quinta-feira, 8 de junho de 2017

Memória musical.




 
Não sei como funciona a memória das outras pessoas normais, não que eu seja maluco, mas a minha precisa de um dispositivo, alguma coisa que faça as engrenagens se moverem, um quadro, uma estátua, uma estrutura, um simples ladrilho, tudo isso pode fazer a pessoa voltar no tempo e rever sentimentos que já havia esquecido à muitos.
  Mas, meu dispositivo preferido é a música, sem ela eu não escrevo nem o título de uma história e, isso começou cedo, para se ter uma ideia, me lembro da música que tocava, quando eu e meu irmão saímos da viatura e entramos no prédio da delegacia, isso foi o começo da aventura nos orfanatos, não me lembro dos rostos dos policiais que nos carregavam nos colos, lembro do som que os coturnos faziam em contato com o piso e uma música vinha do rádio da atendente era “Olho d'água”, na voz do Milton Nascimento, dali pra frente, em épocas de mudança, sempre tem uma canção do Bituca.
  Quando criança, sabia distinguir a cultura de um adulto por seu gosto musical, o estranho é que isso não me tornou músico.
  Um dia conversando com o Jordão, disse que tinha inveja do fato de ele ser cantor e músico, ele bateu no meu ombro e disse calmamente:
  _Não liga não, você tem bom gosto e isso é um dom.
  Só muito tempo depois é que as palavras do Jordão fizeram sentido.
  Vai o tempo, vai...na juventude, me peguei numa dúvida que me corroía a mente.
  Gostava das músicas de Elomar Figueira que, para quem não sabe, é violeiro e cantador, lá para os lados do norte da Bahia.
  Como podia, um guri nascido e criado em plena capital de São Paulo, gostar de um estilo de música, que nem na Bahia é conhecida????
  Por muito tempo vivi nesse drama, quando ouvia o som da viola e a voz do cantor, viajava sem saber pra onde, atribui o mistério à vidas passadas e quase me esqueci.
  Num belo dia, passando pela rua de trás da Casa da Infância do menino Jesus, orfanato que passei os primeiros anos de vida, dei de cara com o enorme portão e o gatilho acionou, deu até tremedeira e, tudo voltou.
  Numa tarde, quase noite, fui com a Sonia à garagem, ela queria saber se o Juventino tinha cola de sapateiro, pra consertar o salto do sapato dela.
  O Juventino era um crioulo alto, bom... todo adulto era alto pra mim, tirando a madre Da Glória, que era só uns 2 dedos maior que os guris.
  A garagem era uma bagunça, havia de tudo e tudo empilhado, verdadeiro paraíso pra uma criança.
  Já estava trocado o Juventino, preparado pra ir embora, mas a Sonia era muito linda, do tipo que homem nenhum deixa na mão e o Juventino era o nosso herói, jamais deixaria de atender um pedido desses.
  Para não se sujar, me levantou e jogou-me para cima de uma pilha de materiais, numa prateleira feita de madeira, lá embaixo, passou a me indicar onde eu deveria procurar, no escuro, bati numa coisa que caiu e emitiu um som de cordas, imediatamente o homem gritou:
  _Ai, minha viola...falou isso quase chorando.
  Achei a lata de cola e ele mandou que eu descesse a viola junto, pulei e ele me aparou, me pôs no chão e verificou o instrumento, ele estava bem.
  No claro, pude perceber que ela não tinha acabamento, dessas violas feitas à mão, que se vendiam em feiras livres, passou os dedos nas cordas, pra sentir a afinação.
  _Você toca, Juventino???perguntou-lhe a moça.
  _Muito pouco.
  _Toca alguma coisa pra mim.
  O homem esqueceu que estava de saída, sentou em cima da mesa e dedilhou uma coisa que eu nunca havia ouvido antes, pra mim foi um choque, como um homem rústico, de mãos calejadas, pudesse produzir uma coisa tão linda daquelas e letra triste, quase um choro, de tão triste.
  Fascinada, a Sonia, sempre que podia, me apanhava e descia pra garagem, pra mais um show do Juventino.


Repassando cultura




  Não é novidade que gosto de contar histórias, agora mais velho, Deus me deu a graça de, sendo paulistano, ter um neto baiano.
  Quando nos cansamos de guerrear, conto-lhe histórias de heróis que carregam a nossa cor, gente feito Xico Rei, kangazumba e Zumbi, isso é de lei.
  E como, esculpo espadas de madeira, sou obrigado a contar as façanhas de cavaleiros e heróis imortais, como Arthur Pendragón e aquele Jorge da Capadócia, essas são seguidas de ensinamentos de honra.
  A que ele mais gosta é a de um certo capitão farroupilha, que insistia em terminar a pérnita do R, na cara do desafeto.
  Vai ao delírio e, até fala junto comigo, com o devido sotaque gaúcho:
  _"Buenas e me espalho. Nos pequenos dou de prancha; nos grandes, de talho".

O sexteto infernal


  Cheguei ao Educandário Dom Duarte em 17 de Fevereiro de 1977, era uma terça feira, já fui descendo da Kombi e pegando na padiola, na marmita veio o almoço ao pavilhão...fígado com batata.
  No tempo que faltava pro fim de semana, conheci o pino e a enxada, tinha que viver esse mundo novo e aprender com os que já moravam por ali.
  No primeiro sábado, depois da enxada, tive um dia de folga e sentei-me debaixo da araucária, que ficava no bosque, alguns meninos desciam o barranco, sentados na folha da palmeira, me convidaram pra brincadeira e eu me recusei, queria ficar sozinho, queria assimilar esse mundo novo, não estava acostumado com tanto espaço.
  Nem bem havia fechado os olhos e ouvi os gritos que vinham da estrada que levava à olaria.
  _Ei novão, ei novão.
  Eram o Edson Martins, o Viana, o Téquinha, o Ovinho e o Spock, a turma do quarto dos médios.
  _Bóra, vamos ali catar umas mexericas...
  Sem saber onde ficava esse lugar que eles iam buscar frutas, fui com eles, descemos a estrada e ladeamos a horta do japonês, no fim dela dobramos à direita, era uma turma estranha aquela.
  O Téquinha, apesar de ter a nossa idade, era um preto alto e brincalhão, o Viana era um preto baixo, desconfiava de tudo e todos, o Edson era daqueles brancos queimados de sol, que quando nervoso gaguejava, o Adilson(Ovinho) era branco, deles todos, o mais simples e o Valter(Spock) era de cor indefinida, um índio com traços de negros, um mulato com cara de branco.
  Enquanto seguíamos a estradinha que ladeava o lago, o Ovinho perguntou pros outros se podia contar, pra mim, alguma coisa.
  Todos acenaram negativamente e, me passou a sensação de que estavam me aprontando alguma e, já havíamos entrado na mata fechada, resolvi ficar esperto no movimento deles.
  Vencida a mata, chegamos ao Bráulio da Silva...um imenso pomar, um paraíso na terra, havia jabuticaba, ameixa amarela, cana e mexericas.
Pulamos a cerca e partimos pra pilha, nos espalhamos e, eu e o Ovinho fomos direto nos pés de mexericas, eu derrubava e ele recolhia.
  Pronto, já havíamos enchido as camisas e ouvimos os latidos, dois pastores alemães, os outros quatro já seguiam em carreira, quando o Adilson gritou:
  _Era isso, que eu ia dizer.
  Com a minha camisa cheia às costas, abri a corrida, o Adilson ficou pra trás e gritava, os outros riam.
  Do outro lado da cerca, já livres dos cachorros paramos pra descansar e rir da bermuda rasgada do Ovinho, na volta pra casa caminhamos felizes, essa turma participaria de muitas aventuras mais e, esse foi o ponto de partida.