terça-feira, 28 de março de 2017

O anjo da minha rua.


A juventude tem momentos que vão te marcar para a vida toda, alguns rostos serão esquecidos e outros serão eternizados, da dona Havanir eu guardo um rosto bonito e sereno, os olhos verdes que cativavam, já surgiam as primeiras rugas e os fios brancos completavam o quadro de beleza singular.
Essa senhora tinha por hábito, cuidar de quem não tinha recursos, enfermeira de profissão, cuidava dos doentes em suas casas e, vez em quando, fazia um parto, como bem cabe à um anjo.
Já tendo vários filhos seus, também assistia aos meninos que não tinham mãe, mesmo correndo, sempre se tinha um tempo para ouvir os conselhos da dona Havanir e, eram poucos, os adultos que mereciam essa consideração de nossa parte, ela olhava nos olhos, via nossas almas e, sempre vinha um conselho.
Claro que crianças crescem e, trilham caminhos perigosos, a estrada do mal exige que o preço da sobrevivência seja a fúria, a inocência dá lugar ao extinto de sobrevivência, via de regra, o mais forte se sobressai e os anjos são esquecidos, a menos que...
Estranhamente, eu nunca vi a dona Havanir em outro cenário que não fosse a rua Osvaldão e, ainda que ela tivesse a sua família e morasse ali, eu nunca entrei em seu quintal, sempre a via e conversava na rua mesmo.
Estávamos em oito, lá para os lados do Taboão e, nos envolvemos numa briga séria, não vou citar os nomes dos outros sete e, no fim da narrativa, creio que você vai entender o motivo.
Eu tinha dezessete e a fúria estalava, nos vimos em menor número e decidimos ir à casa de um dos integrantes da turma, pegaríamos uma arma e mostraríamos nosso valor a balas, em passos acelerados, partimos pra Osvaldão.
Do asfalto do BNH, atrás das arvores principia uma descida, um grosso tronco deitado servia de ponte, por cima do córrego Bota frias, noite sem lua, aquela parte não era iluminada e tivemos que atravessar a ponte, um de cada vez e ganhamos a rua., com o portão do cemitério à nossa frente, na metade da rua chegamos à tal casa, de posse do canhão iniciamos a volta, todos juntos.
No fim da rua, uns barracos acabavam de ser construídos e havia umas famílias novas ali, quando chegamos nessa parte vimos um vulto branco saindo do portão de madeira.
Estacamos diante do susto e permanecemos a olhar, depois da confusão percebemos que era a dona Havanir em seu uniforme de enfermeira, quem estava com a arma escondeu-a, eu dei um passo atrás e me escondi, em vão, ela veio em nossa direção e, mesmo no breu que estava, reconheceu um por um.
E, então???não éramos mais crianças e aquela senhora nos fazia ter vergonha de fazer coisas erradas, eram duas da madrugada, alguns respingos de sangue no avental dela, denunciavam que ela acabara de trazer mais uma alma ao mundo, devia estar muito cansada e mesmo assim, parou para aconselhar-nos.
Como eu disse, ouvi os conselhos desse anjo mais de mil vezes, esse especificamente, me aturdiu. Ela disse numa voz muito serena e não falou do jeito que era seu costume, estranhamente ela disse:
_Meninos, essa vida não dá camisa a ninguém.
Esse tipo de vocabulário não fazia sentido, dito por uma pessoa da geração dela, muito menos cabia à uma pessoa notadamente religiosa, esse discurso demorou uns vinte minutos, quando ela terminou eu já não tinha mais a convicção de abrir caminhos a bala e me impor pela violência, se despediu e se dirigiu à sua casa, ficamos acompanhando os passos dela e só retomamos o nosso caminho quando ela entrou em casa, quando chegamos à ponte, as palavras dela ainda reverberavam na minha mente, parei e disse aos amigos:
_. Ô gente, não leva a mal não...meu caminho acabou aqui.
No breu daquela escuridão, ninguém disse nada, o Djalma do 15 veio para o meu lado, os outros atravessaram a ponte e sumiram para os lados do BNH, fizemos o caminho de volta ao Educa e, só de manhã o Djalma falou a respeito:
_. Não dá camisa hein?!?!
Era inverno de 1983, estou completando 52, o Djalma é vivo, mas, não curte redes sociais.
Os outros seis, contando seis meses dessa noite, tiveram mortes violentas.
Eu quero acreditar que a dona Havanir, continua a encantar a vida com seus olhos verdes de anjo.