sexta-feira, 22 de setembro de 2017

As regras de Dulce



   Sempre falei e, sempre vou falar, que sou um homem que foi criado por mulheres, numa escala de doze, oito, de tudo que aprendi na vida, foi com mulheres.
  Nunca vou me envergonhar em assumir isso, ao contrário do que se pensam por aí, não são pessoas inseguras, essas pessoas criadas por mulheres, nem tem eles, propensões à feminilidade, não mesmo, eles crescem cavalheiros e, jamais farão mal ao sexo oposto.
  E, depois daqueles oito anos de ditadura feminina na Casa da Infância do Menino Jesus, encontrei no pavilhão 14 do Educandário Dom Duarte, o pior tipo de casal do mundo.
  Para cuidar dos 45 meninos, com idade entre sete e dezessete anos, a função era educar e proteger e eles sequer eram educados para o cargo.
  Espancavam, ignoravam e os expunham à trabalhos escravos, o Odilon era analfabeto, a esposa Ana, sorria e achava graça do fato do marido andar com um revólver à mostra, a maioria dos meninos achava que, dos dois, ele era o pior, para mim, ela era tão ruim quanto, se ela quisesse, poderia ter mudado tudo aquilo, uma das piores mulheres que eu já tive o desprazer de conhecer, a dona Ana.
  No colégio, essa época foi conhecida como a “época dos carrascos”, eu cheguei em 1977, os outros membros do sexteto infernal já sofriam aquilo a mais de cinco anos.
  Tudo aquilo fazia com que os meninos do 14 ficassem unidos, a revolta crescendo todos os dias, mais dia ou menos dia, a bomba explodiria, era, portanto, um enredo com um final mais que provável.
  Só provável mesmo, quis o destino que, no pavilhão 24, no outro extremo das terras do Educandário, uma tragédia acontecesse na segunda metade do mês de novembro de 1979, esse evento mudou os rumos de toda história.
  O Celso, que tinha a mesma idade minha, 12 anos, acompanhado dos amigos de pavilhão, desceram para o lago e acabou afogado, larga, foi a repercussão do caso na imprensa, quando um batalhão de repórteres invadiu o colégio e começaram as perguntas acerca do caso, souberam de mais casos, de descasos, de castigos, de flagelos, de humilhações e de todo tipo de maus tratos que sofriam os internos do Educandário, tudo direto no ventilador.
  Como consequência, a diretoria caiu, com ela os carrascos juntos, livres do opressor, os meninos do lar 14 firmaram um pacto, se alguém encostasse a mão em um deles, todos reagiriam.
  Dois meses depois, fomos apresentados ao novo casal de laristas do pavilhão 14, era um homem opulento de barba, media uns metro e noventa para mais e uma mulher magrinha, de estatura média de mulher, olhos verdes cativantes e uma boca pequena, feições suaves como as de uma fada.
  Mal-acostumados que estávamos, paramos na descrição do homem, que era forte, à primeira vista seria uma volta à ditadura, imaginamos que daria trabalho derrubar aquele homem, mas como estávamos em número maior, não custaria tentar.
  O casal tinha um filho de dez anos, tirando o tamanho, o resto era a cópia do pai.
  A moça deu um passo à frente e se apresentou, assim que ela começou a falar, todos os meninos que estavam na frente do pavilhão se sentiram aliviados, toda a expectativa que tínhamos foi ao chão, se chamava Dulce, o marido dela era Claudio e o filho Israel, falava de modo seguro, com sotaque catarinense e, no fim, disse que nos cuidaria como se fossemos seus filhos.
  O Claudio, apesar da opulência corporal, era um sujeito calmo que gostava de jogar bola com os guris, pintava quadros e dava bons conselhos, o comando de fato era da dona Dulce, não mandava, pedia com educação e, em hipótese nenhuma, recorria à violência.
  Se julgar que a dona Dulce não conseguisse tomar conta de 45 internos, está muito enganado, além desses, ainda tinha o marido e o filho, para ela era tudo filho, qualquer problema que alguém tivesse, ela detectava e resolvia, tudo com naturalidade.
  Aprendemos de um tudo com a dona Dulce, artes, amizade e sexo também, sobre esse último, aprendemos sobre círculo menstrual, essa lição foi prática.
  Via de regra, a dona Dulce era realmente uma fada, verdadeira personagem de contos de fada e como, na vida nada é perfeito, coisa de três ou quatro dias a cada mês, por conta das regras, ela sofria uma espécie de mutação na sua personalidade, dir-se-ia que ela entrava em modo demo, qualquer cair de um alfinete, a irritava profundamente, até a voz ficava diferente.
  Nesses tais dias, o pavilhão 14 se quedava num silêncio de hospital, qualquer bem-te-vi que ousasse cantar por perto, era expulso a pedras, lá no campo, se se fizesse um gol, por mais bonito que fosse, não se comemorava.
  Numa bela tarde, estavam na área do pavilhão, um grupo a esperar uns outros que vestiam os tênis, no grupo que esperava, estavam o seu Claudio e o Israel, os que se ajeitavam faziam o máximo para não fazer barulho, a dona Dulce estava na cozinha num mau humor de cão.
  O Israel, à exemplo do pai, era um emérito peréba, pegou a bola e cismou de fazer embaixadinhas, todo mundo sabe, bola no pé de peréba é uma arma, na primeira levantada, a bola foi de encontro à janela do segundo dormitório, o vidro se espatifou.
  A vontade de todo mundo era correr, a surpresa foi tão grande que ninguém se mexeu do lugar, esperando a voz modificada, que viria da cozinha, todo mundo encolhido de medo antecipado, a voz veio:
  _. Está vendo só, o que dá, essa merda de futebol???Na próxima meia hora ninguém sai daqui ...meia hora.
  No meio da área havia uma enorme mesa com tampo de Madeirit com quatro banco grandes, onde ela dava as lições de casa, em silêncio, cada um achou um lugar e se sentou.
  Algum dos meninos achou que o castigo não se estendia ao Claudio e ao Israel, pelo fato de eles serem o filho e o marido da moça, cochicham isso.
  O Israel disse que, nem por um decreto, ele se levantaria dali, o Claudio raciocinou uns segundos, na cabeça dele foi assim:
  Afinal de contas, não faz sentido, eu, o homem da casa ficar de castigo, que raios...eu não sou menino, sou homem, pensado isso, encheu-se de coragem e se levantou do banco, o movimento provocou um ranger de madeira, de lá de dentro a voz gritou mais alto:
  _Claudio, se você sair daí, vai ficar mais uma hora.
  _. Que isso querida, estava só me ajeitando aqui.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O João do Bode.

Parte de se viver órfão, era a solidão de não ter uma família, alguns vão usar isso como desculpa para não conviverem em sociedade e se estagnarem nesse mundo e, como consequência, nunca estarão completos, sempre a desculpa de não serem amados na infância.
O Educandário Dom Duarte não atendia só aos órfãos, grande parte dos internos tinham famílias e as viam em fins de semanas, quando não, tinham sempre os domingos de visitas, as famílias que não tinham condições de buscar o interno, compareciam nesse dia e armavam seus banquetes no gramado, do lado oposto do campão.
Bom, o órfão tinha uma única visita, o João do Bode.
Esse notório personagem, era um crioulo alto de sorriso fácil e alma de anjo, não sei se foi promessa ou, simplesmente o sentimento de voluntariedade que o impelia a ser um afro-Papai Noel dos meninos.
Alguns contam que ele havia sido interno da Casa da Infância do Menino Jesus e, por ser órfão, não recebia visitas, fora lá, por compensação, que ele havia começado, em domingos de visita e natal, a distribuir doces aos poucos que ficavam no colégio.
Então, ele compensou a tristeza da infância, passou a ser a visita de quem jamais teria.
Alguém sempre vai supor que, para tal empreitada, um sujeito tem que ter muito dinheiro, o João não parecia, pelas roupas que vestia, ser um sujeito de muitas posses não, ele comprava uma parte e arrecadava com amigos e comerciantes, juntava tudo num grande saco e distribuía.
Quando me mudei para o Educa, percebi que o João do Bode chegava regularmente às 14:00 horas, de qualquer canto que se estivesse, o grito ia passando, de boca em boca:
_O João do Bode chegou.
E, como se fossem tambores, quem estivesse em lugares distantes, saberia da notícia e corriam ao encontro, os meninos que estavam com suas famílias também corriam, de longe se podia ver a cena, um homem grande correndo, seguido por dezenas de guris.
Claro que os doces eram bons, isso conta no final da história, porém, para alguns internos, essa era a única visita.
Viva sempre, João do Bode, um homem simples, de atitude gigante.

domingo, 10 de setembro de 2017

Mundo cão.

Dizem que a vida é sagrada e, não se deve dispor dela...alguma escrita citada na igreja ou algum livro de autoajuda, sabe-se lá.
  As pessoas que dizem isso, vivem vidas relativamente confortáveis, recostam-se em suas cadeiras estofadas, ajeitam os óculos à cara e digitam palavras em suas máquinas automáticas, protegidos em seu mundo seguro, jamais farão a mínima ideia do que se passa na cabeça da menina esquálida que acabara de entrar no posto de saúde, capengando ela segue, a dor de seu corpo é nada diante da vergonha de ser alvo dos olhares de pena e reprovação, esses olhares tem um pesar latente, apontam e massacram.
  Chegar a esse ponto foi natural, um final à rigor para uma sobrevida, para Luciléia não existe nada que a prenda nesse mundo, de homens que batem em meninas e sem qualquer remorso, as violentam, um mundo de mulheres que fazem não ver a tudo isso, pessoas que machucam meninas em lugar de protege-las, melhor mesmo é sair disso tudo.
  A moça da recepção que a atendera, não viu que seu rosto estava deformado, não perguntou sobre a boca inchada e as múltiplas escoriações pelo corpo, tomou-lhe o documento e preencheu a ficha e... se visse, não faria diferença, a cena é comum e corriqueira nas periferias das grandes cidades, alheia jogou a ficha no balcão e virou a cara:
  _. Senta ali e espera que o médico já vem.
  O canto onde as portas dos consultórios se localizavam, ficava fora do saguão, um beco fora dos olhos dos curiosos, uma fileira de bancos vazios e a menina se sentou com cuidado para não sentir as dores do corpo e, não havia uma parte do corpo dessa menina que não doesse.
  Essa menina tinha 13 anos e já era esposa de um traficante, esposa por caridade e escrava sexual, de uma besta que via prazer em torturar, humilhar, espancar e violentar.
  E não havia como voltar para casa, essa vida de agora já era a fuga de uma vida terrível.
 Entre o tratamento que a mãe lhe dava e o tratamento que o traficante lhe impunha, não havia nem melhor nem pior.
  Luciléia tinha que esperar um bocado, todo o corpo lhe doía, uma dor que dilacerava feito infecção e crescia mais e mais.
  Percebeu que a porta do consultório estava entreaberta e, uma ideia lhe veio à mente, tinha que agir rápido, olhou em volta e ninguém estava atento à ela, levantou-se e entrou na sala, ao lado da mesa havia um armarinho, daqueles confeccionados de vidro, que a porta também estava aberta com uma grande quantidade de remédios.
   Luciléia notou que no cestinho de lixo havia jogada uma sacolinha de plástico, muito rápido encheu a sacola com todos os remédios que pôde e correu no corredor em direção ao banheiro, tão rápido que ninguém se deu conta da cena.
  Enquanto tirava os comprimidos das embalagens, se despedia das pessoas que a maltrataram, se despedia das surras e dos seguidos estupros, se despedia dessa vida de cão.
  Como já não comia há vários dias, teve dificuldade para engolir o monte todo, alguns comprimidos escorreram dos palmos juntos, os mesmos palmos apararam o jato de água da torneira e desceu tudo, tudo de uma vez.
  A moça da recepção achou estranho quando aquela menina esquelética saiu correndo pelo saguão e ganhou a porta da saída, mas não deu muita atenção ao fato.
  O sol bateu em cheio o seu rosto, um clarão intenso que a fez piscar, um último raio de sol antes da tragédia do final tão próximo, as pessoas que viram seu rosto nesse momento tiveram dificuldades para saber se seu rosto esboçava um sorriso ou fora o sol que feria os seus olhos.
  Já não via mais nada, as coisas se embaralhavam em sua frente, pessoas, carros e casas formavam uma massa uniforme e sem cor, tudo ficou cinza.
  Cambaleou uns trinta metros fora do portão do posto, tombou na guia e seu corpo rolou para dentro do córrego.
  Aquele mundo mal deu lugar ao azul infinito do nada.

sábado, 9 de setembro de 2017

O piano branco



Cheguei bem cedo, desci na Raposo e segui o caminho que sempre fazia para assistir os jogos, antes de chegar na avenida Corifeu, uma rua arborizada com lindas e grandes casas, a moça era produtora musical.
Vim com minha melhor beca, camisa branca e o mocaçim brilhando, mostrei o cartão ao segurança e o acompanhei pelo jardim, ao lado da casa principal.
O jardim era largo, bem cuidado e de extremo bom gosto, entre as rosas, haviam estátuas romanas em mármores, um caminho de pedras se seguia no chão, meu desafio era me manter em cima delas e elas faziam zig zag, fosse o que fosse, não queria sujar os sapatos.
No fim do jardim, um longo corredor com piso xadrez levava ao lindo escritório, a parte do solo era uma garagem, lá havia um carro conversível e, a minha total ignorância nesse assunto, não permitiu que eu identificasse, ao lado, uma escada em formato helicoidal levava à uma sala toda arejada com piso branco, parede branca e forro branco, o sol que entrava pelas janelas, batia e refletia, deixando tudo mais branco.
Não haviam muitos móveis nessa sala, algumas cadeiras, um sofá e um armarinho de vidro, bem no meio da sala, um solitário piano branco, o segurança pediu que eu aguardasse, pois, a moça não me esperava tão cedo, me deixou só.
Longos minutos e nem uma revista para ler, cheguei-me ao piano e dedilhei de leve suas teclas.
Um suave cheiro de jasmim precedeu a chegada da moça, se eu tivesse apostado com alguém, qual a cor preferida dela, eu teria ganho.
Chegou toda de branco e, me pegou ainda ao lado do piano.
_. Vou ter que tocar???
_. Não;
_Sorte sua, eu não sei tocar.

Vaias são da vida.



O próprio Antônio Brasileiro já foi vaiado, eu, não querendo me comparar ao maestro em envergadura, mas, já fui vaiado também.
Tendo ele como exemplo, tive a mesma calma e, aceitei a vaia, feito quando aceitei o aplauso da mesma torcida.
O campo da São Remo, fica no bairro do Rio Pequeno, um campo de terra batida, numa favela que é vizinha de um agrupamento da polícia militar.
Ainda que não fôssemos o time da casa, a torcida pendia para o nosso lado, os barrancos que circundam o campo estavam lotados.
Partida empatada e o empate levaria às cobranças de penal e, já que eu não devia nada para ninguém, saquei o craque do time, recuei o time e chamei o camisa 15, a reação da torcida foi imediata.
Apupos e xingos, a pobre da minha mãe virou doce na boca dos vândalos, me mantive calmo, dois minutos depois o jogador que entrou fez o gol, a torcida gritou.
Eu disse que aceito a vaia com naturalidade, eu menti, assim que o gol foi comemorado o juiz encerrou a partida.
Fui até o meio do campo, a torcida me acompanhou com os olhos, imaginaram que eu fosse agradecer o apoio, enfiei a mão um palmo abaixo do umbigo, enchi a mão e disse:
_Aqui ó, seus nojentos.