terça-feira, 11 de abril de 2017

O professor


Antes de falar do Max, quero relembrar alguns mestres do grupo do Educandário Dom Duarte, porque eram corajosos esses, aturar alunos que estavam em classe pra fazer algazarra, não é trabalho fácil.
Em 1978, havia uma sexta-série terrível, em meus anos de estudo nunca vi uma turma como aquela, eram 32 alunos, 30 internos e dois externos.
Não vou tentar enumerar todos os alunos, fazendo isso, corro o risco de esquecer algum, porém, se alguém que ler se identificar com os fatos, pode dizer em comentário, que fez parte dessa turma, mas vou lembrar-me da lista de chamada desta sala...
Havia cinco Joãos... João Pinheiro (do 17), João Rosinha (do 13), João Cavallo (do 19), João de Bunda (do 24) e João Lucena (do 14).
Entre os meninos, somente dois não eram internos, o Luciano e o Claudio Matão que eram filhos do seu Matos do forno, mas esses, por serem filhos de funcionário, tinham o comportamento igual ao dos internos, portanto, quando a professora Anésia passava um descompostura, eles estavam junto no bolinho.
Anésia era professora de Educação Artística, daquelas professoras que não tem medo de cara feia, se alguém gritasse ela devolvia na mesma moeda, levava as aulas no cabresto, a grande estatura dela intimidava qualquer aluno mais afoito, não obstante, era de uma ternura sem medida.
A professora Cristina lecionava Inglês, muito linda mesmo, ensinava fácil e usava sempre uma música pra assimilar a matéria, às vezes, no meio da bagunça, ela parava em sua mesa e fazia um rosto muito triste, a ver a professora desse jeito, a bagunça cessava e ela voltava a sua aula.
Fala sério, ninguém aguenta uma mulher linda, triste.
O professor de Matemática era o Nadinho, esse, quando morrer vai pro céu sem escalas... nunca vi um sujeito ter a paciência igual, sempre tinha um aluno que fazia piada de sua careca e ele permanecia calmo e dava aula sorrindo de tudo e, o pior, ensinava mesmo.
Eram professores que não se vê mais por ai, cujo objetivo maior é o de ensinar.
Começamos as aulas, na última sala, de quem sai da diretoria e vai ao corredor à esquerda, em dois meses, por conta da bagunça, fomos transferidos para aquela sala que ficava fora da escola, feita de madeira.
Na época não havia sido construída a cozinha central, toda essa terra onde agora é a cozinha e o prédio da OZEM, era o milharal do lar 21.
Sabe-se que, em época de milho seco, é de costume tocar fogo no milharal... alguns meninos aproveitaram o fogo e queimaram a tal sala.
Alguns alunos alegaram que estavam sendo discriminados, postos numa sala fora da escola.
Bom, não vou entrar muito nesse assunto pra não fornecer provas contra a minha pessoa... Teve, o diretor Sergio, que voltar a alojar a sexta-série dentro da escola e para que pudesse controlar melhor, realocou-os na primeira sala ao lado direito da diretoria.
Essa medida não fez muito efeito, posto que, o diretor não punha medo em nenhum aluno.
Sou sistemático, já à época o era, em qualquer sala que estudo, me sento na segunda cadeira da fileira à esquerda da lousa, se ela estiver ocupada eu negocio até ela me pertencer.
A coisa estava tão sem saída, que eu já havia me mudado pro fundão, já que ninguém queria estudar, eu é que não seria o único, troquei de lugar com o Augusto e me tornei mais um bagunceiro da sala.
A dona Aimar lecionava Estudos Sociais, não tinha muita paciência e isso fazia da matéria a menos querida entre os alunos, já tinha certa idade e estava gravida, logo no começo da prenhe, entrou de licença e ficou a sala sem professor... Ótimo, muitas aulas vagas.
O diretor Sergio se empenhou em procurar um substituto para o cargo, sentados no bambuzal, tendo o lago aos nossos pés, curtíamos nossas folgas escolares e especulávamos acerca do novo professor, é claro que a folga já acabaria.
A solução viria num nome já conhecido, o Maximino era irmão do Domingão diretor do Educa, a autoridade maior do colégio, esse era o ponto negativo, e como ele já lecionava no Guiomar, fomos lá saber sobre o novo professor.
Ali, ele tinha a fama de ser o mais querido entre os alunos, disseram-nos que dava gosto as aulas dele e olhe que, lá ele ensinava Matemática. E me desculpe quem gosta, mas, não entra na minha cabeça, achar agradável uma aula de Matemática.
O ponto positivo a favor do Max era o fato de ele ser casado com a mais linda entre as mulheres do Educa, sua esposa era a Lucia, filha do seu João do lar 13.
Entrou na sala de aula, vestindo um conjunto de blusa e calças jeans, bem despojado pra época, posto que, combinava com o seu cavanhaque e aquelas botas de bico fino, disse boa noite e sorriu com ar de quem está no comando e, comando para ele, não tinha nada a ver com autoridade, ele tinha presença firme e carisma, escreveu o nome na lousa e permaneceu em pé, olhando firmes os rostos dos bagunceiros, a primeira batalha estava ganha.
Era habito dos meninos da época gostar filmes de artes marciais, bangue-bangue e principalmente de guerra, portanto, em silêncio, esperavam a atitude do professor, conforme as atitudes dele viriam às reações.
Lá do fundão, observei que ele estava tranquilo, feito alguém que está com uma carta na manga.
Puxou da mochila de couro, o livro de Estudos Sociais, perguntou em que ponto havíamos parado, perguntou por perguntar, sabia que ninguém responderia, ao acaso, escolheu um ponto e pediu que alguém lesse, assim que alguém lia um paragrafo ele explicava e seguia o texto com outro leitor, ao fim do paragrafo ele explicava, com calma e com palavras fáceis.
Esse capítulo fazia parte da história da guerra dos emboabas, e esse ponto se chama “O capão da traição”, conforme as coisas se desenvolvem, os meninos vão dando atenção e se envolvendo na narrativa.
Portugueses e Paulistas numa rivalidade, pra saber a quem pertencia a terra, entram em conflito, toda a sala em silêncio, tentando imaginar a cena, o professor tem os alunos em suas mãos, ninguém fala nada, sentado em cima da mesa ele tem a certeza que todos o ouvem.
E vai a narrativa, como quem narra um documentário:
Estão frente a frente, armas em punho, os portugueses na parte mais alta do capão, os valentes paulistas, em menor número e na parte inferior, não se entregam, antes morrer, a se entregarem...
Os meninos sorriem, entendem a bravura dos seus antepassados, se ajeitam nas cadeiras pra ouvir melhor.
Nesse instante, o diretor Sergio invade a sala e vê uma cena que jamais imaginaria ver, todos os alunos em suas respectivas cadeiras e em silêncio, atônito e contrariado não diz nada, o professor lhe sorri tranquilo, o diretor sai coçando a cabeça e bate a porta atrás de si.
Geralmente, essa cena seria encarada com uma vaia, por parte dos meninos e começaria uma festa, mas nada, nenhum comentário a respeito da sandice do diretor, todos os olhos ainda estão fixados no professor.
Os portugueses pedem trégua, se os paulistas abaixarem as armas não serão tratados com hostilidades, tudo será perdoado.
São homens de honra, os paulistas e aceitam a palavra empenhada, depõem as armas...
No capão existe uma enorme vala, é ali que estão os paulistas, assim que o último paulista entrega a arma, os portugueses abrem fogo.
Há um descontentamento geral na sala, vaias e indignação por todo lado, um guri mais empolgado grita a plenos pulmões.
_Portugueses filhos da puta.

O professor, muito calmo, responde às perguntas que não são poucas, todos querem falar ao mesmo tempo, me levanto do fundão e volto pra minha carteira.

O quadro


Fiquei mesmo bolado com aquela postagem do casal de monstros do 14, pensei até em excluir aquela postagem, quase o fiz, porém, num outro blog achei um comentário de um ex-interno do Educa que dizia:
_Sofri muito lá, apanhava muito do Odilon e dona Ana Saback Gomes.
Isso mesmo, um nome pomposo e um caráter duvidoso... deixa a postagem lá, do jeito que ela está.
Não obstante, empatei o placar, contando a passagem do seu João e dona Helena, com a bela filha Lúcia e agora vou desempatar e abrir uma goleada.
O seu João já tinha certa idade e ficou por pouco tempo, se aposentou e foi pra Minas.
Nos fez muita falta e, de um larista pra outro, ficávamos sob a tutela do Luis Antonio.
O casal que veio depois, seu Claudio e dona Dulce, se tornou, pra nós, inesquecível.
O Claudio era desses caras que sorriem fácil e que ensinam conversando, olhando nos olhos, sem superioridade.
Toda tarde descia pro campo e jogava bola com os meninos.
A Dulce era quem mandava de fato, dessas mulheres totalitárias que veem tudo e tomam conta de todos, tinha o urro de uma leoa e a delicadeza de uma gata, além de ser muito bonita.
Cansei de chegar da escola em horário que, geralmente, estariam todos no campo e, estavam todos em reforço escolar, na área do 14, o Claudio esperava, com a bola nas mãos.
Ninguém sonhava em questionar o que ela falava nem os mais ativos ou revoltados,
Um dia, desceram uns internos do 17, disseram que havia um acerto de contas com uns guris do Taboão, passaram para nos convidar a tomar parte na peleja.
Lógico que nossos olhos faiscavam de desejo e, nos preparamos para acompanhar os vizinhos nessa empreitada.
A dona Dulce havia ouvido a conversa toda e saiu na área:
_É muito feio, isso de viver de violência.
A vontade passou na hora, seríamos capazes de qualquer coisa, menos de magoar a dona Dulce.
Pior pros amigos do 17, depois ficamos sabendo que os pobres apanharam feito boi ladrão.
O seu Claudio era formado em engenharia e costumava pintar uns quadros que imitavam tendências cubistas, o que ele mais gostava era um de nudez, cuja modelo, havia sido a esposa.
Pendurou o tal quadro na sala, perto da porta do refeitório, para que todos pudessem visualizar a sua obra de arte.
Toda vez que eu passava, virava o quadro, algum tempo depois, eu voltava e a mulher do quadro estava à mostra, eu olhava em volta e tornava a virar o quadro, todo santo dia.
Um dia, fomos ao lago da olaria e o Claudio nos ensinou a usar a tarrafa, lua cheia, muito peixe.
A dona Dulce era nativa do litoral de Santa Catarina e nos preparava uma saborosa moqueca, enquanto ela estava na cozinha, ficamos sentados no refeitório, uns vinte guris e o seu Claudio, eu havia acabado de virar o quadro, ele olhou e disse:
_Já que, estamos todos reunidos, vou aproveitar e tirar uma dúvida com todos vocês...
O cheiro que vinha da cozinha inundava o pavilhão e nos fazia salivar, enquanto preparava a refeição, cantava uma canção de escravos, imaginei que ninguém prestava atenção na conversa do seu marido, ele prosseguiu:
_Qual de vocês, é que vira esse quadro a toda hora?
Os aromas dos temperos misturados à voz da cozinheira invadiam o ambiente e nos transportava pra outro mundo e o Claudio com aquela conversa mole, levantei a mão.
No mesmo instante percebi que todos os meninos, grandes e pequenos, haviam levantado à mão, todos se espantaram e puseram-se a rir.
Diante do espanto do larista, foi o Sergio quem se pronunciou:
_Veja bem seu Claudio, temos a dona Dulce como a uma mãe, quem é que quer ver a sua mãe, nua na parede?

Com o tempo, a coisa muda.


O cenário é a cozinha de uma casa simples, poucos móveis e a parede ainda por rebocar, um quadro clássico de São Jorge, presente da mãe, amarela na parede, o ano é 1990.
A mulher tem 30 anos, ainda por completar, a comida está pronta, o filho acabou de lavar as mãos e se senta pra refeição.
_Mãe, eu não gosto de verdura.
A mulher exibe, nos cabelos negros, o vigor da juventude e a impaciência que, também é qualidade da juventude.
_Menino, se não comer te enfio goela abaixo.
O cenário agora está mudado, as paredes da cozinha foram azulejadas e o quadro do santo guerreiro foi reformado e virou relíquia, estamos em 2015, a mulher conserva a beleza de outrora, mas tem os cabelos brancos e seu olhar é sereno.
O menino adentra a cozinha, a semelhança com o seu filho é notável, vem enxugando as mãos na camiseta.
_Vó, eu não gosto de verdura.
Ao ouvir o neto, a avó abre um sorriso maior.
_Eu fiz pudim de sobremesa, se comer tudo, ainda tem sorvete.