quinta-feira, 18 de maio de 2017

Inocência




  No bambual, quase colado à piscina, morava um enorme lagarto teiú, verde, com detalhes amarelos, talvez nem fosse tão grande assim, (crianças de 10 anos tem tendências ao exagero mesmo) sei que a lembrança que tenho dele é d'um enorme e ameaçador, animal pré-histórico.
  Às vezes, ele aparecia na parte da estrada, que subia para o SENAI ou subia por trás do teatro, no barranco do 15 ou fazia aparições na estrada do 14, se escondia no milharal ou aparecia no bananal do 12, mas ele morava mesmo, no bambual que descia para o campão.
  Eu, o Viana, o Téquinha, o Ovinho, o Edson e o Chumbinho o perseguiam, quando ele aparecia nos limites do nosso pavilhão, corríamos como caçadores, ágeis e silenciosos... Agilidade e silêncio que não bastavam, nunca chegávamos perto dele e, já ia o danado, sumindo entre o mato e o bambu.
  Sempre que estávamos na perseguição do bicho, encontrávamos o Cidão, o Valdeci, o Dalcides e o Ronaldo, que moravam no pavilhão 13, que geograficamente, era mais próximo do bambual e, quando a busca se dava nos limites do 12, apareciam o Zé Almir, o Fabiano e o Valdevino, a certa altura, isso virou uma disputa territorial, cada turma queria a honra de capturar o lagarto, para o seu pavilhão, ninguém anunciou, mas estava no ar.
  Um dia, quando nós, do 14, carregávamos a padiola com a comida para o lar, ao lado do SENAI, escutamos gritos, arreamos a padiola, fomos até o barranco da piscina e vimos os meninos do 13 correndo, não vimos o teiú, mas, sabíamos do que se tratava, poucos instantes depois, a turma do 12 desceu, sem perder tempo, escondemos a padiola nos arbustos e lançamo-nos à empreitada.
  É claro que, mais uma vez, o bicho nos deixou a ver navios e desapareceu na vegetação.
  Nesse dia o pessoal do lar 14 achou estranho, entre o frango com batatas, havia a companhia de formigas catiçeiras, perguntado desse fenômeno gastronômico, dei de ombros e disse:
  _O pessoal da cozinha central vai de mal à pior, na maior cara de pau.
  No recreio da escola, tínhamos o habito de fazer hora ao redor do lago, uns iam namorar, outros iam jogar bola e outros se sentavam nas sombras gigantes que as árvores proporcionavam, coincidentemente estávamos todos, as três turmas juntas, olhando a mansidão das águas do lago, ouvimos um barulho no mato e ficamos atentos, entre os mourões da cerca, ele saiu, à margem da água, sob os nossos olhares incrédulos, bebeu a água e voltou para o mato.
  Aquilo era muito mais que um desaforo, a revolta nos dominou e foi assim que se firmou o pacto de união, naquele momento a caça passou a ser nossa obsessão, em todos os fins de semana, nos juntávamos na empreitada, em todos os fins de semanas, terminávamos do mesmo modo, de línguas para fora e mãos abanando, capturar o réptil valia para nós, o que valia, para os exploradores, a tumba de Cleópatra e, nesse meio tempo, tornamo-nos inseparáveis.
  Domingo, a missa era celebrada no teatro, as enormes portas laterais ficavam abertas, o padre Graciano, sempre com seu sotaque italiano de aldeões, se não fosse o folheto, com o seguimento das etapas, ninguém entenderia nada, quando terminava, o padre Paulo, (que era cearense) vinha com os seus intermináveis discursos sobre a caridade cristã e os procedimentos e convivência no colégio, dali a pouco aquilo terminava, as portas laterais eram fechadas, as luzes se apagavam e a igreja virava cinema, assim, da angustia ao prazer, em poucos minutos.
  O alarido ia se abrandando aos poucos, até virar silencio total, os meninos se sentavam na ordem de seus respectivos pavilhões, por ordem de chegada, nós ficamos atrás do 12 e do 13, ainda nos perguntávamos qual seria o filme da vez... Mazzaropi, Charles Chaplin ou Bruce Lee?
  Na tela, já começavam a aparecer os créditos:
  Bud Spencer and Terence Hill...
Gritos unanimes no salão, o filme seria TRINITY.
  Percebi que algumas pessoas saíam, pela lateral esquerda, entre a parede e as cadeiras, meio apertadas, como se não quisessem ser percebidos, já acostumado com a escuridão, meus olhos puderam perceber que se tratava do Cidão e do Dalcides, poucos segundos depois, veio o Ronaldo, cutuquei o Viana, que cutucou o Chumbinho, que cutucou o Téquinha e saímos também, sem chamar a atenção de ninguém, ao passar pela turma do 12, o Zé Almir percebeu a movimentação suspeita e se levantou também, é claro que o Fabiano e o Valdevino fizeram o mesmo.
  O filme já começava lá dentro, cá fora o clima era de suspense, o Cidão correu na direção do fundo do prédio e gritou:
    _Ele correu para lá.

  Ao lado do teatro, havia um pequeno córrego de alvenaria, feito para conter as águas que desciam do bananal do 14 em época de chuvas, entramos nele e nada, entramos no bananal e o avistamos bem abaixo do abacateiro, quando percebeu a nossa presença parou, o Zé não correra conosco, ele e os outros do 12, haviam feito a volta e, num círculo, encurralamos o lagarto, à medida que fechávamos, ele virava a cabeça em todas as direções, quando o círculo fora reduzido a uns 2 metro de diâmetros, deu uma corrida e, para o seu azar, escolheu o lado errado, foi para cima do Valdeci que, com a habilidade de um goleiro, dobrou os joelhos, esperou que o réptil passasse ao seu lado e se jogou uma mão no pescoço e outra nos quadris, o danado se bateu, o Valdeci se levantou sem impulso e o ergueu ao céu, como se fosse um troféu.
  Pulávamos de alegria e cantávamos a vitória e com muito cuidado, passávamos o bicho de mão em mão, o danado era muito grande e brilhava no pouco sol, que os galhos do abacateiro permitiam passar, seu tamanho dava a extensão exata do meu braço, eu nem me atrevi a segurá-lo.
  Dava para ouvir as risadas que vinham do cinema e então nos acalmamos, sentamo-nos em círculo, entre as folhas secas do abacateiro e outras, da mangueira vizinha, o silêncio tomou conta, foi o Viana, quem quebrou o silêncio:
  _E agora?
    Surgiram ideias desencontradas de prender, de criar, de tirar o couro, todas sem fundamentos, todas eram seguidas de prós e contras, até que Fabiano disse que seria melhor que o comêssemos, disse que o gosto lembrava a carne de peixe.
  Paramos nessa ideia, íamos comer, agora mesmo, lá no teatro, as crianças riam, o Fabiano seguiu, vamos fazer uma fogueira aqui mesmo e asar o bicho, só que... primeiro, temos que matar.
  O silêncio que se seguiu, logo após a palavra matar, foi, durante toda a minha vida, o mais pesado.
  O Valdeci, que era o mais velho, devia ter uns 13 anos, ao ouvir a palavra, passou o lagarto para o Viana, o Viana o segurou por uns breves segundos, ao sentir o peso da palavra, tentou se livrar do bicho, ninguém quis ficar com a função, uma tristeza tomou-lhe, com o dedo indicador principiava um carinho, vimos à cena e entendemos o amigo.
  E, não éramos grandes caçadores como nos intitulávamos, éramos doze crianças e como, só às crianças, cabe o dom da vida, nos abaixamos com o Viana.
  Quando ele se livrou do lagarto no chão, o bicho ainda não foi embora, ficou ali uns instantes, depois sumiu na vegetação, quando voltávamos para o teatro, ali onde havia começado a aventura, pudemos ver na folhagem um ninho, nele haviam quatro ovos, tivemos todo o cuidado para cobri-lo e fomos assistir ao filme.
  Sempre que sobravam umas frutas eu o Viana, depositávamos no bambual, os caras do 12 e os do 13, faziam a mesma coisa.