sexta-feira, 31 de março de 2017

O jacaré.


Aposto que você pensou que eu ia falar da lenda do jacaré, que habitava as águas do lago da pedreira.
Mas, isso era pura lenda mesmo, por aquelas bandas haviam macacos, cobras, preás e fantasmas, esse réptil foi coisa inventada pelos funcionários da pedreira, não fosse isso, os meninos do Educandário Dom Duarte viveriam pulando no perigoso e assombrado lago.
Jacaré não era um réptil e sim um cachorro...o cachorro.
Se corresse o Educa, iria encontrar vários cães que faziam companhia aos internos, perguntando para os meninos do 12 eles te diriam que o melhor de todos os cachorros do mundo era a pastora alemã Laika, os meninos do 19 diriam que o melhor mesmo era o Peri, a maioria dirá que o Viele era o mais querido de todos.
Criadores e veterinários dizem que, com cuidados extremos, um cão não viverá mais que 14 anos, posto isso, sou obrigado a concordar que o Jacaré foi um fenômeno, esse viveu 17 anos e eu, fui testemunha de seu nascimento e morte.
Em 1977 eu trabalhava na olaria e tinha 10 anos, quando vinha para o trabalho, o seu Luís, uma das pessoas mais queridas que eu tive o prazer de conhecer e, que era o encarregado da máquina de moldar tijolos, trazia sempre uma cachorrinha, essa o acompanhava sempre e, é claro que os meninos se divertiam muito em companhia dessa nos intervalos e na hora da saída.
No dia que ela deu cria, eu e o Lucídio fomos à casa do seu Luís e vimos a ninhada, foram sete cachorrinhos, deu nomes a todos e, deles todos, o mais fraquinho, o que menos parecia ter chances de vingar, ele batizou com o nome de Jacaré.
Preocupado com a frágil saúde do pequeno cãozinho, o homem passou a levá-lo para a olaria, sempre enrolado em uma toalha, ficava quietinho ao lado da esteira, o seu Luís de quando em quando, passava os olhos.
Devidos aos extremos cuidados do dono e a torcida dos meninos, o Jacaré vingou, da ninhada toda ele passou a ser o maior, de natureza calma, mas, assustadoramente grande.
Não era desses cães que fazem festa ou vão buscar bola ou graveto, quando via um amigo, se sentava ao lado e ficava perto, e acostumou tanto com a olaria que não foi mais pra casa, os arredores da olaria virou o seu lar, era comum vê-lo sentado ao lado do seu João do forno e, num outro momento, ganhando comida do Carlinhos do artefato de bloco, de noite e nos fins de semana ele vigiava todo o complexo, do barranco do 11 até a estrada da assistência, o estranho ouvia um latido forte, que por si só, já metia medo e, repentinamente, um monstro aparecia na sua frente.
Quando a olaria foi fechada, continuei a passear por aquelas bandas e, quando me via, vinha ter comigo, uma amizade silenciosa.
Depois da morte do seu Luís, o Jacaré continuou a guardar o território, quando íamos pescar ou caçar rás, ele vinha e nos protegia, voltávamos pelo lado da mata, ao lado daquela fera, nada nem ninguém nos metia medo, ia conosco até o pavilhão 14 e, quando a luz do dormitório se apagava, ia embora.
Cumpri o meu tempo de Educa e fui embora do colégio, virei adulto, em 1985 fui trabalhar no Cemitério Israelita, na empresa Uni jardins, minha esposa esperava minha filha.
Assim que cruzei o portão do Israelita, um enorme cachorro veio latindo ao meu encontro, fiquei surpreso, pela primeira vez vi o Jacaré me fazer festa.
_. É Jacaré, eu também estava com saudades.
Um dos funcionários me disse que eu estava enganado, aquele cachorro se chamava Bob.
O encarregado Lindolfo, estranhou que aquele cachorro, que não gostava de ninguém, foi fazer festa para um estranho.
Eu disse que esse cachorro eu conhecia desde filhotinho e que ele pertencia ao finado seu Luis.Ele disse que o cachorro havia aparecido fazia já uns anos, ele simpatizou e ficou cuidando dele.
O Educa havia mudado muito e os antigos moradores já haviam saído de lá, o Jacaré atravessou a avenida e foi viver nova vida, tinha até nome novo.
No tempo que trabalhei ali, o cachorro me acompanhava por todo lado.
A vida é evolução e vivi o que ela havia me reservado, em 1994, quando foi inaugurada a nova sinagoga, voltei para o Israelita, agora eu era vigilante, o Lindolfo já havia morrido e o Jacaré me recebeu de novo, se os outros vigilantes faziam rondas em duplas, eu fazia a ronda da meia-noite sozinho claro, na companhia do meu amigo de infância e, como na infância, nem alma me metia medo.
17 anos ele já havia completado, sentou-se, fechou os olhos e se foi...sem dramas, como sempre foi a sua longa vida.