domingo, 2 de julho de 2017

O grande desafio


Na estrada velha do lar 15, onde Pinheiros antigos cantavam ao vento nas duas margens, meninos que trajavam camisas com cores divergentes se entreolhavam desconfiados, no canto direito, no exato ponto que dividia o território dos dois pavilhões, fora marcada a guerra.
Vestidos com camisas brancas e verdes, os meninos do lar 17 esperavam seu campeão, alguém sem muita perspectiva de crescimento das crianças, na hora da distribuição dos internos, havia juntado todos os nanicos nesse pavilhão e, ainda que fossem da mesma idade dos rivais, eram menores na estatura, mas, eram “marrudos” esses guris e olhavam os maiores com a petulância de meninos grandes.
Vestidos com camisas rubro-negras, os guris do lar 14 tinham por natureza o olhar de quem gosta de brigar, na hora da distribuição dos internos, o critério foi outro, foi racial. Nove entre 10, dos meninos que habitavam o 14 eram pretos e sob a tutela de um larista tido como “carrasco”, mantinham-se unidos em qualquer ocasião.
Esse lado do Educa era um vale, acima do ponto que os meninos haviam marcado a guerra, tinha um aclive acentuado, que subia até a igreja, abaixo da estrada o campo do 17, num plano mais baixo, vinha o campo do 15, depois uma depressão maior e um enorme barranco, só então se chegava ao fundo do teatro, era um local ermo, poucas pessoas andavam por lá, ponto certo pra uma guerra.
De frente pra outra, uma turma não conversava com a outra, se olhavam em desafio permanente, num pequeno monte de terra à beira da estrada os meninos de branco se acomodavam, sentados na estrada, os de vermelho esperavam impacientes seu campeão.
Menos de meia hora atrás, as duas turmas haviam se enfrentado no campão pelo campeonato interno, ainda que fossem valentes os meninos do 17, os do 14 eram mais fortes fisicamente e não deu outra 7 x 0 no placar e, nem se deram ao trabalho de tirar as camisas do confronto, saíram do jogo direto pro local, que já havia sido marcado antes do jogo.
Não se iludiam os guris do 17 quando foram disputar o jogo de futebol, sabiam da superioridade dos adversários, mas agora seria diferente, o Brito ia lavar a honra dos seus e mostrar com a sua habilidade de mestre, que o 17 era imbatível.
Os guris do 14, sequer comemoraram a goleada no rival, afeitos que eram a uma boa briga e sabendo que seu campeão, o Spock, que era, reconhecidamente, o melhor na antiga arte, não restaria nada aos meninos vizinhos, que não fosse à obrigação de se curvarem diante do óbvio.
O sol já se avermelhava e caía acima dos pinheiros quando o Brito apareceu no alto da estrada de cima, isso obrigou-nos a usar as mãos para proteger os olhos, descia ele, cercado d’uns quatro guris, tal qual um boxer, com seus assistentes a carrega-lo.
O Brito era meu amigo na escola, daqueles baixinhos desassombrados que não tinham medo de nada, o olhar frio. que nos lançou, mostrou que ele não estava ali pra brincar, o Spock desceu lentamente, vindo detrás do galinheiro do 14, tinha numa das mãos meio abacate cheio de açúcar e na outra uma colher e vinha sorrindo, como era o seu normal, tinha esse apelido maneiro, devido a um defeito na orelha e pra justificar a alcunha, costumava levantar as pestanas e dizer, em som soturno:
_Fascinante.
isso, acreditava ele, o aproximava do imediato da nave espacial “Interprise”.
Quando foi decidido que o Spock seria o nosso representante na peleja, fui contra, pois achava-o muito brincalhão para o cargo, mas fui voto vencido e ele era o nosso melhor representante afinal.
Enquanto os dois se mediam, alguns meninos limparam o terreno de terra batida, exatamente na divisa dos dois pavilhões, nenhum centímetro a mais pra nenhum dos lados.
Os dois olharam desafiadores e o Brito puxou, da parte traseira do cinto, um enorme saco de pano, abriu a boca do saco e retirou uma bolinha de leite, nem grande nem pequena, branca num tom azulado e com ar de zelo, fixou o olhar carinhoso nela, essa era a matadora.
O Spock não fez o mesmo mistério, enfiou a mão direita no bolso da bermuda jeans e retirou uma, das muita que tinham lá, não atribuía o mérito a uma bolinha, a habilidade vinha de suas mãos, eram mesmo diferentes os campeões, um era místico, o outro era prático.
Uma risca foi feita com um galho seco no meio da estrada, cada qual jogou a sua bolinha, elas caíram exatamente do lado da outra, ao lado da linha, todos os meninos pularam e foram conferir de perto, alguns se deitaram e encostaram o rosto no chão.
_É, a bolinha verde está mais próxima, gritou um guri do 14 e iniciou um bate-boca com troca de ofensas das duas partes, dedo nos rostos ameaça de briga e já tinha dois guris se peitando feito galos de briga.
Lá no chão, a bolinha verde estava na frente da de leite por um inacreditável grão de areia, o Brito se conformou e deu a vez pro Spock.
No triangulo havia 15 bolinhas, com maestria. Jogou a bolinha entre o polegar e o médio, a bolinha descreveu um arco e bateu na bolinha da ponta direita, essa sofreu o atrito e jogou mais cinco pra fora, não se deu ao trabalho de recolhê-las, os meninos de vermelho o fizeram, limitou-se a recolher a sua bolinha e como ainda estava na vez, ajoelhou-se e mediu o palmo, acomodou a bolinha entre a unha do polegar e a parte interior do indicador, no desdobrar do polegar soltou a bomba, a primeira bola que sofreu o choque, chocou-se contra as demais e as espalhou, a bolinha usada voltou pro mesmo ponto que havia saído somente duas bolinhas ficaram no triangulo, quando foram recolhidas, só restaram as bolinhas das pontas opostas de onde ele havia começado o jogo.
Já haviam perdido as esperanças, os meninos do 17, toda torcida depositada na retratação e o Brito sequer jogou a matadora... os meninos do 14 riam, pau no campo e pau na bolinha.
Do mesmo lugar o Spock mirou e acertou uma da bolinhas restantes, queria que a de uma ponta tirasse a da outra e não deu certo, a primeira bolinha triscou mas não o suficiente para arrancá-la da linha, faltava uma única pra decidir o confronto, ria o Spock, o Brito tinha o olhar perdido, olhos de quem segura o choro.
O riso do Spock me dava medo, cutuquei o Viana e ele passou as mãos na cabeça, com somente uma bola pra acabar o jogo, o pastel resolveu fazer graça, deu as costas pro triangulo e jogou a bolinha por cima da cabeça, costumava fazer isso o tempo todo, a bolinha subiu e caiu bem na cabeça da outra, do lado contrario.
Ao invés de tirá-la da linha, jogou-a pro meio do triangulo e a sua bolinha ficou pertinho da linha do triangulo, os meninos de branco, que já se preparavam pra ir embora, gritavam agora, o Brito esfregava a matadora entre os dedos e sorria, passamos a xingar o Spock.
A vez agora estava nas mãos do Brito, um silêncio se fez, deu pra ouvir a algazarra da piscina, restava uma única bolinha no jogo, o Brito beijou a matadora com os olhos fechados, quando abriu soltou-a num repelão com a unha do dedo médio, não buscou a bola do centro, acertou a bolinha do adversário, fim de jogo, os meninos do 17 recolheram todas as bolinhas e carregaram o Brito nos braços.
Ficamos ali uns instantes, remoendo nossa vergonha... a dona Ana chegou-se na quina do pavilhão e gritou:
Nilton, Viana e Spock...buscar a marmita.
De castigo, o Spock teve que ficar na frente da padiola na descida e, atrás na subida, com o caldo do feijão fervente, a escorrer nas suas pernas.