segunda-feira, 25 de junho de 2018

Uma música muito curta

Na infância, sempre associei o Chico à Philips, aquele disco preto de vinil, sempre a marca era maior que o nome do artista e, no orfanato em que eu cresci, por ser simpático à esquerda, a execução de suas músicas eram proibidas.
Então, ouvir Chico Buarque era um gesto de desobediência civil, a diretora acreditava nisso, aquela bruxa.
A Rúbia era, das moças que nos cuidavam, a que mais amávamos, tinha um corte de cabelo que imitava o da Elis Regina, vestia calças de jeans desbotadas e sandálias franciscanas e era militante do clandestino partidão.
Em sala de estudos, sempre nos dava as letras do Chico, escrevia-as no quadro e, pelejámos para ver o sentido das palavras e, de quebra, as mensagens ocultas, postas na lousa, a anta da diretora as via e nem fazia ideia de que eram letras do Chico.
Como eram proibidos os discos do Chico, na biblioteca haviam vários da Bethânia, da Gal e da Clara Nunes e foi justo dessa última que, com muito carinho, a Rúbia tirou o vinil do encarte, disse que essa era muito romântica, os olhos castanhos, quase verdes da moça crispavam, todos os trinta guris tinham oito anos e estavam hipnotizados, ela já ia na casa dos vinte e cinco e era nossa paixão, a música só poderia ser executada uma vez.
A agulha caiu sobre o disco e a voz perfeita da Clara ecoou, dois minutos e pouco mais:
"Pra mim basta um dia...
Ao fim da execução protestamos:
_Como pode tanta perfeição num curto espaço de tempo???
Isso foi em 1976 e ainda ouço essa canção quando faço silêncio, estávamos errados, como pode uma canção tocar por tanto tempo???