O fim das terras do Educandário Dom Duarte se dava
exatamente no fundo do Cenáculo de Nossa Senhora, esse era o limite da capital
paulista também, entre o prédio das amaríssimas freiras e os mourões do sítio
do Bráulio Silva, corria uma estrada longa, a qual, o sexteto tinha na conta de
mágica.
Essa estrada,
geograficamente, já se encontrava em terras do Taboão da Serra, do fim da
estrada, onde do alto de um enorme barranco precipitava uma longa caída, com
uma mata densa e fechada, podia-se ver a BR-116, na margem oposta dessa, o
gigantesco prédio da PRODESP.
Ladeada de pinheiros
e eucaliptos de replantio, tinha a garantia de sombra eterna, quando muito, o
sol fazia uma linha de meio metro de claridade, bem no meio dela e alguns
saguis pulavam livres por entre as arvores, o canto de várias espécies de
pássaros também se faziam presentes, em toda a extensão.
Andar por essa
estrada nos era uma misto de desafio e exercício de liberdade, primeiro que,
era proibido a qualquer interno, tinha um sabor de estar fora da lei e, tinha o
valor histórico, contou o seu Tinoco que, foi por ali que as tropas de Getúlio
Vargas tiveram acesso à Estrada Velha de Cotia e seguindo-a, surpreenderam as tropas
paulistas em Pinheiros, na contenda de 1930.
Coisa de um
quilometro, no lado esquerdo da estrada, havia um pequeno casebre ao lado de um
enorme barracão, onde uma senhora negra com roupas de mãe de santo ficava
sentada na frente, tinha sempre o olhar perdido e parecia mesmo reagir ao canto
dos pássaros.
Quando nos convidou
a entrar em sua propriedade, ao perceber que eu e o Viana tínhamos passos
iguais e trejeitos parecidos, disse com um sorriso estranho:
_Exu e Ogum são
irmãos gêmeos.
Quando havia festa,
ela nos chamava para os banquetes e, em tardes calmas, ela contava, sentada em
sua cadeira velha, histórias de espíritos guerreiros que amavam a liberdade.
No dia em que
passamos por ela, íamos para o confronto de futebol no Taboão, ela viu que o
Sebastião estava com o grupo, quando passamos, inclinou a cabeça e disse:
_ A Run Boboi!!! O Sebastião, que era
adepto da religião dela, respondeu-lhe outra frase.
Vendo que eu tinha a interrogação nos olhos,
o Viana respondeu:
_. É a saudação à Oxumaré.
Do outro lado da estrada, havia um sítio de
gente branca, lá não haviam mulheres, só gente mal-encarada que cuspiam no chão
e andavam com armas à mostra.
O casarão era antigo, da mesma construção dos
prédios do Educandário Dom Duarte, o prédio lembrava o almoxarifado, a entrada,
porém, lembrava o teatro com suas colunas romanas, dezenas de gaiolas, com pássaros
de várias espécies decoravam o alpendre, tudo se podia ver da estrada, posto
que, nunca fomos convidados a entrar.
E, era sempre pesaroso, depois de passar pela
casa simples da dona Maria, que falava com os bichos, ver aquela riqueza com
animais privados de sua liberdade, era como se o céu fosse vizinho do inferno,
nos dava tristeza.
Naquela manhã, que
era uma manhã morna de agosto, nenhum dos elementos do sexteto infernal fazia
ideia de que iriam viver uma, de suas melhores aventuras.
Quando cheguei no
colégio, os cinco já eram amigos e andavam sempre juntos, o Spock, o Téquinha,
o Viana e o Edson eram mais velhos e entraram com sete anos de idade, o Adilson
era da minha idade, soldado raso feito eu e, já estava lá há três anos.
Só na minha chegada
foi que, começaram as aventuras de fato, como se eles estivessem me esperando,
tudo o que um garoto de 10 anos precisa para ser feliz, era de amigos assim.
Fizemos todas as
obrigações no pavilhão e recolhemos as pipas com as latas de linha que
escondíamos na sapateira, subimos o barranco das uvalhas, enchemos os bolsos
com a fruta azeda e, debaixo da arvore cortada, começamos a correr contra o
vento, o vento não estava forte e isso dificultava a subida das pipas, os
maiores conseguiram colocar as pipas no alto, sem lograr êxito, eu e o Adilson
nos deixamos ficar à sombra da arvore cortada, que nós batizamos de arvore
fantasma, já que ela dava sombra e de noite, vista da janela do segundo
dormitório, parecia uma pessoa parada na estrada.
Não éramos bons, eu
e o Adilson, no trato com as pipas, mas, gostávamos de ver as manobras que os
mais velhos faziam no ar e, sempre dava para ajuda-los na hora da briga com as
pipas dos rivais, tem que ser hábil para soltar ou enrolar a linha, nessas
guerras aéreas, o sexteto possuía umas 50 pipas ou mais.
Acaba que o vento
não vingou mesmo, mantê-las no ar dava muito trabalho e sem ter com quem
rivalizar perdia a graça da brincadeira, os outros quatro desceram as pipas,
enrolaram as linhas e se acomodaram na sombra conosco, eu ainda não possuía o
meu gravador portátil então, não podíamos ainda ouvir o Clube da Esquina,
começaram a sugestões de que a gente poderia fazer para ocupar o resto do dia.
É bem possível que
acabássemos descendo para o campo do 14 e passássemos o dia jogando futebol
então, escutamos o barulho de motor de um carro vindo da estrada do Cenáculo,
olhamos todos para a direção, uma Rural passou por nós em alta velocidade,
vinha com três ocupantes dentro dela, na parte traseira várias malas e no capô,
algumas varas de pesca.
A ideia não surgiu
de imediato, todos atinávamos de que pessoas se tratavam, aquelas pessoas
sebosas que mantinham dezenas de pássaros nas gaiolas e tinham olhares
ameaçadores.
Passados alguns
minutos, todo mundo pensou na lógica daquilo tudo e, sabendo que só voltariam
pela noite, a ideia foi unanime...soltar os pássaros cativos.
Corremos para o
pavilhão 14, guardamos as pipas e latas de linha e como se fôssemos uma
barreira, partimos no mesmo passo, rumos à estrada mágica, fazer o bem na forma
de mal.
Enquanto esse
estranho grupo caminhava, olhei no rosto de cada um deles e entendi a razão que
os movia, liberdade era uma coisa que eles não tinham, alguns deles haviam sido
entregues ainda bebês em orfanatos e agora caminhavam para libertar seres que
nasceram para ser livres, mesmo sem ter a sua, dar aos outros já ajuda a
alma...ah, eu só queria estar com meus amigos e fazer justiça, as
consequências, sofreríamos juntos e de cabeças erguidas, afinal éramos
cavaleiros errantes.
Como heróis
quebramos a curva da estrada, aos nossos pés e contra a luz do sol, uma fina e
quase imperceptível névoa amarela subia das pontas do capim gordura e deixava
um cheiro ocre no ar, ao chegarmos no portão do Cenáculo, uma noviça nos
convidou para o suco com bolacha, ninguém tinha fome e, se tem uma regra nessa
vida que tem poder, é aquela que reza que, nenhum órfão diz não à uma
religiosa... nenhum.
As freiras sempre
advinham quando o guri tem cara de órfão, apareceram mais umas dez delas, todo
o carinho e zelo foi entendido por nós como um encorajamento à execução da
missão, partimos para a estrada mágica sem dúvidas de que estávamos a fazer o
bem.
Quando passamos em
frente ao barracão da dona Maria, ela não estava sentada em sua cadeira, como
de costume, estava em frente ao mourão da entrada do terreiro e, ao ver que
alguns de nós se agachavam, adivinhou o mal feito e sorriu-nos cúmplice.
Entramos com cuidado
no sítio, subimos no alpendre e fomos abrindo as gaiolas, cada pássaro que se
via livre sumia, não satisfeito em soltá-los, o Viana derrubou uma gaiola e
chutou-a num gesto de fúria, o Spock fez o mesmo e o restou os imitou.
No fundo da casa
havia a mesma quantidade de gaiolas, toda gaiola que o Téquinha abria, dizia a
espécie do pássaro preso...coleirinha, sabiá laranjeira, papa-capim e por aí
afora.
Quando a última
gaiola foi aberta e quebrada, demos por encerrada a missão, na parte de trás da
casa havia uma espécie de galpão, o Adilson se dirigiu para lá e ficamos
esperando ele voltar, quando saiu, segurava numa corrente um cachorro que, de
tão magro, fazia pena.
Não voltamos pela
estrada, nos fundos do sítio começava uma densa mata que ladeava o pomar e
terminava no lago da olaria, mais uma aventura para o sexteto infernal, o Edson
era um batedor de primeira linha e nos conduziu até o nosso destino.
O lago da olaria
ficava abaixo do campo do 14, o Adilson livrou o vira-latas da corrente, a
gente sabia que ali, pelas casas dos funcionários, ele encontraria um bom lar
e, passamos o resto do dia deitados à sombra da majestosa araucária do bosque.