segunda-feira, 8 de maio de 2017

Meu melhor amigo (Final)




  Já que essa é uma quarta parte de uma história, não vou me ater em prefácios ou considerações desnecessárias, posto que, em um capitulo eu poderia ter escrito tudo.
  Não, não poderia e, você vai entender o motivo da minha demora.
  Feito isso então, convido o leitor a uma história das que eu não gosto de escrever, uma história sem final feliz.
  Não era muito comum de acontecer, mas em algumas tardes fazíamos atividades numa salinha que ficava no fundo da quadra e era o subsolo do teatro, as atividades eram mais recreativas que, propriamente lúdicas.
  Como isso se dava em horário de recreio, ao invés de subirmos pro pátio, brincávamos na quadra.
  Brincar na quadra sem bola exigia muita criatividade, alguém sugeriu esconde-esconde e determinou que, se alguém subisse pra rampa não valeria.
  Amigos que éramos, assim que o Hélio virou-se pra bater cara na parede da sala de jogos, corremos juntos, da portaria para o refeitório, a rampa faz um perfeito angulo de 90 graus, nessa inclinação ficou um vão, nesse vão foi construída uma pequena sala, onde eram guardadas as ferramentas de jardinagem, revestida de madeira e a porta ficava de frente com o portão vidrado que dava acesso à lavanderia. Esse depósito estava na altura da quadra e um pequeno muro separava o jardim.
  . Corremos juntos e, a intenção era nos esconder no jardim, era nosso costume apoiar as mãos no muro (que tinha a altura de nossas cinturas) e jogar os corpos para a frente, como se pulássemos no dorso de um cavalo. O fizemos juntos e ao mesmo tempo, o que não podíamos imaginar é que, no lado de dentro do jardim, alguém havia jogado uns cacos de garrafas quebradas.
  Ora, a primeira coisa que guri faz, pra iniciar uma corrida é se livrar do calçado, quando alcançamos o chão do outro lado, aterrissamos em cima dos cacos, a dor não foi imediata, o choro era causado pela angustia de tanto sangue, fechamos os olhos e gritamos por socorro.
  A madre Enfermeira nos atendeu, lavou-nos os pés e o seu Paulo já nos esperava pra levar ao hospital.
  Meus cortes foram profundos e sempre tive a cicatrização rápida, enquanto eu era atendido num leito simples, o Fernandinho foi levado pra outra sala, um time de médicos e enfermeiras o acompanhava, em coisa de duas horas, o médico disse que eu estava liberado, os dois pés enfaixados, o seu Paulo trouxe uma cadeira de rodas, perguntei do amigo e ele disse que ainda havia umas radiografias a ser tirada, a madre Enfermeira ficaria com ele, notei que o seu Paulo disfarçava uma preocupação.
  Em uma semana, já haviam me retirado as faixas e eu tentava andar, apenas uma pequena dor e nada do Fernandinho, a madre Enfermeira me evitava e as outras freiras não conseguiam evitar um ar de crescente pesar, eu perguntava sobre e todas elas desconversavam.
Mais uns dias se passaram, eu já jogava bola e a turma do São Pedro foi convocada pra uma reunião, a Madre Brasil explicou que o Fernandinho ia ficar um bom tempo na enfermaria, tudo o que era dele havia sido levado pra lá, ao fim da reunião a madre disse pra eu ficar, queria falar comigo a sós. Me disse que a única pessoa que poderia visita-lo era eu, não queria ver mais ninguém.
  Levou-me à enfermaria, falou que eu deveria ser forte, imaginei o pior e quando me viu sorriu, não me pareceu tão mal assim.
  Seus pés ainda não haviam cicatrizado e era uma carne purulenta, feio de se ver.
  Desde muito pequeno, tenho a capacidade de disfarçar algumas emoções, dificilmente me assustam as coisas, na verdade assustam, só que eu não demonstro que me assustei, criei isso sozinho, pra me defender, se não me vissem sentimentos como o medo e o horror, jamais poderiam me atingir.
  Então, se aquela ferida me dava náusea, o amigo não perceberia e jamais sentiria o constrangimento de causar o horror em olhares alheios.
  Fiquei na enfermaria com o amigo e só saí na hora da janta.
  No dia seguinte a madre Márcia perguntou se eu não me importaria de dormir no leito vizinho do amigo...sem problemas e, fiquei.
  Todas as revistinhas da sala de jogos foram levadas pra nós, eu tomava café, almoçava e jantava na enfermaria, só saía em horário de aula, assim que terminava a aula, a tia Sonia subia comigo e passava as mesmas lições que passara em sala, quando não dava para fazê-lo me encarregava de passar a matéria pro amigo.
  Conversávamos muito, brincávamos e riamos muito, porém, eu via no olhar dos adultos, que a coisa não ia bem.
  Uma tarde quando eu vinha da aula, não estava na cama o amigo, disseram que ia sofrer uma cirurgia e voltaria em uns três dias, os olhos da madre Brasil estavam vermelhos e ela evitava me olhar de frente, que remédio... voltei pro pátio.
  Em três dias voltou me avisaram e quando subia as escadas, nos últimos degraus parei, sem que elas me vissem, fiquei a olhar a cena, a madre Brasil chorava copiosamente e a Enfermeira a acalmava, estavam ali, fora do hall da enfermaria, para que o paciente não percebesse a cena, dei uns passos pra trás e voltei pro começo do último lance da escada e iniciei a subida batendo os pés com força, perceberam a minha presença e ficaram em posição de sentido, dei bom dia para as irmãs.
  As duas respiraram fundo e corresponderam à saudação, já sem as lagrimas, a madre Brasil, como já era de costume, ajoelhou-se e fico da minha altura, me deu um beijo e disse:
_Seja forte, muito forte.
  Não deu pra entender, mas, fiz que houvesse entendido, levantou-se e pegou na minha mão, me levou ao quarto do Fernandinho.
  O amigo estava deitado, seus olhos tristes buscavam um ponto inexistente no raio de sol, que vinha da janela de vidro, a madre Enfermeira ficou na porta, a outra foi comigo até o pé da cama.
  Só agora, olhando de perto, vi o que fazia a infelicidade do amigo, o joelho da perna esquerda estava enfaixado e terminava ali, haviam amputado o resto da perna.
  Não me olhou o amigo, um profundo silêncio reinou no quarto, uma borboleta bateu no vidro, ainda que ela pudesse ver o ambiente do outro lado, não podia transpor a barreira, inconformada, jogou-se contra o vidro na vã tentativa de entrar.
  Nove anos eu tinha, nessa pouca idade já presenciara coisas que fariam essa cena ser banal, abri a janela, com a borboleta, uma brisa refrescante invadiu o quarto, mostrei o meu melhor sorriso:
_Caramba, imagina se te derem uma perna biônica, daquela do "Homem de seis milhões de dólares", não seria legal?
  E saiu assim, na maior de todas as naturalidades do mundo, o amigo não olhava mais pro tal ponto, fechou os olhos e começou imaginar o que eu havia proposto, segundo depois soltou uma sonora gargalhada e me abraçou, ria também a madre Brasil, madre Enfermeira entrou e, entre as risadas fazia SSSSSHHHHHHH.
  A mãe dele vinha nos fins de semanas, como era costume de anos, trazia os nossos doces, na cama brincávamos de forte apache e a Rúbia emprestou-nos uma vitrola com vários discos, o tio do Alberto veio num dia de visitas e mandou instalar uma televisão em cores, doou pra enfermaria, de vez em quando ele pedia pra passear pelo colégio, na cadeira de rodas e eu empurrando, por todos os caminhos que costumávamos nos aventurar.
  Um dia, eu estava em aula, chegou à madre Da Glória e disse que o amigo havia partido, só então, me disseram que se tratava de câncer.
Houve velório e cerimônia de enterro, me recusei a comparecer nos dois eventos.
Entre a entrada no hospital e o final de tudo, foram cinco meses e, a falta é eterna.

Meu melhor amigo (Parte terceira)




  Como eu disse, fazíamos parte de uma mesma moeda, diferentes, mas sem antagonismos e tínhamos assuntos pra toda hora, muitas vezes, em hora de repouso, ficávamos com a toalha de mão nos rostos, fazendo que dormíamos e continuávamos cochichando, posto que éramos vizinhos de cama.
  Algumas vezes virávamos um trio, quando batíamos nas latas penduradas na tela que dividia os pátios, fazíamos o som e o André cantava os sambas mais lindos desse mundo.
  Em sala de aula, desde o jardim de infância, nossa companheira era a Marta Yoshie, até que tentaram nos separar dela, mas ela ficou muito triste, a ponto do pai dela implorar que nos deixassem juntos, era um trio estranho aquele, numa sexta-feira, ao final da aula, o pai dela nos levou pra um passeio, ela ia completar oito anos no domingo, passamos esses dias na casa dela e ainda que fosse no Cambuci, era uma réplica das casas do Japão, com jardins, lagos, cascatas e santuários.
  Avisados com antecedência, os convidados trouxeram presentes para a aniversariante e para os amiguinhos dela que, coincidentemente, aniversariavam na mesma semana.
  Mas, via de regra, desde quando chegamos, não nos apartamos mais e a dupla era chamada pelo nome e o sobrenome, geralmente quem aprontava era ele, mas eu era o maior, meu nome vinha em primeiro, na hora do grito:
_NILTON E FERNANDINHO !!!!! e, lá vinha o castigo, metade pra cada.
  Eu não tinha visitas, a mãe dele trazia "bode" pra dois, no caso de recomendações, ela fazia pra mim, pois sabia que ele fatalmente esqueceria.
  Um dia, com a desculpa de resgatar uma bola, subimos naquela lage que tem, entre a sala de aula e o pátio, como a moça, estava ocupada com os outros meninos se distraiu, fomos andando, voltando os pátios agachados, chegamos ao Menino Jesus, havia ali duas linhas de arames farpados, com facilidade pulamos pra rua, fizemos a volta no quarteirão e chegamos na portaria.
  Todo mundo foi chamado, a Olga foi acusada de ser negligente e se defendia, de canto de olhos dava pra sentir que ela queria nos esganar, a madre Márcia queria o pescoço de alguém, menos os nossos, a madre Da Glória já nos havia presenteado com seus famosos beliscões, os meninos foram trazidos pela Olga e nos olhavam com olhos de cumplicidade e admiração e, com certa pena, já que se falava-se em desinternação ou transferência de colégio.
  De cabeças baixas, esperamos e torcemos por um milagre, de frente pro Fernandinho, pude ver que, acima dos ombros dele, a rampa estava iluminada de sol, um vento fazia o véu da madre Brasil esvoaçar e, não tive mais medo de nada, ela entrou no saguão e o saguão se iluminou, em vezes, dava a impressão que ela sempre andava acompanhada de um batalhão de anjos.
  Caminhou em nossa direção, ficou no meio de nós e pousou as mãos em nossas cabeças e, com a naturalidade de quem educa disse:
_É logico que eles ultrapassaram os limites, mas voltaram.
  Se pularam é porquê estava fácil, se fossem outros meninos poderia acontecer o pior.
 E, resolveu tudo, o Juventino consertou a falha na segurança e, isso não evitou o castigo, ficamos sem ir ao Zoológico.
  Mas, quem disse que a dupla, sozinha, não se divertiu na Casa de Infância vazia???

Meu melhor amigo (Parte segunda)


  Uma grande amizade começa sempre sem ser forçada, ela é imposta pela ocasião e vai crescendo, para nunca mais morrer.  Já havia completado 2 anos, desde a tragédia que se abatera na minha família, havia sido transferido do Instituto Sampaio Viana para essa nova casa, com o tempo, peguei o habito de chamar orfanato de casa e, convenientemente, esse lar tinha o nome de Casa da Infância.  Era 1970 e, eu completaria 4 anos de vida, a vida já tinha me mostrado o pior das tempestades e eu havia sobrevivido à ela, no começo eu tinha me debatido, deixado a tristeza ganhar e, vi que isso me afogava mais e mais.
  Num determinado ponto, como um naufrago, submergi à superfície, respirei e senti o ar de lá e gostei, resolvi boiar na água e deixar a correnteza me levar.
  Enquanto esperava na portaria as pessoas resolverem a papelada da internação, uma freira passou no corredor e me viu, ajoelhou-se na minha frente e percebendo a minha aflição, sem mais nem menos, abraçou-me, levantando-me da cadeira.
  Lá em cima, suspenso nos braços dela, como quem já havia se esquecido do carinho, senti a paz que há muito tempo não sentira mais, encostei a cabeça do ombro dela e chorei...Agora, com 50 anos, lembrei-me do momento e as lagrimas voltaram.
  Momentos depois, já afeito do momento, olho para o grande saguão e vejo a claridade do ambiente, muito diferente do lugar de onde eu vinha, no escritório, a madre da Glória ainda discutia a minha internação, a madre Brasil havia se sentado ao meu lado e segurava a minha mão, a manhã jogava um sol no meio do saguão, através da grande porta de vidros.
  Essa mesma porta é aberta pela moça da recepção, aparecem duas figuras, uma senhora com jeito de sofrida e seu filho que, sabendo que ia ficar só, chorava.
  A madre Brasil levantou-se, mas, não largou a minha mão e fomos assim, encontrar os recém chegados, ainda segurando a minha mão, ajoelhou-se diante do guri, que era mais baixo que eu, pôs-se a acalma-lo e disse que ele teria vários amigos, apontou pra mim e disse que eu seria o primeiro.
  Olhamo-nos e eu estendi-lhe a mão, ele retribuiu, ainda soluçava.
  Daí para frente, quem via um, procurava o outro...a gente parafraseava os "Originais do Samba", denominava-nos de... a corda e a caçamba, as freiras e as moças preferiam nos chamar de dupla diabólica.
  Num passeio à Serra da Mantiqueira, subimos numa arvore e nos perdemos do resto do grupo, era noite fechada, quando os bombeiros nos acharam eles estranharam a nossa tranquilidade diante do perigo, acabou que, passamos a noite no batalhão e voltamos no dia seguinte como heróis.
  Diferentes em tudo, eu era introspectivo e ele era solto e, é claro, que a habilidade no esporte veio primeiro pra ele, o Fernandinho era um malabarista da bola, isso lhe dava o direito de escolher o time, a primeira escolha era sempre eu.
  Fomos fazer um jogo de amizade, que em toda época do aniversário do colégio Catarina Labouré, a Casa da Infância era o convidado.
  E, era sempre a mesma história, tendo o colégio anfitrião meninos mais velhos, a derrota era certa sempre, participávamos do jogo por participar e íamos pro resto da festa, ou seja, muita comida e doces.
  Nessa ocasião a coisa mudou, quando fazíamos as filas pra os comprimentos habituais, um dos meninos do Catarina passou do lado do Fernandinho e sorriu da pequena estatura dele, ao fazê-lo, passou a mão em sua cabeça, como se afagasse um bebê.
  Ah, o macaquinho virou o cão na quadra, o menino grande tomou a bola entre as pernas seis vezes seguidas, a cada uma delas a torcida das meninas gritava Olé.
  Não restou outra alternativa, a não ser sair de quadra chorando, nesse instante já se configurava a nossa vitória, a madre Dolores, constrangida, queria consertar as coisas, já que o Fernandinho, continuava arrasador, fazia gols e olhava desafiador para o banco de reservas.
  Tirou o Sebastião do gol e deu a camisa de goleiro ao Fernandinho e, aí ficou bem pior, o macaquinho fechou o gol.
Era uma aliança selada, sem protagonismos, dois guris tentando ser felizes num mundo governado por pessoas tristes, aprendi as letras primeiro e as ensinei para ele, sempre que eu queria calma para ler, vinha ele brincar, quando eu conseguia ler, tinha que contar para ele a minha impressão e, por conta disso, virei contador de histórias.