sábado, 13 de maio de 2017

A lei das mães




É costume de muitos, dizer:
  _ "Na minha época é que era bom"...
  Eu não digo isso nunca, entendo que a minha época é agora, posto que, ainda vivo e sou feliz.
  Mas, filosofias à parte, vivi a minha adolescência e começo de juventude nos atribulados anos 80, quando nasceram os sons atuais, logo após as contestações e delírios do amor livre e a utopia da liberdade que as décadas anteriores anunciavam, é claro que, era gostoso se viver nessa época, mas era perigoso também.
  O maior índice de jovens "desaparecidos" da história se fez registrar nessa década.
  Vivíamos a liberdade, mas o medo espreitava em cada esquina, portanto, todo simples passeio podia ser o último.
  Liberdade era só uma expressão que o Taiguara cantava, meninos feito nós, sequer sabiam o que isso significava, de fato.
  Nas ruas, o policial, que tinha o curso primário, seguia uma conduta:
  Está na rua, é preto, mestiço ou pardo e não tem testemunha...mata e desova.
  Os jovens tinham a sua própria conduta:
  Nunca andar sozinho, andar em bandos dificultava o trabalho da polícia e te garantia a segurança, além da companhia dos amigos.
  As mães tinham o seu código e, essa era a conduta mais poderosa de todas:
  Fazer barulho e ser a testemunha sempre, salvar o filho da outra é zelar pelo seu.
  Quando começamos a frequentar os bailes, andávamos todos em bando, já que, sempre fomos um bando, "O bando dos neguinhos do Educa", assim éramos chamados nas ruas, haviam vários elementos de cor clara no grupo e mesmo assim eles se chamavam de pretos.
  Os primeiros que entraram na nova onda foram o Valdevino, o Viana e o Rogério(Japonês), que foram ao baile da Chic Show, na rua Paes Leme e chegaram no lar 22 contando do som, do calor e das minas, não nessa exata ordem, a partir desse dia, os fins de semanas mudaram radicalmente, eu o Biriba, o Dooley, o Coquinho, o João Augusto, o Tadeu, o Lindolfo, o Breu, o Pelezinho, o Zóinho, o José Faustino, o Matiole e mais uma turma, passaram a frequentar as noites e as matinês balançantes, primeiro em Pinheiros e depois a cidade de São Paulo ficou pequena.
  A essa turma, se juntaram muitos moleques da FEBEM da Raposo Tavares, moradores do São Jorge e do Jardim Peri-Peri e, é claro, alguns moradores da rua Osvaldo Libarino de Oliveira, nessa rua a turma se encontrava.
  Quando a turma estava completa, chegávamos ao total de 60, as vezes até mais, sempre juntos, essa era a nossa maneira de nos proteger.
  E, é claro que com tantos elementos, era difícil evitar as brigas com outras turmas, mas o grande número também servia para evitá-las.
  É sabido que, na maioria das vezes, internos não tem mãe, os que tem, estão longe delas, nunca poderíamos contar com a terceira conduta, a menos que....
  Numa noite fria, fomos para rua Osvaldão, eu, o Viana, o Valdevino e o Zóinho, íamos encontrar o Betão e o Cezar e partiríamos pro Palmeiras, encontraríamos o resto da turma lá na Lapa.
  Na metade da rua, notamos que a iluminação caiu, a rua ficou escura, mas continuamos a caminhada, quando chegamos na altura da casa do Cézar, que era a exata metade da rua, dois faróis altos foram jogados em nossas caras, gelamos e ouvimos o frase temida:
  _Mãos pra cabeça, aqui é os home.
  Sem ter tempo ou pra onde correr, obedecemos e encostamos na parede da casa do Cézar, fomos revistados, algemados e jogados no camburão da viatura, tudo muito rápido e silencioso.
   Em nossas almas, sentimos que o final havia chegado, eu não conseguia enxergar os amigos, mas sabia que eles pensavam como eu, súbito, o bater da porta gelou-nos.
  Depois ouviu-se o abrir da porta do motorista e o ligar do motor, clamávamos por um milagre.
  De repente ouvimos uma voz conhecida:
  _Moço, meu filho está aí??
  Era a dona Geralda, mãe do Cézar e do Betão e, ela sabia que seus filhos estavam em casa, tornou a gritar, fazendo com que os policiais descessem do carro:
  _Minha senhora, como é o nome do seu filho??perguntou-lhe um dos policial.
  _O nome dele é Roberto Carlos, continuava gritando a senhora.
  O policial abriu a porta traseira e jogou a luz do farolete em nós:
  _Tem algum Roberto Carlos aí??Acenamos negativamente.
  _Olha minha senhora, o rei deve estar fazendo algum show por aí.
  Os demais riram.
  Por conta dos gritos da dona Geralda, as casas foram se abrindo e os vizinhos se aproximaram da viatura.
  _Moço eu não estou duvidando da sua palavra, deixa eu ver quem está aí, pode ser que meu filho está com medo de mim.
  O policial entendeu, pois até o diabo tem mãe, deixou que ela ficasse na traseira da viatura e iluminou-nos, para que ela tirasse a dúvida.
  _Ah, quem está aí são os meninos do Educa.
  Gritando mais alto ainda, passou a dizer os nossos nomes, um a um.
  Quando os policiais bateram à porta e voltaram aos seus acentos, uma pequena multidão já havia se formado em volta da viatura.
  Aquela senhora havia tirado deles o prazer da execução sumária e eles, contrariados, passearam com a gente e, por fim, nos soltaram no Parque da Previdência, de lá pegamos a condução e fomos pra Lapa.
  No dia seguinte, fomos agradecer a dona Geralda, ela deu de ombros e disse:
  _Fiz o que qualquer mãe faria.

Risadas no cemitério.


 Quando cheguei ao Dom Duarte, em 1977, eu tinha 10 anos e estava no ginásio. Não parece grande coisa, mas, isso me deixava em vantagem, com relação aos meus amigos, primeiro que eu estava apto a trabalhar e isso me tirava do pavilhão, não tinha que trabalhar na enxada, trabalhava na olaria, na parte da manhã e à tarde eu estudava no Grupo Escolar anexo ao E.D. D, a maioria deles, ainda que fossem mais velhos, estudavam pela manhã, pela tarde, ficavam no pavilhão, ou seja, enxada e pino.
A outra vantagem era capilar, que também não parece grande coisa, mas lembre-se que estamos nos anos 70... época de cabeleiras avantajados, calças boca de sino, suspensórios e chinelos franciscanos. Reparem que eu comecei a frase com. cabeleiras avantajadas, isso caro leitor, fazia um negão feliz, em 1977.
Faltando poucos dias para o início das aulas, fomos ao barbeiro, o Castro cortava cabelos numa salinha, ao lado do teatro, era um sujeito calmo, que pigarreava a todo instante, pouco falava e ouvia a rádio Jovem Pan, eu também ouvia, só que, à noite, na transmissão do meu Corinthians. Na sala só cabiam quatro, éramos uns 30, enquanto ele cortava o cabelo de um, três esperavam sentados nas cadeiras, o resto ficava lá fora, alguns em pânico, posto que, dali a alguns minutos ficariam carecas, era hábito, na época o corte do exército (corte reco), uma pequena faixa de cabelo, no alto da cabeça e o resto raspado na zero, (Nossa Mãe, só de lembrar, me arrepia).
Sucessivamente, vi meus amigos entrando na sala com cabelos e saindo sem eles, a cara deles era um misto de saudade e melancolia, entrei na sala e fiquei na cadeira de espera, na minha sequencia vinham o Viana e o Téquinha, esse segundo exibia uma juba tão grande, que parecia o próprio Don King.
O barbeiro acabou de raspar mais um, minha vez, sentei-me na cadeira, acomodei-me, ele ajeitou aquela camisa frontal e aquela proteção do pescoço, pigarreou e virou-se para o espelho, pegou a máquina, limpou-a e ligou, veio em minha direção, com ela ligada e sem pente, quando a máquina ia encontrar o meu cabelo... Esquivei tranquilo e disse:
_Auto lá, amizade. Aqui é ginásio!
O barbeiro pareceu não acreditar, olhou para os meninos que esperavam, eles confirmaram com suas cabeças´ (ou devo dizer com os seus cabelos), o barbeiro sorriu, jogou a máquina e apanhou a tesoura, com muito capricho, baixou e arredondou. Assim começou uma boa amizade.
Por via das dúvidas, fui passear, não queria ver meus amigos naquela hora, se os visse, iria rir muito... consequentemente, eu iria apanhar.
As aulas no Grupo Escolar começavam às 03h30min horas da tarde e terminavam às 8:15 da noite, por conta disso, quando algum aluno chamava o outro pra brigar na saída, não usava a célebre frase de todas as escolas (_Vou te pegar na saída), no Educandário Dom Duarte, quando alguém queria deixar claro que iria brigar, dizia em voz alta:
_Aí, fulano... Oito e quinze !!! Pronto, assim todos sabiam que haveria briga na saída.
No final do horário da escola eu tinha que correr pro pavilhão, era muito divertido percorrer o caminho da escola até o lar 14, sempre uma aventura, quando eu chegava, enquanto os amigos já estavam na cama, eu ainda ia tomar banho e jantar, acabava assistindo televisão com os grandes, que chegavam dos seus empregos nessa hora.
Nos dias de aulas vagas, eu não subia para o lar, ali perto da portaria, na entrada do campão, existe uma escada de alvenaria, conforme os grandes chegavam dos seus empregos, ficavam por ali, alguns esperavam os amigos que moravam no mesmo pavilhão, pra subirem acompanhados, outros ficavam ali pra conversar, algumas meninas da escola, namoravam com os caras, saíam da escola e desciam pra lá.
Nós, os menores, ficávamos com eles, porque queríamos ser como eles.
Numa noite, tivemos duas últimas aulas vagas, eu, o Brito do 17 e o João do 24, o ultimo, por ter no queixo o formato de uma nádega, era chamado de João de Bunda, mas é claro que só os grandes o podiam chamar assim, o João era forte, bateria em nós.
Naquela noite iria passar uma final de campeonato na televisão, por conta disso, os grandes não ficaram na escada, como era de hábito, decepção total, ficamos os três, sozinhos e desolados, num silencio de morte, dava pra ouvir os grilos no mato.
Eu já ia propor que fôssemos embora, a noite estava perdida... repentinamente ouvimos um barulho alto e vimos um clarão, olhamos pra cima e vimos aquela maravilha sobre as nossa cabeças.
O balão em formato de charuto sobrevoava o campo em nossa direção, ficamos em silencio, maravilhados, estupefatos com a beleza do seu voo, descia feito uma nave que vai aterrissar, a chama a tocar na grama, corremos na direção dele, não podíamos deixar que ele batesse a boca no chão e se queimasse, vimos que o Augusto do 17, que havia ido embora, descia o barranco do campão.
_Tá na mão. Ele gritou.
_Tá na mão o cacete._Respondeu o Brito.
Já estávamos chegando perto, as chamas nos iluminava, mais uns passos, uns poucos passos, pude sentir o seu calor... de repente, bateu uma aragem e ele nos escapou, ganhou altura e foi-se, atravessou o campo e continuou, chocou-se contra o galho do pé de eucalipto, que ficava depois da linha de fundo, à direita e continuou a viagem, atravessou a estrada do campão, sobrevoou a Sabesp e saiu do Educandário, nós ainda atrás do bruto, atravessou a Heitor Eiras Garcia e entrou em território do Cemitério Israelita, quando invadimos a Sabesp, o Augusto disse que não iria entrar no cemitério e voltou pro campo, nem olhamos pra trás, não dava pra conversar, proprietários de balão não ficam de conversinhas.
Na época, não havia um muro naquela parte do cemitério, só uma cerca de arame farpado, nem paramos, passamos por ela e ganhamos território, o balão perdia altura e ganhava velocidade, ladeamos o riozinho em direção à portaria, seguimos a estrada à direita, percebemos uma gritaria e vinha da direção de onde ele baixara, entre os túmulos do campo santo, ele se acomodava, alguns meninos o cercavam, quatro meninos maiores que o João, que era o mais alto de nós.
Desanimados, deixamo-nos ficar ali, sem sermos vistos, além dos quatro, que já estavam lá, desciam mais cinco na estradinha, eram da favela da Vila Operária, o Brito, já sentado numa lapide falou:
_E agora? Brigar ou correr? Falou isso quase sussurrando.
_Bora, sair na porrada com todo mundo, pegar o balão e sair fora. Falei isso de brincadeira, desde cedo eu tenho a mania de fazer piada em horas impróprias.
O João, que ainda arfava, por conta da corrida, ao ouvir a minha proposta soltou uma gargalhada, dessas gargalhadas de Exu caveira, sua voz reverberou no campo santo e repetiu no eco, os meninos que desciam, puseram-se a correr de medo, os que estavam perto do balão, ameaçaram de correr, olharam pro nosso lado e os túmulos à nossa frente, impedia que eles nos vissem, ficaram parados, preparados pra correr.
O Brito, o João e eu, rimos juntos, as vozes juntas ecoaram, os meninos correram gritando.
Recolhemos o balão, com todo o cuidado do mundo, em silencio. No caminho de volta, o João, que tremia copiosamente, quebrou o silencio:
_Vamos embora logo dessa porra, tenho muito medo de cemitérios, só vim por causa de vocês.
Eu e o Brito respondemos ao mesmo tempo:
_Idem.
Voltamos, pelo mesmo caminho, chegamos à escada, passamos e sentamos embaixo do mastro das bandeiras, voltados pro campão, já não havia cansaço, a lua cheia brilhando, saía de trás do bambuzal, como se festejasse nossa proeza, ficamos ali, conversando sobre tudo aquilo.
Depois do que o João disse, percebi que o medo era igual em todos, o medo fazia parte de todo ser humano, eu continuei a correr, achando que eles não tinham medo, eles acharam que eu não tinha medo, no dia seguinte, iríamos contar a aventura e diríamos que ninguém de nós teve um pingo de medo.
Decidimos que o João levaria o balão pro 24, provavelmente, o soltaríamos no fim de semana, ouvimos a sirene da escola, os estudantes saíam, as luzes das salas começavam a se apagar, seguimos a estrada de paralelepípedos, rumo ao aprendizado, juntamo-nos ao grupo que saía da escola, em frente ao aprendizado o João se despediu de nós, seguiu à direita, ia pegar a estrada do 21, entramos à esquerda e seguimos, no jardim do teatro, o Brito se despediu de mim, ia seguir a subida do 15, rumo ao 17 e eu segui a estrada da jaqueira, o milharal do 14 não me punha medo algum, a lua cheia iluminava o caminho, fui pra debaixo da jaqueira e chutei de leve a vegetação, abaixei-me e resgatei meu material escolar, dentro de uma sacola plástica, tirei-o e enrolei o plástico, o material embaixo do braço e a sacola no bolso.

Nunca mais tive medo de nada, desde que eu estivesse acompanhado dos amigos.