quinta-feira, 20 de julho de 2017

Só vivendo.



 
  Quando guri, todo mundo queria ser jogador de futebol, bombeiro, polícia e, de preferência, rico.
  Eu não, eu sonhava em ser diretor de time, não desses clubes badalados e poderosos, um clube de várzea já me servia.
  Isso mesmo, eu era um guri bem estranho, podia me ver tiozinho, jogando bocha com os amigos, brigando e roubando no jogo, é claro.
  Então eu cresci e não fugi do meu destino, na minha igreja, o campo, vi milagres e covardias, me salvei, salvando os outros.
  O campo da São Remo, fica na linha que divide o bairro da USP e o Rio Pequeno, a entrada da favela faz fronteira com o batalhão da polícia militar, quem sobe vai achar, no fim dela, o Hospital Universitário.
  Ali, o Dínamo teve tempos de glória e se firmou como um escrete poderoso, o Dínamo teve a honra de dividir a preferência com o time da casa, entre os moradores, haviam mais torcedores nossos que deles.
  Por se tratar de uma comunidade, estava sujeita às leis vigentes, as leis da várzea e às leis do comando da favela.
  A lei da várzea manda que se trate bem o time que visita, a lei do comando da favela manda a mesma coisa, em caso contrário, a lei da várzea cobra uma multa, a lei do comando da favela condena o infrator à morte.
  Houve um torneio em que o Tcheco Nascimento foi agredido em jogo e, principiou-se um tumulto em campo, houve muita indignação de nossa parte, o rapaz que agrediu o neguinho foi covarde, depois do tumulto os ânimos foram acalmados e, continuou-se o jogo.
  Quando íamos saindo da favela, o rapaz que agrediu chamou o Tcheco, se desculpou e, ele estava visivelmente com o medo nos olhos, boa praça que o neguinho é, perdoou e tudo ficou bem, fomos embora.
  E, pelo que todos sabem, esse é o fim da história...
  Nada disso, essa é a metade da história, vou contar o resto dela agora.
  Entre o hospital e a favela, havia o Circo Escola e, ali eu trabalhava, no período da noite.
  Nesse dia, eu agradeci à Deus por não ter acontecido coisa mais grave e fomos inteiros para casa, voltei às 10 da noite para trabalhar, eu não vinha pelo lado do Rio Pequeno, preferia vir pela USP.
  Quando cheguei na portaria, uma senhora me esperava e chorava muito, fui a ela e perguntei se podia ajudar.
  Era a mãe do rapaz que havia agredido o Tcheco, quase não conseguia falar direito, com muito custo me disse que o filho havia sido condenado à morte, por conta da agressão ao visitante.
  Pediu que eu fosse com ela até os traficantes e intercedesse em favor de seu filho.
  Meu chefe, que era morador da comunidade, me liberou e, lá vai o pobre do Niltão ao miolo da favela conversar com os mandantes.
  No meio da favela havia uma casa que faria um morador do Morumbi morrer de inveja, ela estava cercada por uns 30 homens, com armas que fariam os soldados do exército morrerem de inveja.
  Quando me avistaram, não tiveram receio, alguns deles eram jogadores do time da casa, um deles gritou:
  _O cara do Dínamo está aqui.
  A senhora ao meu lado chorava num desespero só, me perguntaram o que eu vinha fazer ali.
  _. Vim para falar em nome do menino que está para morrer.
  Um homem abriu a janela, supus que fosse o chefe, encarou-me e eu permaneci calmo, disse que não tinha como voltar atrás na decisão, questão de lei.
  Começou uma batalha de palavras, eu disse que o agredido havia perdoado ...nada, ele disse que era o código e não podia voltar atrás, apelei para a consciência cristã...nada.
  Todos os argumentos que eu usava, ele retalhava e ficava mais impaciente.
  Quando todos os argumentos falharam, fiz menção de ir embora, dei-lhe as costas e disse:
  _Sendo assim, o Dínamo não vem mais aqui, a senhora que ainda chorava, passou a gritar, a última chance de vida do filho dela havia falhado.
  Consegui mesmo dar uns sete passos, a voz do meu interlocutor não era mais ameaçadora:
  _. Ô que ignorância é essa???volta aqui, vamos conversar.
    . Pela manhã, eu estava no ponto de ônibus, um caminhão de mudanças buzinou, a senhora e o filho desceram e me agradeceram e me deram carona até a Paineira.