sexta-feira, 16 de junho de 2017

Um conto, um ponto.



 
  Lá, para os lados do pavilhão 20, contavam histórias de almas que passeavam de noite nas estradas do Educandário Dom Duarte, todo mundo que trabalhava fora, esperava por um tempo na escada do mastro da bandeira, para engrossar a turma e partir para os pavilhões, se uma pessoa morava no 24, por exemplo, esperava alguém de algum pavilhão vizinho, pelo menos o mais próximo de seus pavilhões, para o nosso lado, acontecia a mesma coisa.
  Se tivéssemos que subir de noite, a companhia de alguém do 13 e do 12 ajudava, o problema é que da curva da jaqueira o caminho era só, quando se chegava à subida, se ouvia nitidamente passos no milharal, se se apertasse o passo, se podia ouvir as pegadas te seguindo, se se corresse, podia-se ouvir gemidos às suas costas.
  Cientes disso, os internos jamais andavam sozinhos à noite, eu tinha pena dos caras do 11, o pavilhão mais isolado de todos.
  Esses medos eram do tempo que éramos crianças, crescemos então e, no pavilhão 22, viramos adolescentes e, por via das dúvidas, continuamos a andar em bandos, se aparecesse alguma coisa no caminho, correríamos ...todos juntos.
  Por essa época, pegamos o hábito de caçar rãs no lago da olaria... eu disse caçar e não pescar como deveria ser e, eu explico:
  Quem pesca rã, o faz com a fisga, uma espécie de garfo com três dentes e, nós o fazíamos com torrões, aquele pedaço de barro que se seca na estrada.
  Íamos para o lago com um farolete e colhíamos os torrões pelo caminho, atraídas pela luz do farolete, as rãs se viam hipnotizadas, enquanto elas estavam distraídas, os torrões eram arremessados, ploft...
  E depois de uns poucos segundo, umas quatro ou cinco estavam boiando na superfície, só recolher, limpar, cortar, temperar e fazer o banquete.
  Em quase todos os finais de semanas, eu o Japonês e o Viana, fazíamos essa verdadeira Savana, íamos pelo caminho do campo de cima, beirando a Sabesp, que era o caminho mais fácil.
  Com a licença do leitor, vou descrever esse trio, no final isso vai ajudar na história, creio eu.
  O Japonês era palmeirense e católico fervoroso, o Viana era são paulino e simpático às religiões de matriz afros e, eu, corintiano e mariano.
  Quis o destino que, naquela noite, estivessem os 3 juntos.
  Quando já havíamos passado do campo de cima, bem na bifurcação que divide a estrada em duas direções (à direita, para a assistência médica e em frente, para a olaria) vimos o mato se agitar à nossa frente, a lua era cheia e não precisamos iluminar, o mato alto foi empurrado e paramos para poder enxergar o que podia vir dali, instintivamente, soltei os torrões, me abaixei e troquei-os por pedras, o Viana fez o mesmo e o Japonês ficou estático.
  Com pedras grandes nas mãos, ficamos esperando, o Japa ligou o farolete e jogou a luz naquela direção, o mato se abriu e um rosto negro surgiu, seu olhos não tinham órbitas e a boca parecia contorcida, uma nesga de sangue lhe escorria da testa.
  Reféns do horror, soltamos as pedras e queríamos correr, o Japonês deixou o farolete cair, nesse instante o homem se saiu todo do mato e veio em nossa direção, só então, percebemos que ele media uns dois metros e suas roupas eram nada mais que trapos rasgados, eu quero gritar e a voz não sai.
  A menos de metro e meio de nós, o sujeito faz menção de que vai se comunicar, sai um grunhido gutural, horrendo a nossos ouvidos, como alguém que não sabe falar, pigarreia e tenta firmar a voz:
  _Você não acredita?
  Ao dizer isso, estica a mão em minha direção e, eu estava no meio, o indicador vai direto para mim, se eu já não estivesse gelado, gelaria agora.
  _Não acredita? Sábado você vai ver.
  Ao dizer essas palavras, sorri e bate no peito, gritando um nome inaudível, a força do grito derruba o Viana ao chão, já chorava o Japonês ao meu lado, petrificado eu estava, petrificado fiquei.
  O homem, ou aquilo, correu e se meteu no mato, do lado oposto do que havia saído.
  Ficamos ali uns bons segundos a esperar o barulho no mato, o que indicaria que ele tivesse ido embora... nada, voltamos à estrada e nos encaminhamos para o 22 em silêncio, eram mais de meia noite e concluímos que algo aconteceria no sábado, não falamos pra ninguém.
  O Japonês e o Viana eram os meus amigos inseparáveis, na manhã daquele sábado percebi que os dois haviam sumido logo cedo, lógico que, se eu fui o apontado, a coisa ia cair nas minhas costas, não lhes culpo pelo medo de ficar em minha companhia.
  E eu, por incrível que possa parecer, levei o susto como coisa normal, racionalmente falando, o que podia um espírito fazer de efetivo contra mim? Então, quando a tarde se findou, botei a minha roupa de baile, levantei o Black e fui pra balada.
  Bom, balada mesmo não houve... assim que dobrei a esquina da João de Lorenzo com a Osvaldão, uma viatura freou ao meu lado e os ocupantes gritaram:
  _Mãos pra cabeça, todo mundo na parede.
  Já estavam na fogueira, o Nando, o Zóinho, o Galego, o Mauricinho, o Adir, o Valdevino, o Cezar e o Carlos, assim que eu me juntei a eles, começou uma sessão de espancamento, soco no estômago, coronhadas e tapas na cara, um dos policiais me tirou da fila e me deixou na calçada ao lado, a certa altura, um policial gritou:
  _Vocês não tem vergonha de dar mau exemplo pra aquele garoto? E apontou na minha direção.
  Seguiu-se uns 10 minutos disso e, ninguém me encostou um dedo, algemaram todos, uns nos pulsos, uns na canela,  jogaram todos no camburão e um deles fez com a mão que era para eu embarcar, sentei-me no espaço que me coube, antes de fechar a tampa, o homem quis saber se eu estava bem.
  No caminho até a delegacia da Vila Sônia, a barca acelerava e freava, os amigos eram jogados para lá e para cá e gemiam com as pancadas, eu estava solto e constrangido, permaneci em silêncio o caminho todo, simplesmente não acreditava naquilo.
  Quando a viatura encostou no estacionamento da delegacia, além dos quatro ocupantes dessa, outros policiais se juntaram, cerca de uns 10 e, formaram um corredor Polonês, logo atrás do nosso carro.
  Um policial abriu a tampa da viatura e foi tirando as algemas, livre das algemas, agora era passar pelo corredor, o primeiro foi o Zóinho e, ele deu azar, depois de dois socos, tropeçou e caiu, juntaram-se todos os policiais e passaram a chutá-lo e a pisar.
  E seguiu-se a ordem, um por um, os batedores gritavam de prazer e, chegou a minha vez.
  Não fui o último, desceu da viatura e andei o corredor inteiro, isso dava uns vinte metros, e andei em passo lento... nenhum policial levantou a mão, depois que eu passei recomeçou tudo.
  Todos foram indiciados, tocaram piano e entraram no xis, quando cheguei à mesa do delegado, o Ditinho já estava lá, e gritava com ele, por conta da violência que eu havia sofrido.
  E então... nem me venha perguntar se eu acredito ou não.

A escola nova.


   Sempre fui avesso à condição de protagonista, de natureza retraída, vivia minhas aventuras sem me mostrar, me conformava em ser mais um participante ou a testemunha, se, por alguma eventualidade, as coisas me apontavam como autor de algo, me fazia de estátua e tirava o foco da minha pessoa e.… a vida continuava e então, essa aventura me pegou desprevenido e quase me custou muito caro.
  E cá estava eu, sendo interrogado por 4 milicos, na sala da diretora, achando que a minha história seria interrompida violentamente, optei por não responder nada, meus interrogadores davam sinais de estafa e um deles tirou do coldre a arma, jogou-a em cima da mesa e, eu o respondi com um tumular silencio, queria que tudo se acabasse, queria dizer-lhes que tudo não passara de um engano, mas tinha certeza que não ia colar...
  Em 1979, o Grupo Escolar do Educandário Dom Duarte foi fechado, já não podia atender à crescente demanda da região, que se multiplicava à passos largos, todos foram remanejados para a nova escola, que se chamava Escola Estadual do Primeiro Grau Luiz Elias Attiê.
  Quem saía do pavilhão 14, descia o caminho da jaqueira e à direita do Aprendizado seguia sentido à administração, na estrada que levava à portaria, seguíamos para o lado oposto, passando pelo lago do 24, nessa altura, já terminava o território do Educandário Dom Duarte , seguia-se uma longa estrada de terra batida, de um lado a horta do Japonês, de outro, uma vasta extensão de mamoneiras, cana de burro e capim gordura, chegávamos ao fundo da escola, alguns mais afoitos, pulavam o muro.
  Quando saíamos do pavilhão, éramos uns 10, a turma ia aumentando, os outros internos dos outros pavilhões iam se juntando, entre as brincadeiras e as bravatas, sempre seguíamos cantando, essa caminhada fez com que as amizades se consolidassem, na nova escola os internos deixaram de ser a maioria esmagadora, mas ainda eram a força dominadora.
  Na saída, pegávamos o sol à pino, mas a turma voltava cantando, muitos dos internos, que eram dispensados mais cedo, esperavam no portão, não havia graça nenhuma, a caminhada sem a companhia dos amigos.
  Sempre, um guri começava uma canção, em seguida todos acompanhavam:
  _. Quanto tempo temos antes de voltarem aquelas ondas, era um tipo de coral andante.
  Lembro do menino que morreu, apanhado por um raio, na quadra, eu nunca soube o nome dele, para falar a verdade, eu nem o conhecia, mas, estava lá.
  . Havia uma aula vaga e ainda que as nuvens de tempestade apontassem ameaçadoras no céu, tínhamos a bola, a quadra ficava num plano mais alto, do lado de fora do pátio.
  Quando começou a chuva, estávamos com a partida empatada, ela aumentou e como ninguém fez menção de sair, fiquei em quadra, com a chuva forte, ouvia-se o barulho dos trovões e os raios cortavam os céus.
  O tal menino estava no meu time, o escanteio, naquela época, era cobrado com as mãos, com a bola nas mãos, ele se preparava para arremessa-la na área, eu estava desmarcado na área, a visibilidade era pouca, mas se a bola viesse na minha cabeça...
  Um raio clareou aquela quina da quadra, sentimos a descarga elétrica, a claridade foi tanta e o barulho tão alto que, durante uns 5 minutos fiquei cego e surdo, lembro que alguns amigos me levaram, pelos braços o caminho da quadra até o pátio.
  Dizem que ele foi reduzido ao tamanho de um boneco.
  Aquele foi um inverno muito rigoroso, as aulas tiveram que ser suspensas, não se podia ficar parados, sem que as mãos fossem congeladas, no pátio ouvíamos o Gil cantar:
   _"Observando estrelas, junto à fogueirinha de papel".
  E, literalmente as fogueirinhas de papel, fazíamos com os nossos cadernos.
  Era a época da "Disco", na sétima série, o Xodó fechava a sala e dava bailes, dançava feito gente grande, as músicas da Donna Summer.
  Minha alça de mira apontava em outra direção, na primavera, ensaiamos e encenamos Capitães de areia, sem a ajuda de nenhum adulto.
  Em outubro, quando eu já havia passado em todas as matérias, aconteceu...
  Minha turma agora era outra, eu andava com um pessoal mais engajado, de boas notas e de comportamento não recomendado, que gostavam de política, música, futebol e garotas (não necessariamente, nessa ordem).
  Eram os: Arthur, o Gilvan, o Dalcides, o Romão, o Gibi, o Porfírio e o Aparecido.
  Na hora do recreio, enquanto esperávamos na fila do mingau, algum garoto soltou uma bola no pátio, como sempre acontece, a bola foi chutada por outro garoto, chutada por outro...e, virou um racha.
  Alheios à fila da merenda, eles passaram a correr e a driblar, um deles chutou com mais força, a bola subiu e bateu na parede lateral, ali havia um quadro, no quadro a foto do governador do estado de São Paulo, com faixa no peito, o quadro se espatifou no chão, os meninos que jogavam, recolheram a bola e saíram correndo, a merendeira chamou a coordenadora, quando a Maria Luiza chegou, deu de cara com o quadro no chão e como já havíamos pego nossas canecas, ficamos ali, é claro que ela achou que fomos nós os autores daquela façanha, fuzilou-nos com os olhos, o Aparecido disse-lhe que não havia sido nossa culpa, quando ela perguntou quem havia sido, ele se recusou a dizer, a faxineira juntou os cacos de vidro e a moldura, a coordenadora tinha a foto do governador nas mãos.
  Eu estava encostado no balcão da cantina, diante da cena, não pude resistir e falei:
  _. Não entendo todo esse carinho por uma pessoa que não foi eleita pelo povo.
  Irada, ela se virou e disse que eu estava sendo subversivo, eu retruquei à altura e iniciou um diálogo, ela atacava e eu contra-atacava, o pátio começou a ficar lotado, a cada resposta minha, seguia-se acalorados aplausos, sem o habitual constrangimento de ser o centro das atenções, permaneci firme.
  Quando ela se retirou do pátio, seguiu-se uma balburdia, as pessoas gritavam palavras de ordem e se recusavam a entrar nas salas, à essa altura a polícia já tinha sido chamada, tentava entrar, meus amigos de classe já haviam tomado o controle e trancado o portão de entrada, alguns meninos estavam em cima do muro e atiravam pedras na viatura, lembro de ter visto a professora de história, dona Claudia (comunista de carteirinha) passar por mim e dar um sorriso de orgulho.
  Se os meus amigos estavam gostando muito daquela brincadeira, eu estava com medo daquilo tudo, ver as carteiras sendo arremessadas para fora das salas de aula e crianças na mira da polícia, não era o meu sonho de democracia.
  . Mais tarde, quando a polícia dominou a situação, a coordenadora enumerou todos os cabeças, disse que eu estava sozinho, mandaram os outros embora e ficaram comigo na sala da diretora.