazes de fazer ideia do que seja maldade.
Mais à frente, terminava o mandiocal do 12 e começava o milharal do 11, o neguinho ficava parado no lado oposto da estrada, ainda cantando, eu me enfiava no mato e voltava com os braços carregados de espigas de milho, mais à frente encontrávamos o amigo Jacaré.
Passando pelas casas dos funcionários, que margeavam o grande lago, uma pontezinha de tronco dava acesso ao forno da olaria, nessa época do ano, esse era o melhor lugar do mundo para se estar.
Sempre se podia ver o seu João Matos com seu olhar melancólico, ao nos ver, sempre abria um sorriso e dizia:
_Dia.
O cheiro forte de óleo Diesel se confundia com o odor agradável do cozimento dos tijolos, quase sem qualquer dialogo, eu entregava as espigas ao seu João e sentávamos por instantes numa pilha pequena de tijolos, o amigo abria a garrafa de café, punha a metade de um copo e nós a dividíamos, o Jacaré já havia achado um lugar quente e se deixava ficar por lá.
Depois, eu e o neguinho íamos para a olaria, o seu João e os filhos trabalhavam por ali mesmo.
Na hora do intervalo, nos dirigíamos ao forno, o amigo já havia assado o milho, mais café e, como o seu João não era muito de falar, eu e o Lucídio o fazíamos rir.
Para nós, era inaceitável que ele não falasse nunca, o seu João tinha a voz igual à de um narrador esportivo, muito famoso na época, o EDEMAR ANNUSECK, da Jovem Pan.