quinta-feira, 27 de abril de 2017

Rebola Sebastião, rebola.


  É um fato que o Sebastião do 14 morreu... Modelou o corpo, pôs peruca, trocou o sexo e nasceu “Lene Summer”, uma mulata que fazia shows e morava do Edifício Copan.
  Conheci-o, ainda na Casa de Infância do Menino Jesus, ambos tínhamos quatro anos, e para quem acha que a convivência influencia na opção sexual, garanto que não, ele sempre foi assim, um menino com alma de menina e não sofria por conta disso, criança não tem preconceito e, as freiras não viam nisso, uma falha de caráter, portanto, cresceu assim. 
  Caçula de uma família que já tinha quatro filhas, o pai com idade avançada e viúvo, resolveu interna-lo num colégio, na esperança que ele virasse homem, do pai, que era palmeirense roxo, herdou o gosto pelo futebol e virou goleiro, mas torcia mesmo para o Santos.
   _Por que o Santos, Sebastião? Perguntavam os outros meninos.
   _São muito mais lindos, os crioulos da Vila Belmiro. 
  Jeito de quem não veio ao mundo a passeio, ria com facilidade, em dia de visita, uma de suas irmãs vinha visita-lo com roupas brancas e turbante, como é habito de praticantes da umbanda, ele se aproveitava bem disso, dizia que se o aborrecessem, faria uma mandinga e já era... 
  Crianças criadas no rigor do catolicismo morrem de medo de magia, ninguém ousava discutir com ele. 
  No último ano neste colégio, tive meu momento de glória, cobrei o pênalti que levou meu time ao título e não vi a bola alcançar as redes, na minha mente ficou o goleiro se esticando no canto, quase rente à trave, quase que ele pega a bola. 
  Na Casa de Infância, haviam 2 grandes goleiros, o outro era o Valdir Lustosa. 
  Quase chegando o dia da apresentação do nosso show no Educandário Dom Duarte, a madre Dolores nos mostrou a roupa que usaríamos na ocasião, no alto dos meus nove anos, dono pleno da minha vontade, disse à religiosa:
   _Madre, eu respeito e amo a senhora com todo o meu coração, mas, por nada e por ninguém nesse mundo, eu subirei num palco, para cantar e dançar vestido em meias calças.
  Fui enfático, quando terminei de falar, o Gilberto e o Fabiano pularam para o meu lado e, fizeram deles, as minhas palavras. 
  Ante o olhar triste da freira, o Sebastião olhou-me com o seu olhar de cólera, juntou as duas mãos nas ancas, bateu o pé direito no chão e com um ar de desprezo, fuzilou:
  _Ai Nilton... Como você é grosso.
  E garantiu à freira que o show continuaria, fomos substituídos pelo Paulo Régis e o Hélio e assim, deu-se a catástrofe da festa da Liga de 1976.
  Quando nos mudamos para o Educa, o Sebastião estava gozando as férias e não chegou conosco na Kombi do seu Paulo, chegou umas semanas depois, trazido pela irmã.
  Quando disseram que havia chegado o “NOVÂO”, fui lá para, se fosse o caso, defender o amigo.
  Logo que ele se despediu da irmã, foi à rouparia, o ajudante da dona Ana era o Téquinha, eu e os outros meninos ficamos perto, quando me viu o Sebastião sorriu, o Téquinha estava com as roupas marcadas com o número, o irônico 124, que ele adotaria dali em diante, entregou-lhe o monte de roupa, o novato agradeceu, saiu rebolando e sorrindo, vendo isso o Téquinha não resistiu e gritou:
  _. Ei novão, você é viado?
  Parou o Sebastião e voltou-se, na direção do ajudante:
  _. Sou sim, está perguntando por quê? Você também é?
  Contrariado, o amigo, vendo que o novato vinha em sua direção, não teve alternativas, a não ser a de correr, os meninos que acabaram de chegar, queriam saber o que havia acontecido, quando souberam, nos acompanharam nas gargalhadas, assim foi o primeiro dia do Sebastião, o esperto que queria fazer a piada, acabou virando a piada.
  E então, vem uma coisa contraditória que, acontece em internatos, tem graça fazer piadas e galhofas com quem não é homossexual, se xingar um menino de viadinho e ele não é, tem-se no mesmo instante, uma discussão, que pode se levar a uma briga, mas, quando o menino é assumidamente, perde-se o clima da dúvida, não tem graça e, ninguém fala mais nisso, com o passar do tempo, o Sebastião virou o ajudante da dona Ana, que o tratava com atenção diferenciada, o próprio chefe Odilon sequer brigava com ele, posto que, ele ainda era a babá de seus filhos, sequer pegava na enxada, feito os outros meninos, quase não saía dos arredores do pavilhão.
•  ... E vai a vida no seu caminhar contínuo e gradual, meninos crescendo igualmente, nas suas diferenças.
  Por conta da fama do futebol dos internos, logo que fomos estudar no Attiê, uns meninos da Rua Santa Bárbara, me convidaram a levar um time de internos para um desafio, valendo Tubaína.
  O campo era, na verdade, um terreno descampado perto da favela do Uirapuru, quase ao lado do campo do Palmeirinhas, levantaram duas traves de madeira e, no espaço, só cabiam seis de cada lado, cinco na linha e o goleiro.
  Topei na hora, chamei o Feliz e o Viana, meus parceiros e fui ao pavilhão 12 para recrutar o Zé Almir e o Fabiano, o nosso goleiro era o Valdir Lustosa do 24.
  Começou assim o time profissional “do Nilton”, o time não era meu de fato, e como não escolhemos um nome paro time, os outros meninos, quando eram interrogados acerca do que iam fazer, respondiam:
  _Vou jogar no time do Nilton.
  Profissional, porque jogávamos por Tubaína, nessa brincadeira, corremos e jogamos em vários campinhos da região e ganhamos o respeito dos moleques da área, representando os internos.
  Um belo dia, me apareceu no 14, uma dupla de guris mal encarados que moravam no Taboão da Serra, queriam marcar um festival num campinho que ficava atrás do Cenáculo, a tomba seria 10 cruzeiros, meu sexto sentido me avisou que havia coisa errada, chamei o Viana e falei para ele, como meu melhor amigo, ele sabia que nunca falhava minha intuição, mesmo assim, ele fechou com os meninos, aquele neguinho gostava de brigar mesmo.
  Tinha que arrumar o dinheiro da tomba, meninos normais pedem dinheiro para os pais, eu não o tinha, a relação mais aproximada que eu tinha de paternidade era com o seu Tinoco.
  Desci à administração e joguei a conversa no seu Tinoco, o velho esperneou, disse poucas e boas, xingou e amaldiçoou, meteu a mão no bolsinho de dentro do colete e jogou 30 cruzeiros na mesa:
  _Some daqui, menininho cacete.
  No sábado, véspera do jogo soube que o Valdir havia trincado o pulso, bateu o desespero, corremos o Educa todo e não havia um goleiro, sequer um miserável de um goleiro, num raio de 300 quilômetros quadrados, resolvi que, ou eu ou o Viana nos revezaríamos no gol, fomos ao 12 e chamamos o Lourival para completar a linha.
  Reunimos a turma na piscina e subimos a ladeira da jaqueira, sem o Valdir estávamos sem confiança, logo num jogo à dinheiro, lamentávamos o azar e eu, com a sensação de perigo eminente, com a aproximação do perigo, o Viana esfregava as mãos.
  Na estrada, ouvimos alguém cantando no pavilhão 14, olhamos para saber de onde vinha a música e avistamos o Sebastião varrendo a área de terra batida, tinha uma vassoura feita de galhos de bambu e cantava com euforia:
  _Menina, eu sou é homem, menina eu sou é homem...
  Não pudemos evitar a gargalhada, para rir eu fechei os olhos e assim, a cena do pênalti me voltou como um filme:
  _Ô molecada, o Bastião é goleiro.
  Não pararam de rir os guris, depois que falei, riram mais ainda, perguntei então se alguém estava a fim de ser goleiro, cessaram-se os risos, rápida reunião, resolveu-se que, ter um goleiro seria bom, mas, a postura do Sebastião iria nos desmoralizar.
  Fomos, eu e o Viana falar com ele, ele topou na hora, o Viana disse que ele teria que se postar feito homem.
  E, uma prévia aula de masculinidade foi ministrada.
  No caminho que levava ao Taboão, passamos no Cenáculo e comemos as bolachas das freiras, com era do nosso costume e, fomos procurar o campinho, o Sebastião tentava se postar feito homem e imitava o nosso andar, caminhava uns metros com o andar firme e rebolava outros metros.
  O Viana que vinha atrás corrigia lhe a postura:
  _Pare de rebolar miserável, pare de rebolar seu viado.
  O Sebastião andava feito nós por alguns metros e tornava a rebolar e o Viana tornava a gritar:
  _Pare de rebolar moleque. O resto de nós ria, todos, com exceção do Viana, sabíamos que ali não haveria conversão.
  Chegamos ao campinho, os outros três times já nos esperavam, casamos o dinheiro e fizemos o sorteio, ganhamos os dois jogos e fomos para final, ganhamos a final nas cobranças de penal, erramos três chutes e o Sebastião defendeu quatro penaltes.
  Na hora de pegar o dinheiro da tomba, o menino que fez às vezes de mesário disse que não ia dar o dinheiro, enfiou-o no bolso e desafiou quem fosse macho para tirar o dinheiro de lá, nesse instante os meninos dos três times se emparelharam todos contra nós. 
  Mesmo assim o Viana deu-lhe um safanão e lhe tirou o dinheiro do bolso, ficamos de frente para eles, além do futebol, tínhamos a coragem dos internos do Educa.
  Não se deram conta que o Sebastião estava atrás deles, sem aviso, deu uma rasteira que caíram três, assentou o pé que usou na rasteira e levantou o outro, esse acertou outros três no rosto, quando fomos perceber o que havia acontecido, havia seis guris no chão e o Sebastião com o dorso abaixado, os braços abertos numa ginga da mais perfeita capoeira, os meninos que caíram e os que ficaram em pé correram.
  Ficamos olhando para o goleiro por um tempo, admirados e confusos, quando ele teve certeza que só havia sobrado nós no campinho, relaxou e disse:
  _Ai, esse negócio de ser homem me cansa, vamos embora que quebrei uma unha.
  Na volta, a estrada parecia mais longa, fomos em silêncio tentando entender aquilo tudo, perto do parque das Hortênsias o Viana quebrou o silêncio:
  _Rebola Sebastião, rebola mesmo.