quarta-feira, 14 de junho de 2017

Em três tempos




  Via de regra, eu sou um sujeito muito mal humorado, não queria me expor dessa forma, porém, se eu não dissesse isso, faltaria com a verdade... é da minha natureza, essas coisas que já vem do ovo e, não tem cura mesmo.
  Com o tempo, a gente vai abrandando, e ou, as pessoas aprendem a te aceitar como você é.
  E, aqui vão três passagens, separadas num espaço de 10 anos, onde o mau humor foi acrescido de dor de dente.
  Putz, calcule uma pessoa que já sofre da doença da chatice crônica e, junte a isso uma dor insuportável... pronto, você terá que se proteger num abrigo antiaéreo.
  Em 1978, meus amigos eram sempre os mesmos, aqueles que dividiam as aventuras do futebol e das armações, entretanto, no grupo escolar, eu era um pouco menos atirado, não participava das bagunças e não cabulava aulas... é, pra sua decepção, caro leitor, ainda que no tempo tivesse outro nome, eu era um nerd.
  Eu, o João Augusto do 12 e o Augusto do 17, costumávamos chegar umas 2 horas antes do horário e sempre ficávamos no mesmo lugar, em frente da escola havia umas arvores que desenhavam uma metade de um círculo, uma construção de alvenaria foi feita em redor dessas arvores, a intenção deve ter sido a de se fazer um jardim, mas acabou virando um enorme banco, ali os meninos aguardavam e podiam ver se algum professor faltaria para as aulas.
  Ali, naquele espaço arejado e protegidos pela sombra, nesse curto espaço de tempo, debatíamos as coisas da época, tipo:
  O espetacular poder do Uri Geller, que entortava talheres com a força da mente, a existência do Pé Grande ou os mistérios do Triangulo das Bermudas, algumas vezes, só ficávamos olhando o campão, em silêncio.
  Noutras vezes, quase chegando às vias de fato, discutíamos coisas de suma importância para  a existência humana, tipo:
  _Numa luta, quem venceria... o Coisa ou o Hulk??
  Todo santo dia, a Clarisse chegava uns minutos depois de nós e, se sentava uns cinco metros à nossa direita, ela morava no Jardim Cambará, minutos depois chegava o Clóvis e, se sentava a uns 5 metros a nossa esquerda, ele era filho de um funcionário do Cemitério Israelita que morava no serviço.
  Ambos sofriam do mal da timidez e seus olhares ficavam a se procurar e, nós três no meio dos olhares deles, todo santo dia a mesma coisa.
  Um dia falei pro Clóvis chamar a moça para uma conversa, ele disse que tomaria coragem e nada, às vezes, no calor de uma discussão, parávamos e ficávamos constrangidos com os olhares deles, parecia que os dois estavam no meio da nossa conversa.
  Num belo dia, acordei com o dente do siso me rasgando a gengiva, a dor era qualquer coisa entre o inferno e coisa pior, fui à administração e, dentista ... só no dia seguinte, peguei um sol de rachar o dia todo e, a dor só aumentava, não pude mastigar o almoço e fui para escola, quando cheguei, já estavam lá os amigos, que perceberam que eu não estava bem, o mundo rodava e a dor aumentava.
  Como de costume, chegou o casal e ficaram a nos fitar, isso fez a dor ir ao ponto da explosão.
  Levantei-me e fui ter com a Clarisse:
  _Está vendo aquele guri ali? Ele quer te namorar e não tem coragem, você quer namorar ele e não tem coragem...
  Peguei-a pelo braço e a levei até ele.
  _Esse cara nunca vai se declarar... pelo amor de Deus, aceita logo e mudem de lugar, caramba.
  As últimas palavras saíram gritadas, sem opção, o Clóvis a tomou no braço e os dois saíram para o lado do lago.
  No dia seguinte, nenhum dos dois apareceu na escola, no dia seguinte chegaram de mãos dadas, mas foram se acomodar para os lados da casinha do campão, que era mais apropriado para um casal.
  Quando a escola fechou para a reforma e tivemos que nos mudar para o Attiê, ficou muito longe para os dois e, eles foram estudar no Guiomar, nunca mais os vimos.
  Em 1988, eu já era pai de uma filha e morava na Osvaldão, o mesmo dente me machucava, a massinha caíra e uma carie me corroía a gengiva.
  Na época do prefeito Mario Covas, havia dentista 24 horas no posto de saúde do São Jorge.
  Eu estava sentado na saguão de espera, quando um sujeito muito grande e calvo apareceu gritando para o meu lado:
  _Pinhé, como vai à vida?
  Sem olhar para as fuças do sujeito, já fui rebatendo:
  _Pinhé é o escambau, meu nome é Nilton.
  O sujeito parou na minha frente com os braços abertos:
  _Sou eu, o Clóvis.
  Não demonstrei entusiasmo, ele percebeu a minha cara de dor e disse:
  _Daqui a pouco eu volto e, saiu porta afora.
  Esperei um pouco mais e fui atendido, um alemão com os olhos vermelhos enfiou uma seringa na minha gengiva, depois que a anestesia fez efeito, meteu o boticão e arrancou o dente, perguntou se eu o queria, diante da negativa, encestou no lixo sem chuá.
  Quando sai da sala, meio cambaleando, estavam lá o Clóvis e a Clarisse com duas crianças pequenas e um bebê ao colo.
  Fiquei feliz, a Clarisse me deu o bebê, perguntei o nome da linda criaturazinha.
  _Nilton. Responderam juntos.
  Dez anos mais tarde, o guri apareceu para jogar no meu Dínamo Futebol Arte...
  . Num dia de fúria, durante uma partida, meu time perdendo e meu dente doendo, esse menino ousou questionar meu método, fiquei furioso.
  Eu disse para o atleta:
  _. Está falando o que menino, se não fosse eu, você nem teria nascido.

E o coadjuvante vira artista principal.

 
  É certo que eu gosto de falar de mim na terceira pessoa e, por um bom tempo, eu fui expectador das proezas dos meus amigos, as amizades da infância são pra sempre.
  Não obstante, um dia eu teria que seguir o meu próprio caminho, ser o norte da minha vida.
  Logo na primeira semana que desembarquei em terras Educandariana, veio o Jordão e disse pros guris do 14:
  _Estão vendo esse gurizinho, tratem bem dele, esse guri é meu primo.
  Lógico que isso não era verdade e, esse favor eu fiquei devendo para o Jordão, que já cuidava de mim, desde a Casa de Infância, isso me deu um respeito que eu jamais conseguiria, me livrou de ter um caminho difícil.
  Eu vinha de um colégio de freiras e nunca havia pisado descalço no barro, a adaptação à nova vida foi rápida, mas eu gostava de ser, da turma, o que menos chamava atenção pra si.
  Já houveram pessoas que disseram conhecer todos os meus amigos de infância e assim mesmo, não se lembravam de mim.
  Não me magoa, era assim que eu gostava de viver, quase invisível e, isso tinha uma vantagem.
  Quando o caldo entornava, ninguém sabia que eu estava lá e, sempre escapava das consequências.
  No fundo, eu era triste, e esses novos amigos me ensinaram que a alegria está nas coisas mais simples da vida, andando com eles, eu aprendi a ser feliz e, pra aprender, eu tive que ser um observador quase invisível.
  Gostava de ficar observando o pessoal do teatro, não por ser fã das artes cênicas e sim pela música, essa turma gostava de peças musicais.
  Por não ter idade suficiente, não poderia estar em cena, eu ia assistir na esperança de aprender e ficava ali, sem que os atores me notassem.
  Sempre tive facilidade com as letras, um dia entreguei uma pilha de papéis ao Jordão e recomendei:
  _Se perguntarem, diga que é de sua autoria.
  E assim foi feito, a peça foi ensaiada e o Jordão musicou as parte de poesia, disse pra todos que a autoria era dele.
  Eu tinha certeza que, se soubessem, que tinha sido escrita por um guri de 13 anos, jamais encenariam, alguns dos atores tinham o rei na barriga.
  Às vésperas da festa da Liga, o Jordão foi me procurar, disse que a peça seria representada no dia e, que precisava de uma poesia inédita, para ler no dia.
  Escrevi um poema que falava dos caminhos do Educandário Dom Duarte, um poema quase parnasiano, dei-o ao amigo, quando eu ia fazer a recomendação, me disse o Jordão:
  _Tá bem, vou dizer que os versos são meus.
  E, diante da presença das senhoras da Liga das Senhoras Católicas, com o teatro lotado, os meninos com suas calças jeans azuis e suas camisas brancas, cada um com o saco de "bode" na mão, a peça foi encenada e, até elas aplaudiram com entusiasmo, é claro que eu, aplaudi mais que todo mundo.
  Depois da palestra do padre Paulo, para encerrar a festa, veio o Jordão com ar imponente, tomou o microfone e interpretando com fervor, recitou o poema.
  O amigo era tão bom que, o poema empolgou a plateia, ficou o Jordão a esperar o termino dos aplausos, uns cinco minutos.
  Quando se fez o silêncio, o Jordão falou:
  _Senhoras e senhores, tanto a peça como o poema que acabei de recitar não são meus, são de um amigo.
  Entre as cadeiras da turma do 14 não havia como me esconder, assim mesmo, eu tentei.
  A expectativa se fez no público e o Jordão me procurava na plateia, como não me achou, gritou em alto e bom som:
  _O autor é Nilton Victorino Filho.
  Ainda abaixado, ouvi a salva de palmas, os meninos do 14 aplaudiam mais que todos, na saída todos me olhavam e cumprimentavam.
  Depois desse dia ficou difícil passar pelas pessoas e não ser reconhecido passou de uns 50 amigos pra mais de 200 e... nunca mais fui invisível.