quarta-feira, 1 de março de 2017

Tradições


Claro que não sou e nunca fui machista, quem manda lá em casa sempre foi a patroa, em quase todos os lares é assim, só que eu admito.Um homem fazer supermercado, vai contra a natureza humana, mas faço comida, lavo louça e troco fraudas.
Bom, aos domingos essa coisa muda, meu Timão joga e, como a mulher não gosta de jogo televisionado, nem passa perto da sala e, por duas horas, ela fica na cozinha ou no quintal, nessas horas, eu e meus filhos viramos torcedores, gritamos, falamos palavrão, nem adianta ligar que não atendemos o telefone, se houver algum assunto importante nesse período...esquece, nada é mais importante que o Timão, conta depois do jogo e, dependendo do resultado, nem conta.
Tradicionalmente, lá em casa sempre foi assim, desde que os meninos eram pequenos, essa é a única vez que o cavalheiro educado some e entra o maloqueiro da arquibancada, a mulher tem medo de passar pela sala, ou tinha, quando a convidei pra me acompanhar e aos meninos na arquibancada do estádio, ela me saiu com essa:
_Tá doido, eu não quero conhecer milhões de pessoas iguais a vocês, tô fora.
No começo do ano passado, jogou o Timão contra o Santos, lugares no sofá da sala tem uma ordem e ninguém pode mudar, isso dá azar.
O jogo estava morno, feio mesmo eu diria, os dois times estudando um ao outro e tal e coisa.
Só reclamações e jogo morno, passamos a conversar entre nós, falar das coisas extra campo, pra ver se a coisa melhorava.
Na cozinha a mulher começaria a fazer um bolo, saiu à cata da receita, acima da estante da televisão tem uma cestinha de remédios, onde também deixamos alguns caderninho de notas, a moça foi pegá-lo e ficou na frente da televisão, nesse exato instante o Timão fez um gol e só vimos no replay, ela saiu da frente e pediu mil desculpas, pulamos de alegria, no meio do entusiasmo, ela correu pra cozinha, pra se livrar dos selvagens.
Volta ao jogo e a coisa voltou ao marasmo, me veio uma ideia na cabeça e gritei pra ela:
_Ô madame, você não arrumou a cestinha de remédios, ela protestou mas, veio consertar o erro, eu e meus filhos a ver, ela entrou na frente da televisão de novo e o Corinthians começou um contra ataque, o narrador falou com mais enfase e ela saiu, eu disse:
_Fica tranquila, não está atrapalhando.
Voltou pro lugar e saiu mais um gol, gritamos, pulamos e nos abraçamos.
E ela ganhou o direito de, quando o jogo estiver ruim, transitar a vontade pela sala.

A melhor explicação.


Conheci o Soró no Pacaembu, em dia de jogo do Timão e, mais para frente, fui saber que ele era militante do partidão, feito eu.
Na militância, ele era de poucas palavras, quase ninguém notava a sua presença, no estádio se soltava, exaltava o time do parque, balançava a bandeira, batia tambor e xingava a mãe do juiz, feito esses malucos de torcida organizada e, em 1980, haviam poucos deles.
O Soró não era paulistano, era cearense e natural do Crato, no entanto, se alguém perguntasse do Fortaleza e do Ceará, ele fechava a cara e tascava:
_Não faço ideia do que você está falando, nasci maloqueiro e vou morrer corintiano.
Se o sujeito insistisse nesse caminho, ele engrossava e mandava tomar no...
Como nessa época, quem mandava em tudo era o Doutor, usando tática de guerrilha, invadimos o estádio várias vezes e, também fomos encaminhados ao departamento de polícia, como éramos menores de idade, nem chegávamos a ficar em celas.
Ele morava numa pensão na avenida Liberdade e eu alugava um quartinho na rua dos Estudantes e concordamos que o melhor lugar para apreciar uma boa cerveja, era na rua Maria Paula, bem de frente pro viaduto e São Paulo toda na porta da rua.
Num domingo morno, quando o sol caia por cima da cordilheira de prédios da 23 de Maio, iniciei uma prosa:
_Meu amigo Soró, como pode um cara que nasceu no Ceará, ser fanático por um time da capital, veja, eu sou nascido no Bexiga, filho e neto de corintianos, isso é normal, ninguém vai estranhar...agora, um cara do Crato, tem paciência Soró.
A garrafa da mesa já se findava, bebeu aquele restinho que ainda estava no fundo do copo, numa tranquilidade de quem só estava começando, levantou a mão para o garçom, mostrou dois dedos para ele, assim que se fez entender pelo garçom, respirou fundo e olhou na minha direção, com a maior calma do mundo disse:
_Caro amigo Niltão, não é por ter nascido nessa terra ou por razões de hereditariedade que você é corintiano.Você é corintiano de verdade, porque lhe faltam alguns parafusos na cabeça.
O garçom chegou com as garrafas e encheu os copos, sob a nossa vista, virou os copos para que o colarinho não fosse muito grande, eu já ria esperando o fim do pensamento do amigo.
Estalou os dedos no ar, como se isso fosse ajudá-lo a lembrar o ponto que havia parado a conversa...Ah sim, parafusos.
_Então, a mim também faltam os parafusos, a única diferença é que eu nasci no estado do Ceará.

Em memória de um amigo especial.


Não conheci o Valdir Nascimento no Educandário Dom Duarte, quando de lá sai, fiquei um tempo morando com o meu pai adotivo, o Ditinho da gráfica, no centro de Sampa.
E conheci-o, nesse tempo, ele era chefe da cozinha do Maksoud Plaza, disse-me que aprendera a profissão com o irmão Simão, quando era interno do pavilhão 16, homossexual assumido, tinha ideias próprias e uma dignidade na postura e, por conta disso, estava sempre envolto em discussões calorosas.
Quando eu cheguei no Educa, ele já estava saindo.
O Valdir costumava dizer que, toda pessoa, independente de religião, raça ou opção sexual tem que andar de cabeça erguida e fazer valer seus direitos. Nesse tempo, que o adulto em mim estava quase por se formar, esse adulto deu-me os últimos ingredientes e, é claro que ele virou um amigo de primeira grandeza.
Mais tarde, lhe apresentei a Ângela, de quem ele virou mais amigo ainda do que era meu.
Num tempo de dificuldade financeiras, convidamos-o para morar conosco, na Osvaldão e, ele experimentou, pela primeira vez na vida, o prazer de ter uma família, para os meus filhos, ele sempre será o tio Valdir.
Quando soube que era portador do vírus HIV, como era do seu feitio, não fez drama e encarou a situação de frente e, quando sabia que o fim se aproximava, internou-se.
Disse que queria poupar as crianças e, não queria que os amigos o vissem no fim, sem um sorriso.

Você gosta de Carnaval ?


A mim, não foi dada essa escolha. Nasci no Bexiga, filho de diretor de harmonia, tudo o que eu ouvia era samba, descobri mais tarde que o samba é a mãe de todos os ritmos brasileiros.
Minha vó Urbana era costureira da Vai-Vai, casa pequena na Major Diogo, a máquina de costura ficava ao lado da cama que eu dormia.
As moças a experimentar as fantasias e eu a fazer que dormia...
Então o meu amor pela Vai-Vai é sagrado e profano.

"Descobri que além de ser um anjo...


Eu tenho cinco inimigos “...
Nunca julguei o caminho de ninguém, no entanto, trilhei o meu e tentei passar aos meus comandados o caminho que eu julgo certo e, creio ter feito a diferença, não como um fanático e sim pelo simples fato de ser o certo a fazer, sem esperar nada em troca.
Quando cheguei à Chácara Bela Vista, tomei de assalto o comando do esporte, se não o fizesse, pessoas de má índole o faria.
Andei por todos os blocos, à cata de meninos, pra provar que praticar esporte seria mais lucrativo que ser aviãozinho do tráfico.
No recrutamento, um pai me disse:
_Não quero meu filho envolvido com essa gente do futebol, não presta essa gente do futebol.
Argumentos eu tinha, só não quis discutir e relevei, a opinião das pessoas deve ser respeitada.
Juntei esses meninos com os que já eram do time e aos meus filhos, dei a eles ensinamentos da vida e provei pra eles que heróis de verdade eram seus pais. o Dínamo passou a representar o bairro e, se nada funcionava e não havia condições, assim mesmo, nos tornamos exemplo de lealdade e correção, a ponto de todos os moradores torcerem por nós.
Os anos se passaram e uma epidemia se alastrou pelo bairro, a droga e o crime mostraram sua face horrenda.
Numa tarde de sábado, eu no meu comércio, por não haver jogo, quase todos os meninos estavam em frente da minha banca, ouvindo Rap.
Aquele pai, que anos antes havia me repelido, me chamou de canto.
_Eu sei que fui cretino, mas descobri que a única turma que não tem envolvimento com as drogas é justamente a turma do futebol, meu filho anda por aí sem rumo e eu queria que ele fosse feito os seus meninos.
Ainda que, soasse como vingança para mim, essa é uma situação que não me alegra ter razão, aquele menino, por ignorância do pai, já havia se perdido.

A aposta


Sempre vou afirmar que a Osvaldão era a rua das mulheres guerreiras, não é, nem nunca será exagero.
Duas Zulmiras, uma vinha de tarde do serviço e tinha um monte de filhos, a quem sustentava sozinha, essa Zulmira, magrinha com um olhar quase infantil e força de leoa na defesa de suas crias, a outra era mais velha e todos chamavam de dona Zulmira, a mesma história, sozinha a criar uma penca de filhos, essa ralhava com os meninos que brincavam com bola na rua porquê na frente de sua cerca cuidava das rosas e, em tempos de Cosme e Damião, dava doces para elas.
Criar os filhos, plantar rosas e dar doces, não é para qualquer um...ah, não é mesmo.
Quem passava de ônibus, subindo a João de Lorenzo e via aquele pedaço de rua, não fazia ideia de que um universo cabia naquela rua quase insignificante.
Os homens eram todos amigos e o ponto de encontro era no bar do Vô, um orelhão que servia a todos, ficava bem na porta e o número dele constava em todas as fichas dos moradores, era 810 3014.
Numa bela tarde de domingo, ninguém entendeu o fato de o Francisquinho ter sido carregado em triunfo, aplaudido e ovacionado, o motivo ninguém contou, nem para as mulheres nem para as crianças.
O Francisquinho e o Vô eram os mais velhos da rua, totalmente diferente um do outro e, assim mesmo, eram amigos.
Já disse que o pai da dona Maria cabeleireira contava causos de sua terra Ipiaú e o fazia como se declamasse um livro de cordel, quando contrariado, soltava a frase imortal.... Esta não, esta não.
O Vô, que também era chamado de Véio Dila, gostava também de histórias, as melhores histórias dele eram de presídio, ele havia cumprido pena em Ilha Grande e, na mesma cela de Gregório Fortunato, o Anjo negro, braço direito e amigo pessoal do presidente Getúlio Vargas.
Entre esses dois, a resenha era garantida e muitas risadas também.
Nesse domingo memorável o Vô chamou o Francisquinho de enrolador, ele, feito um galo de briga, subiu na mesa de bilhar e disse desaforos, claro que ambos bradavam e riam ao mesmo tempo.
Assistindo a pendenga, estávamos, eu, o Hamilton taxista, o Maurício, o Carmelo, o Paulo e o Clóvis, os últimos três, além de moradores, eram vigilantes do cemitério Israelita.
O motivo da discussão...todo mundo sabia que o Francisquinho, que já tinha mais que 80 primaveras, tinha um rabicho com a Mineirinha que, não tinha uns 30 anos.
Na opinião do Véio Dila, aquilo era só fantasia, na verdade, o baiano não dava contado recado, usando as palavras dele:
Só fogo de palha.
Ao que, o Francisquinho havia demonstrado ter ficado muito ofendido, gesticulava e falava alto, quando alguma mulher ou criança passava na rua, ele disfarçava, não me lembro de um dia ter dado tanta risada na vida.
O Vô sugeriu e todos toparam a aposta, cada qual com uma quantia e se casou o dinheiro, nesse instante, entrou na rua a mencionada Mineirinha, todos apostaram contra o baiano, só eu fui a favor dele.
Para que desse certo, o Francisquinho tinha que se esconder, ele entrou e se escondeu no balcão do bar, o Véio Dila fez sinal para a moça, ela parou e ele tascou a pergunta:
_Mineirinha, o Francisquinho dá no couro????
Todos os outros fizeram que não ouviram a pergunta, a Mineirinha respirou, coçou a cabeça e, não se limitou ao simples sim ou não, disse:
_. Uai sô, aquele véio tem mais fogo que esses meninos mudernos.
A cara do Vô foi ao chão, o baiano saiu do balcão glorioso, nessa hora eu já havia caído no chão de tanto rir.
Todo mundo dando vivas ao Francisquinho e a coisa ficou pior, derrotado, o Véio Dila deu um beijo nele, disse que ele era o seu herói, o Francisquinho afastou o amigo de si e disse:
_. Esta não.

Um ponto na história.


Quando estavam em idade apta pro trabalho, os internos começavam a trabalhar fora, e isso lhes conferia uma moral a mais, os mais novos morriam de inveja.
Todo santo dia, o cara tinha que entregar a marmita na cozinha central, de manhã, antes da sair, voltava lá e ela estava cheia...um bom dia pro irmão Simão e, bóra batalhar.
Muitos seguiam as profissão que fizeram curso no aprendizado, a grande maioria virava office boy mesmo.
Conta a lenda que o Pingola do 20, pegou um engarrafamento na avenida Brasil de 3 horas, desesperou-se e, diante de um ônibus lotado, traçou, sem cerimônia a marmita, a mistura era dois ovos cozidos, após ter terminado, arrotou, fechou a marmita e fez cara de paisagem.
Não sei não, o Edivaldo era meio doido e ele sempre saia com aquele meião verde do Guarani.
Voltando ao assunto, grande parte desses meninos eram boys, nas filas dos bancos e das repartições públicas se encontravam, e se ajudavam nas filas.
Esse convênio que o Educa tinha com as empresas, também era estendido aos menores da FEBEM, isso fez com que as relações se estreitassem e ficaram mesmo amigos.
E assim, enquanto uns ficavam nas filas, outros jogavam bola na rua, o movimento cresceu tanto que, em 1981 a rede Globo criou, nas manhãs de sábado, um programa esportivo chamado "Showbol".
Um campeonato de rua, os participantes eram oficce boys.
Até uns anos atrás eu tinha essa medalha.

O lugar mais lindo do mundo.


Nas manhãs de inverno, quando se perguntava se havia mesmo motivo em sair da cama, uma densa névoa cobria a estrada que levava ao cenáculo, uma bruma que dava impressão de se ter chegado ao céu.
Nas manhãs de primavera, antes do sol se firmar, florezinhas amarelas traziam as borboletas coloridas na subida da jaqueira.
Em alguns dias de julho, um bando de guris esperava embaixo da araucária gigante, o momento certo da penca de pinhões despencar.
Na frente do pavilhão 14 havia uma área sombreada, sombra suave produzida por uma fila de seringueiras bem podadas, atrás do pavilhão uma fileira de uvalhas floresciam e traziam as abelhas, do lado de fora dos dormitórios, uma enorme primavera estendia seus galhos com espinhos e dava flores lilás.
Mesmo conhecendo muitos lugares de São Paulo, o Educa nunca deixou de ser o meu cantinho, meu lugar mais lindo na terra.
Vindo de ônibus, de qualquer lugar, no começo da Raposo Tavares se sentia a temperatura amenizar, se podia sentir a mudança de ares, na curva do cemitério israelita o ar melhorava mais ainda, o coração se sentia em casa, quando se entrava na portaria e iniciava-se a subida de paralelepípedos vinha a sensação de se estar em casa, uma subida que valia pela beleza, do lado direito os prédios mais lindo estavam perfilados, do lado esquerdo o imponente campão se exibia, depois vinha o lago sem nome e o bambuzal, no fim do turismo fantástico se ficava em frente ao SENAI, uma curva à esquerda e vinha o teatro, sempre se dava sorte arrancar uma folha do buchinho que crescia em seu jardim em forma de círculo, no lado esquerdo uma longa depressão punha a piscina aos nossos pés e a vista do campão era muito mais imponente e, se iniciava a subida da jaqueira.
À despeito do meu jeito introvertido, os amigos do 14 eram mestres em tudo o que se referia a habilidades de criança, com eles aprendi tudo, de jogar bolinhas à andar de pernas de paus.
O irmão Augusto se referia a eles como índios e quando faltavam cobras no viveiro, recorria a eles para caçá-las.
Raros eram os meninos que ficavam na terra batida da entrada do pavilhão, salvos os meninos que tinham limitações físicas, o Lucídio e o Adalberto eram esses, raramente saíam dos arredores do pavilhão e gostavam de brincar na sombra das seringueiras.
Paralela às seringueiras, num plano mais baixo, corria uma estrada que findava no pavilhão 15, do lado direito tinha o bananal do 14, a poucos passos da nossa caixa de alvenaria, uma enorme árvore havia sido cortada, ficando ali somente a raiz e ela não morreu, no meio da raiz havia um enorme buraco, dentro desse buraco as abelhas fizeram uma colmeia.
Não se tratava de uma colmeia pequena, quem vinha da bifurcação do 12 ouvia o zunir das abelhas e isso contava uns cinquenta metros de distância.
Os guris do 14 dominavam o ambiente e sabiam tudo da terra, do tempo de plantio, época de amadurecimento e comportamento das plantas e dos insetos, só não dobravam o ar...eu e o Ovinho éramos os gafanhotos, os aprendizes.
Enquanto o Viana, o Edson, o Tequinha e o Spock se aproximaram do tronco, nos mantivemos a uma boa distância do perigo.
O sexteto era assim, quatro mestres e dois aprendizes.
Trouxeram uma câmara de bicicleta rasgada em tiras, um saco de estopa, uns pedaços de paus e uma garrafa de gasolina, não tenho certeza, mas, acho que o último artigo foi roubado do Fusquinha do seu Odilon.
Amarraram as borrachas nas pontas dos paus e cobriram com as estopas, quatro tochas, antes de as empaparem na gasolina, o Spock gritou para o Adalberto e o Lucídio se afastarem, eles observavam da parte mais alta do barranco, correram para a área do pavilhão e se esconderam.
O zumbido aumentou quando o fogo foi aceso, a tocha produzia uma fumaça preta e as abelhas começaram a se afastar, os quatro brandiam as tochas na direção do epicentro, em breve saborearíamos o mais puro dos sabores do mel.
Quando o Viana já havia pego um favo nas mãos, houve uma reviravolta e um enxame atacou o Spock e ele começou a gritar soltando a tocha, os outros, tomados pelo pânico, soltaram tudo e correram, eu e o Ovinho ganhamos a dianteira e descemos correndo o bananal, atravessamos-o e caímos no fundo do teatro, haviam uns guris do 13 ali, nos viram correndo em sua direção e se assustaram, pensaram se tratar de um ataque vietnamita, gritamos:
_Abelhas.
E esses engrossaram a turma de corredores, perto dos buchinhos haviam mais guris, que passaram a correr também, já estávamos longe e as abelhas não desistiam, ganhamos a picada que fica acima da arquibancada da piscina, correndo ao lado do lago a turma já chegava a uns vinte guris, os guris grandes que tocavam violão na arquibancada, entraram no pelotão e nada das abelhas pararem, a colmeia toda estava no nosso encalço, quando vencemos a subida do bambuzal, percebi que na gola longa da camisa do Spock uma abelha maior que as outras jazia tranquila, já atravessávamos os paralelepípedos rumo ao gramado do Grupo Escolar e então eu gritei.
_Spock, tira a camisa.
Ele, que gritava das dores das ferroadas, batia no próprio rosto.
_. Tira a camisa, você está levando a rainha.
E passaram todos a gritar para o Valter se livrar da camisa, no meio da grama, a camisa dele ficou e toda as abelhas foram para lá.
Param todos os guris no jardim da frente da escola e passaram a contabilizar os prejuízos, eu havia tomados umas cinco ferroadas, nenhuma no rosto, o Ovinho havia tomado umas três, todas no rosto e parecia um personagem de filme de terror, foi difícil não rir da sorte do amigo, por umas boas meia hora ficamos ali conversando e rindo, saímos em 6 do 14 e fomos arrastando quem estava no caminho, haviam uns vinte guris agora e história para contar no recreio da segunda feira.
Pelo caminho de volta achamos a terra de formigueiro, molhamos com cuspes e cobrimos a feridas, coisa de índio.
Quando chegamos ao 14, o Lucídio e o Adalberto já haviam enjoado de tanto mel.

As manhãs de domingo.


É certo que Ayrton Senna é incontestavelmente um mito, e quanto a isso, nada e ninguém vai apagar da memória do povo.
Mas, tenho a impressão de que, quem não viu e viveu esse tempo, não alcança a verdadeira proporção dessa grandiosidade.
Sou paulistano, daqueles bem típicos, que torcem o nariz pra tudo e gostam de ser do contra, qualquer ideia, ou comportamento, ou filosofia, jamais conseguirá arrebatar metade das cabeças desse povo.
Aí, vem um piloto e ganha a unanimidade, a ponto de fazer o povo acordar de madrugada, pra assistir um esporte que, a maioria deles sequer conhecia as regras e nem importavam, quando o carro do Senna quebrava era o fim da corrida, mesmo que fosse à primeira volta, os televisores eram desligados.
Todos sabem que a Várzea é mais que um costume, é uma espécie de religião, os adeptos desse esporte defendem seus bairros e cidades, como se defendessem suas famílias.
Em domingos de corridas do Senna, algumas Ligas não marcavam jogos pra esse horário, cansei de ver, durante as partidas, jogadores dos times adversários correrem pra torcida pra saber o andamento da corrida, no calor da peleja, alguém gritava:
_O Senna está na frente.
Os inimigos esqueciam as diferenças e comemoravam, quando a corrida acabava, o couro comia.
Em 1991, eu trabalhava muito e ainda fazia bico, consertava rádios antigos pra me defender.
Havia marcado uma visita pruma madame em Moema e ela possuía uma coleção de rádios dos anos 40 e 50, isso me daria o equivalente a uns 20 salários e eu não gastaria mais que 6 horas na empreitada.
Tudo maravilha, quando eu marquei não sabia que haveria corrida, acordei cedo e a primeira vontade foi jogar o serviço pra outro dia, olhei meus filhos pequenos e achei que não seria certo, com o coração apertado me lancei ao sacrifício.
Tinha que pegar um ônibus pro centro e lá, um que fosse pro Ibirapuera, meio caminho... Moema.
No ponto do Educandário, várias pessoas se aglomeravam em volta do radinho do seu Felipe e o narrador já anunciava as posições da largada, não tive tempo de me encostar, já vinha o ônibus e entrei.
Pouca gente no transporte, o motorista e o cobrador, dois guris no fundo, uma senhora de idade avançada que usava um torço na cabeça, dois bancos a frente dela uma senhora que as roupas denunciavam ser evangélica, à direita um senhor muito branco com bigode afinado, no banco mais próximo do cobrador um senhor escuro tinha um Motorola vermelho e ouvia a transmissão de corrida, tendo muito lugar vago, sentei-me ao lado desse, me sorriu e ajeitou o aparelho no colo, o cobrador inclinava-se para melhor ouvir, vamos embora.
Largou mal o Senna, estava entre os quatro primeiros na largada e caiu pra posição 17.
_Sem terror, o Senna busca. Disse o cobrador, eu e o dono do rádio rimos confiantes.
No ponto da Praça Elis Regina o carro parou e entraram uns passageiros, sentaram-se perto de onde vinha o som da corrida, visivelmente irritado o motorista gritou:
_Ô meu senhor, aumenta o som que também sou filho de Deus.
Som no máximo, a dona do torço sorriu satisfeita, com um ar alheio a evangélica olhou pra fora da janela, já vinha acelerando o danado do Senna e recuperava duas posições.
Na Paineira, farol fechado, um caminhão da Eletropaulo emparelha o motorista pergunta pro nosso motorista sobre a corrida.
_Tá chinelando e recuperando posições, essa tá no papo.
Existe um clima de amistosidade no transporte, pessoas que mal se conhecem partilham da mesma alegria, ainda que a senhora evangélica pareça não dar à mínima, todos estão eufóricos, Senna pisa fundo e manda mais dois corredores pra fila, a senhora do torço grita:
_Ah, muléque abusado.
Em Pinheiros, no ponto da Faria Lima vem à tristeza, o dono do rádio levanta-se e puxa o fio pra descer, bastou uma fração de segundo e aquele homem passou de provedor da alegria para um odioso estraga prazeres.
Ônibus parado no ponto e deu à impressão que o motorista não ia abrir a porta, todos torceram por isso, o cobador balançou a cabeça:
_Mano, aí já é sequestro.
O motorista muito contrariado abriu a porta, não sem antes rogar uma praga.
Entramos na Rebouças em silêncio, olhando nas ruas, procurando no vazio de domingo uma alma portando um rádio, a mulher evangélica não aguentou a pressão e gritou:
_A culpa é sua motorista, não devia ter deixado aquele homem sair.
O motorista não se defendeu como todos nós caiu na gargalhada, diante disso, a mulher analisou direito o que acabara de falar e nos acompanhou nas risadas, nesse instante, num dos prédios residenciais, vi um grupinho de pessoas reunidos na mesa do porteiro, paguei a condução e atravessei a catraca, disse pro motorista parar o ônibus, desci e ainda na escada perguntei, me responderam que já ia em sétimo lugar, voltei pro ônibus e todos gritaram de alegria.
Na passarela que dá acesso ao Hospital das Clínicas, o vendedor de doces, que também estava cercado de dezenas de pessoas, gritou que já havia alcançado mais uma posição.
Na Consolação, policiais e agentes do transito paravam as motos irregulares, no lado oposto do cemitério, infratores e cumpridores da lei ouviam a corrida, um homem em vias de ser algemado, gritou feliz.
_Ele já está em quinto lugar, Ayyyyyyyyyton Senna do Brasil.
Na Praça Roosevelt, vindo da Avenida São Luis, um rapaz muito magro com calção azul, camisa da seleção canarinho e capacete amarelo na cabeça, passou correndo e gritando que era o Senna em pessoa, não nos restou nada, que não aplaudi-lo.
Chegamos à Xavier de Toledo, final de linha, e havia uma televisão numa barraca de cachorros quente, juntamo-nos às centenas de pessoas que se acotovelavam e gritavam, vimos o Senna assumir a ponta e vencer mais uma, na bandeirada final, abraços e sorrisos.
Caminhei até a Sé, retribui os sorrisos das pessoas que comemoravam ...oficialmente o domingo acabara de começar".

Golias


Joana se sentia segura em casa, mantinha na grosso corrente o
Rottweiler tamanho gigante, o bicho apavorava a vizinhança.
Não gostava muito do bicho e nunca dava carinho, em horários marcados, dava-lhe a parca ração.
Gostava mesmo é da gata angorá, que dormia na cama com ela e comia ração importada, vivia mesmo no colo, a linda gatinha.
Nunca passou em sua cabeça que, o terrível Golias observava a tudo e, dentro dele, foi crescendo uma revolta surda.
Enquanto ele tinha seu mundo reduzido, os poucos metros que a corrente permitia, a gata corria a casa toda, o jardim e, pulava o muro todos os dias, isso quando não estava no colo da dona.
Joana morava só e se sentia segura, por conta do serviço que tinha, se viu obrigada a se ausentar por um fim de semana.
Fácil, em vasilhas de ração e água, deixou a quantia exata para dois dias, tanto para gata mimosa quanto para o velho Golias e se foi.
Não era patroa, a Joana, as coisas se complicaram e não se resolveram tudo, nos dois dias que ela havia programado, teria que ficar um dia a mais fora de casa.
Tentou ligar para os vizinhos, por medo do Golias, todos disseram que só podiam alimentar a gata, quando ela fosse à rua.
Joana pensou que um dia sem comer não fosse matar o seu cachorro.
No terceiro dia, o Golias não tinha mais o que comer, a fome fez a revolta aumentar e ele se encostou na parede, solidão até podia ser, morrer de fome... nunca.
A gata tinha um ritual, sempre no mesmo horário, ela escalava a grade da garagem, olhava o Golias com ar de desprezo e pulava o muro para o lado de fora, ao cabo de meia hora voltava, olhava o cachorro de novo e entrava na casa.
Quando mimosa voltou, notou que o Golias não estava na frente da casinha, como de costume e então ela não poderia dar o seu olhar de desprezo rotineiro, antes de entrar em casa, foi verificar onde estava o cachorro feio e maltratado.
Dizem que a curiosidade matou a gata, a gata mimosa entrou na casinha do cachorro e estava escura, a última coisa que a gata teve na memória foi uma boca se abrindo e tudo ficou escuro.
Quando Joana voltou para casa, chorou a ausência da gata e por saudade, se aproximou mais de Golias.
Para substituir a gata, a moça trouxe uma outra gata que, com o tempo, sumiu também.
Golias agora não ficava mais preso na corrente, os gatos da rua começaram a sumir.
Nem tocava na ração, o Golias, mas estava sempre forte.

Homenagem aos anos 80.


Se, os meninos tiveram nomes estudados e cheios de homenagens e, coisa e tal.
O nome da menina teve outro critério e, anos antes do seu nascimento, já se chamava Stéphanie.
Em todos os bailes e festas, havia uma determinada canção que, mexia com todos, antes da batida apaixonante, tinha uma melodia característica, uma anunciação, antes da voz da Stéphanie Mills, vinha esse toquinho e, todo mundo gritava.
Eu, como a maioria dos black, gostava muito da música " Never Knew Love Like This Before".
Então, do nada, eu disse pra namorada e, futura mãe da minha filha:
_Minha filha vai se chamar Stéphanie, pra eu me lembrar dessa felicidade de agora.
A moça apreciou o valor do que eu havia dito e tascou:
_Que legal, a minha também.

Essa é legal.


Pra editar um vídeo, eu primeiro procuro o autor ou autores, pra mim isso tem muita importância.
Bom, alguns vídeos demoram meses, alguns autores assinam com um só nome e, se tem que pesquisar, filtrar informações até chegar no dito cujo.
Peguei uma canção do Tim Maia e o autor era um tal de Luiz Carlos, deu trabalho a busca, trabalho de detetive mesmo.
Foram 3 meses e cheguei ao cara, só que ele agora é evangélico e só canta música gospel, imagine um cara que foi parceiro do Tim Maia nos anos 70, devia ter sido um cara da pesada, achei ele no Facebook e achei que ele me receberia mal, talvez ele nem quisesse se lembrar daquela época, sei lá.
Mesmo assim, mandei uma mensagem explicando sobre o meu serviço de valorizar o autor e, se ele podia me ceder uma foto.
Em 10 minutos veio a resposta:
Ô amigão, você me faria esse favor????

Uma historinha legal.


O ano era 1981, eu tinha 15 anos, ou um pouco mais, trabalhava numa empresa que fazia leitura das máquinas Xerox, amava isso, andava muito e já trazia a paixão pelas músicas dos caras do Clube junto comigo.Na época eu havia comprado um gravador portátil e carregava, na minha bolsa de couro, umas fitas cassetes, que eu próprio editava, em todas as seleções, havia essa faixa"Belo Horror" do Beto Guedes, pra iniciar.
Como eu disse, andava muito e sempre ouvia as minhas músicas, num fone de ouvido enorme.Dá pra imaginar a figura...um cara magrelo com uma cabeleira enorme, dividida pela aste do fone e, era pior...de quando em quando eu gritava, pra acompanhar a música.
Como eu, quase, não falava com ninguém, fazia muito mais leitura que todo mundo, intrigados com isso, o gerente de produção e o dono da empresa me chamaram pra uma entrevista, perguntaram qual era o segredo do meu sucesso. Calmamente abri a bolsa, tirei o gravador dela, desconectei o fone, sem dizer nada, apertei o botão primeiro...da esquerda pra direita e deixei ecoar a música na sala. Ficamos em silencio, coisa dumas meia hora, ao terminar a fita sai da sala, disse à eles que tinha que comprar pilhas. No dia seguinte, os auto-falantes da firma, passaram a só tocar músicas do Clube da Esquina.