sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Maria Chuteira

Voltando a aquele time da infância, que jogava valendo Tubaínas, além do Sebastião que, foi um capítulo à parte, houve uma menina também.
Vou contar como conhecemos a Maria então.
Dois dos meus mais velhos amigos, já que os conheci com três anos de idade, eram o Fabiano e o Josué, o trio chegou ao Educandário Dom Duarte juntos, vindos da Casa da Infância do Menino Jesus, lá, juramos amizade eterna e, para nosso azar, separaram-nos, eu fiquei no pavilhão 14 e eles no 12 e, sendo os pavilhões vizinhos, continuamos andando juntos.
O Fabiano era um inimigo de estimação, por tudo, nos divergíamos, qualquer motivo era suficiente para um bate-boca, mesmo assim, não nos separávamos nunca, acima da testa dele umas fileiras de cabelos nunca desciam, por isso, todos o chamavam de Testão.
O Josué era desses amigos fieis, se eu resolvesse pular de um prédio, ele pulava antes, para me dizer se podia mesmo fazer, tinha os olhos estufados, então a alcunha de Batata.
Tendo todos 12 anos, formávamos um trio estranho, eu maior, o Fabiano de tamanho médio e o Josué menor, isso ficava pior quando o Djalminha do 21 se juntava a nós, o neguinho era dois anos mais velho e menor que o menor, o quarteto de esquisitos, essa amizade já beirava os dez anos.
Estudávamos no Attiê e, por conta de umas aulas vagas, saiu o trio pela avenida Eiras Garcia, do lado esquerdo, paralelamente partia um córrego que descia tortuosamente, desde o Uirapuru e seguia até além o cemitério Israelita, nessa estreita faixa de terra, de frente ao antigo ponto final do Largo da Pólvora, começaram a construir uns prédios de quatro andares, perto da pista os operários construíram os alojamentos e um pequeno campo de terra batida.
Quando passamos, o peões nos convidaram a completar o time, perguntar se um interno queria jogar bola, era o mesmo que perguntar se macaco gosta de bananas, topamos, é claro.
A Maria já estava em campo, tinha a nossa idade, olhos grandes e feições agradáveis aos olhos e, despida de qualquer feminilidade, vivia de chuteiras, meiões e shorts de futebol, jogava com os guris na rua, cansados de serem humilhados pela garota, os meninos do BNH a apelidaram, por maldade, de Maria Homem.
Ao vê-la, o Batata arregalou os olhos, o Fabiano o cutucou de leve.
Eu e o Fabiano paramos nas jogadas bonitas que ela fazia, a cada uma delas, os operários gritavam "Olé", o Batata gritava "Ui", o Fabiano ironizou:
_Como pode, um guri com olhos tão grandes, não enxergar um palmo à frente???
Num lance de rara beleza, o Josué saiu pelo canto da área e chuveirou à meia altura, a danada surgiu entre os adultos, soltou o corpo no ar e deu um sem pulo perfeito, a bola passou entre as pernas do goleiro, na hora de comemorar, a menina correu para o Batata e o abraçou, como se agradecesse a bela bola, daí até o fim da peleja o Batata emudeceu e a gente nunca havia imaginado que ele possuía essa habilidade.
Antes de sairmos, pedi que ela fosse ao colégio no dia seguinte, caso ela quisesse jogar conosco.
Quando passamos do arco da portaria, o Josué acordou:
_Nilton, você tem que chamar a menina para jogar, acho que estou apaixonado.
Tive tato para não ser pejorativo:
_Chamar, eu até posso, mas, quanto a sua paixão...
O amigo ficou contrariado, queria explicações. o Fabiano que era avesso ao cavalheirismo, gritou agastado:
_Sua besta do zóio de bomba, presta atenção...
_Hum.
_Da fruta que você gosta, a moça chupa até o caroço.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Velhos amigos

  Nunca fui de panelinhas, por conta disso, sempre tive muitos amigos, se tem uma coisa que eu aprendi no Educandário Dom Duarte, foi respeitar opiniões alheias, posto que, havia lá gente de todas as raças e, com isso, gostos diferentes.
  Não vou dizer que não ganhei inimigos, longe disso, é claro que eu os tinha, mas, eram tão poucos que, dava para contá-los nos dedos de uma só mão, digo que, por ser muito tolerante, tinha muito mais amigos que desafetos.
  E...pulamos pro ano de 1982, eu já estava com 16 e morava no lar 22...todos os maiores foram juntados nesse pavilhão, faltava pouco pra eu ganhar o mundão.
Eu trabalhava na Procuradoria Geral do Estado, tinha a imensa honra de ser office boy da repartição, nesse momento, já estava voltando pra casa.
  Vestia um macacão jeans azul e uma camisa do Chicago Bulls, sandálias franciscanas sem meias, meu garfo de madrepérolas reluzia no bolso do macacão, de quando em quando, eu o empunhava e ajeitava o Black Power.
Eu me encontrava na praça das Bandeiras e esperava, na fila, o Jardim Arpoador da Viação Castro, já fazia um tempinho que, ali tinha chegado, mas como não queria viajar em pé, pulei pra fila paralela, já quase me arrependendo de tê-lo feito.
  A cidade de São Paulo estava triste, no dia anterior um tal de Paolo Rossi havia eliminado o Brasil, em Sarriá, algumas pessoas teimosas ainda usavam a camisa canarinho.
  Alguém gritou meu nome e pus-me a procurar, avistei-o, vindo dos lados da 9 de Julho, era o Zé Pereira, mais conhecido pela alcunha de Zangão, meu velho amigo de infância, cumprimentamo-nos e ele ficou ao meu lado na fila, as pessoas que estavam atrás de mim, ameaçaram reclamar, ele deu uma encarada nas pessoas e elas se conformaram, eu sabia que ele não iria seguir no ônibus, só parou ali pra falar comigo, tinha um tempinho que ele saíra do colégio, por conta própria.
  Perguntei onde afinal ele estava morando
  _Num quarto, na Baixada do Glicério, respondeu ele.
  Então passamos a falar de bailes, de jogos e meninas.
 Reparei que, enquanto ele conversava comigo, ficava olhando as pessoas que transitavam, principalmente as mulheres, as de mais idade, para ser mais claro.
  E não adiantava, sempre o assunto voltava para o futebol, já falávamos do Paolo Rossi quando, de repente ele falou:
  _Péra aí, que eu já volto.
  Velocista, que era iniciou uma arrancada e, impulsionado por seu Reebok de sola aérea, correu muito rápido, em direção à rua Falcão e num bote rápido, subtraiu a corrente do pescoço da senhora que subia a passarela de madeira.
  Segundos depois, a senhora já refeita do susto, passou a gritar, as pessoas nas filas dos ônibus que faziam os itinerários de Santo Amaro passaram a gritar:
  _Pega ladrão.
  O Zé já vinha em minha direção, com a mão direita aberta, estiquei a minha, na passagem ele bateu, longe ele gritou:
  _Até...e se foi, rumo à Avenida 9 de Julho, pouco depois passou um bando de gente.      _Pega ladrão.
  Só para conferir a opinião do povo, olhei para trás, para ver as pessoas, no que eu olhei, todo mundo baixou a cabeça, tirei o garfo do bolso e ajeitei o Black...e, nada do buzão da Castro.
  Algumas das pessoas que correram atrás do meu amigo voltaram com caras de decepção.
  Subitamente, instantes depois, uma mulher gritou o meu nome, levantei os calcanhares, para poder ver além das pessoas da fila, vinha, lá da avenida 23 de Maio, uma mulata muito bonita, roupas apertadas num corpo muito bem torneado, acompanhada de um perfume de jasmim, nessa altura, não houve ninguém que estivesse na praça, que não a havia visto.
  Muito confuso, esperei que ela tomasse folego, pra eu descobrir como diabos ela me conhecia.
  A mulher pousou as mãos nos meus ombros, frente à frente, aproximou seu rosto do meu e perguntou:
  _Não se lembra de mim??
  _Juro que não...respondi sem jeito.
  _Eu sou o Sebastião, bobinho.
  _É... o que, minha senhora???já tirando as mãos dos ombros e me afastando.
  _O Sebastião do pavilhão 14, sou eu.
  E passou a contar suas aventuras, shows na avenida Rio Branco, viagens pra Itália, Espanha, disse que morava numa Kit, no Edifício Copan, mas, lembrando o passado, falou de seus tempos de goleiro...Nesse momento o ônibus encostou, despedi-me e segui a fila, subi no ônibus, quando me sentei, pensei comigo:

  Que mundo louco, os caminhos que as pessoas seguem...
Foi a última vez que vi os dois amigos.

No contrapé

Tem hábitos e costumes que vem de muito tempo, eles acabam virando cacoete e, termina que esses tiques te acompanham a vida toda, viram parte de você.
Dos anos 1980, tempo da Soul Music, quando os caras andavam com cabelos enormes, arredondavam e os mantinham altos, à custa de produtos químicos, eu acostumei a usar as mãos, afim de baixar as pontas que saíam.
Com o passar do tempo, a moda do Black Power se foi e morreu e, eu continuei, mesmo quando muito baixos, com o habito de usar as palmas das mãos para baixar as pontas.
Virou um cacoete meu, milhões de pessoas perceberam isso nesse tempo todo, porém, ninguém teve coragem de me contar, sequer riam disso, talvez, se tivesse acontecido, eu teria parado com essa mania.
Dia desses, conversando com a minha neta Júlia, disse a ela que da família toda, eu era o menos doido...subentende-se por doido, aquela pessoa que tem manias esquisitas.
Minha neta tem oito anos completos, sei que é uma excelente observadora, isso ela puxou do vovô.
_Vô, essa história não é bem assim.
_como assim???
_O senhor tem a mania estranha de bater no cabelo com as duas mãos espalmadas, feito quem tem cabelos muito grandes, na maioria das vezes, nem tem cabelos na sua cabeça.
Depois dessa cacetada, que me pareceu um atropelamento, ela se levantou e me imitou com tanta perfeição que eu tive cólicas de rir, rir de mim mesmo.
Bom, depois disso, tenho me policiado e prometo que vou me livrar da mania, não me ofendi por ser imitado pela menina, pelo contrário, me senti homenageado.
Afinal, só pode imitar, quem observa e estuda muito bem o imitado.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Se a moda pega

Quando eu estudei no grupo escolar do Educandário Dom Duarte, em 1977 e 1978, ainda não havia o SENAI no prédio do Aprendizado.
Todo interno que completava 14 anos tinha que fazer o curso fora, levantar cedo, pegar a marmita no pavilhão 23, a cozinha central, comandada pelo irmão Simão, haviam vários locais, o mais comum era o SENAI Ipiranga.
Esse ritual já contava como um rito de independência do interno, logo, ele estaria empregado e, caminhar pela cidade seria mais fácil.
Como as aulas no grupo escolar terminavam às oito e quinze da noite, as meninas mais fogosas e os guris mais afoitos, desciam para o mastro das bandeiras, ali, os internos que faziam o curso e os que já trabalhavam faziam um tempo, antes de subirem aos seus respectivos pavilhões.
Nessa faixa, que compreende, entre a subida de paralelepípedos até a casinha do campão, eles ficavam até bater o sinal do final das aulas.
Algumas meninas que estudavam no grupo, eram namoradas daqueles caras, então, nós, guris, ficávamos a admirá-los, com suas calças boca de sino, camisas de golas longas e sapatos plataforma, a contar suas aventuras diárias e beijar as lindas meninas que, jamais pegaríamos.
Muitos procedimentos e posturas, aprendemos por esse tempo, enquanto morríamos de inveja de nossos amigos mais velhos.
  Curtia-se a Discoteca, não encaramos esse movimento, politicamente falando, essa era uma coisa de burgueses, novela das oito e parápapá.
É do tempo, o privilégio de correr num rio caudaloso e sem volta e, ele passou.
A época do Funk nos pegou quase adultos, adolescentes ainda, porém, com cabeças evoluídas, por esse tempo o aprendizado já havia sido convertido em SENAI e já havíamos feito nossos cursos, o grupo escolar havia sido fechado para reformas e éramos os reis dos bailes.
Jordão, Edson Pirata, Tavares, Bazão e Bazinho eram nossas referências, quando os encontrávamos nas ruas ou nos bailes, fazíamos fila para os cumprimentar.
Agora, tínhamos a convicção de que éramos os caras que os guris admiravam e não fizemos feio.
Numa bela tarde, na frente do pavilhão 22, enquanto uns levantavam os blacks e outros lustravam os sapatos de meia sola, eu, o Viana e o Dooley lembrávamos de tempos passados e nos lembramos de duas das mais emblemáticas figuras da Discoteca, eram o Jordão e Luís Paulo, o funcionário.
Eles tinham umas característica em comum, ambos eram negros, magros e muito altos, suas pernas eram desproporcionais com relação aos corpos, alguns passos que eles davam, passavam a impressão de uma lagartixa se contorcendo.
Era muito engraçado, quando eles dançavam, como éramos crianças à época, não rimos e agora, às gargalhadas, tentávamos reproduzir os passos.
Passado esse instante de memória e de comédia, fomos à matinê da Chic Show em Pinheiros.
Coincidentemente, encontramos o Jordão na pista e rimos, o Viana o chamou, pediu que ele visse como ele dançava anos atrás, juntamo-nos ao amigo e fizemos a coreografia, o Jordão dava gargalhadas...foi então que percebemos que estávamos no centro da pista, seguindo a nossa coreografia, umas trinta pessoas tentavam assimilar o passo. 
Essas trinta pessoas se tornaram centenas, em poucas semanas o passo da lagartixa havia tomado todas as pistas de baile Black da Pauliceia desvairada.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Borboletas ao vento


Gosto, definitivamente, de borboletas.
Quem acompanha minhas edições de vídeos ou minhas narrações, verá e constatará que, sempre há uma ou bandos delas, para mim é um símbolo de vida, de leveza e beleza.
Dia desses, depois de ser queimado por uma taturana, meu neto fez menção de se vingar do repugnante inseto:
_Se você quiser, eu mato.
_Mata vovô.
_No entanto, eu vou estar matando uma futura borboleta...
E, diante da perplexidade dele, segue uma pequena aula de biologia, ao final das palavras, mesmo ainda com lágrimas escorrendo-lhe na face, ele recomendou que eu a pusesse em lugar seguro.
Meu neto é sempre o melhor ouvinte das minhas narrativas e então fui em diante:
"...No Sampaio Viana não haviam jardins e, era muito escuro tudo, muitas crianças juntas e pouco diálogo.
Fui vítima da catapora e, para que a doença não se alastrasse, fiquei isolado num quarto, quarto que ficava perto do pátio de recreio das outras crianças, ficar isolado era, por si só, um castigo para um guri com três anos de idade e ouvir os gritos de felicidade dos outros, enquanto a febre consumia, era muito pior.
Fazia um vento forte de outono e, da janela estreita, de onde um raio de luz vinha, uma borboleta pequena, dessas mais ordinárias, dessas de cor amarela e preta veio, num voo nervoso fez evoluções e pousou na minha mão.
Até que eu me recuperasse, ela vinha com o sol e ia embora pela noite e, por essa companhia, eu não me senti a solidão.
Na Casa da Infância haviam centenas delas a voar nos jardins que ficavam entre os refeitórios e as salas de aulas, naquelas salas de estudos, acima da portaria, as freiras plantavam flores nas jardineiras da janelas, sempre vinham várias ali, as espinheiras davam flores com néctar, um espetáculo à parte.
Numa tarde de sol, quando eu e o Clóvis, agachados no beiral da piscina de alvenaria, iniciávamos uma dissecação numa taturana, daquelas pretas com espinhos brancos, a madre da Penha calmamente se postou ao nosso lado:
_Os doutores sabem que vão impedir que esse bicho asqueroso se torne uma borboleta, não sabem???

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

As regras de Dulce



   Sempre falei e, sempre vou falar, que sou um homem que foi criado por mulheres, numa escala de doze, oito, de tudo que aprendi na vida, foi com mulheres.
  Nunca vou me envergonhar em assumir isso, ao contrário do que se pensam por aí, não são pessoas inseguras, essas pessoas criadas por mulheres, nem tem eles, propensões à feminilidade, não mesmo, eles crescem cavalheiros e, jamais farão mal ao sexo oposto.
  E, depois daqueles oito anos de ditadura feminina na Casa da Infância do Menino Jesus, encontrei no pavilhão 14 do Educandário Dom Duarte, o pior tipo de casal do mundo.
  Para cuidar dos 45 meninos, com idade entre sete e dezessete anos, a função era educar e proteger e eles sequer eram educados para o cargo.
  Espancavam, ignoravam e os expunham à trabalhos escravos, o Odilon era analfabeto, a esposa Ana, sorria e achava graça do fato do marido andar com um revólver à mostra, a maioria dos meninos achava que, dos dois, ele era o pior, para mim, ela era tão ruim quanto, se ela quisesse, poderia ter mudado tudo aquilo, uma das piores mulheres que eu já tive o desprazer de conhecer, a dona Ana.
  No colégio, essa época foi conhecida como a “época dos carrascos”, eu cheguei em 1977, os outros membros do sexteto infernal já sofriam aquilo a mais de cinco anos.
  Tudo aquilo fazia com que os meninos do 14 ficassem unidos, a revolta crescendo todos os dias, mais dia ou menos dia, a bomba explodiria, era, portanto, um enredo com um final mais que provável.
  Só provável mesmo, quis o destino que, no pavilhão 24, no outro extremo das terras do Educandário, uma tragédia acontecesse na segunda metade do mês de novembro de 1979, esse evento mudou os rumos de toda história.
  O Celso, que tinha a mesma idade minha, 12 anos, acompanhado dos amigos de pavilhão, desceram para o lago e acabou afogado, larga, foi a repercussão do caso na imprensa, quando um batalhão de repórteres invadiu o colégio e começaram as perguntas acerca do caso, souberam de mais casos, de descasos, de castigos, de flagelos, de humilhações e de todo tipo de maus tratos que sofriam os internos do Educandário, tudo direto no ventilador.
  Como consequência, a diretoria caiu, com ela os carrascos juntos, livres do opressor, os meninos do lar 14 firmaram um pacto, se alguém encostasse a mão em um deles, todos reagiriam.
  Dois meses depois, fomos apresentados ao novo casal de laristas do pavilhão 14, era um homem opulento de barba, media uns metro e noventa para mais e uma mulher magrinha, de estatura média de mulher, olhos verdes cativantes e uma boca pequena, feições suaves como as de uma fada.
  Mal-acostumados que estávamos, paramos na descrição do homem, que era forte, à primeira vista seria uma volta à ditadura, imaginamos que daria trabalho derrubar aquele homem, mas como estávamos em número maior, não custaria tentar.
  O casal tinha um filho de dez anos, tirando o tamanho, o resto era a cópia do pai.
  A moça deu um passo à frente e se apresentou, assim que ela começou a falar, todos os meninos que estavam na frente do pavilhão se sentiram aliviados, toda a expectativa que tínhamos foi ao chão, se chamava Dulce, o marido dela era Claudio e o filho Israel, falava de modo seguro, com sotaque catarinense e, no fim, disse que nos cuidaria como se fossemos seus filhos.
  O Claudio, apesar da opulência corporal, era um sujeito calmo que gostava de jogar bola com os guris, pintava quadros e dava bons conselhos, o comando de fato era da dona Dulce, não mandava, pedia com educação e, em hipótese nenhuma, recorria à violência.
  Se julgar que a dona Dulce não conseguisse tomar conta de 45 internos, está muito enganado, além desses, ainda tinha o marido e o filho, para ela era tudo filho, qualquer problema que alguém tivesse, ela detectava e resolvia, tudo com naturalidade.
  Aprendemos de um tudo com a dona Dulce, artes, amizade e sexo também, sobre esse último, aprendemos sobre círculo menstrual, essa lição foi prática.
  Via de regra, a dona Dulce era realmente uma fada, verdadeira personagem de contos de fada e como, na vida nada é perfeito, coisa de três ou quatro dias a cada mês, por conta das regras, ela sofria uma espécie de mutação na sua personalidade, dir-se-ia que ela entrava em modo demo, qualquer cair de um alfinete, a irritava profundamente, até a voz ficava diferente.
  Nesses tais dias, o pavilhão 14 se quedava num silêncio de hospital, qualquer bem-te-vi que ousasse cantar por perto, era expulso a pedras, lá no campo, se se fizesse um gol, por mais bonito que fosse, não se comemorava.
  Numa bela tarde, estavam na área do pavilhão, um grupo a esperar uns outros que vestiam os tênis, no grupo que esperava, estavam o seu Claudio e o Israel, os que se ajeitavam faziam o máximo para não fazer barulho, a dona Dulce estava na cozinha num mau humor de cão.
  O Israel, à exemplo do pai, era um emérito peréba, pegou a bola e cismou de fazer embaixadinhas, todo mundo sabe, bola no pé de peréba é uma arma, na primeira levantada, a bola foi de encontro à janela do segundo dormitório, o vidro se espatifou.
  A vontade de todo mundo era correr, a surpresa foi tão grande que ninguém se mexeu do lugar, esperando a voz modificada, que viria da cozinha, todo mundo encolhido de medo antecipado, a voz veio:
  _. Está vendo só, o que dá, essa merda de futebol???Na próxima meia hora ninguém sai daqui ...meia hora.
  No meio da área havia uma enorme mesa com tampo de Madeirit com quatro banco grandes, onde ela dava as lições de casa, em silêncio, cada um achou um lugar e se sentou.
  Algum dos meninos achou que o castigo não se estendia ao Claudio e ao Israel, pelo fato de eles serem o filho e o marido da moça, cochicham isso.
  O Israel disse que, nem por um decreto, ele se levantaria dali, o Claudio raciocinou uns segundos, na cabeça dele foi assim:
  Afinal de contas, não faz sentido, eu, o homem da casa ficar de castigo, que raios...eu não sou menino, sou homem, pensado isso, encheu-se de coragem e se levantou do banco, o movimento provocou um ranger de madeira, de lá de dentro a voz gritou mais alto:
  _Claudio, se você sair daí, vai ficar mais uma hora.
  _. Que isso querida, estava só me ajeitando aqui.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O João do Bode.

Parte de se viver órfão, era a solidão de não ter uma família, alguns vão usar isso como desculpa para não conviverem em sociedade e se estagnarem nesse mundo e, como consequência, nunca estarão completos, sempre a desculpa de não serem amados na infância.
O Educandário Dom Duarte não atendia só aos órfãos, grande parte dos internos tinham famílias e as viam em fins de semanas, quando não, tinham sempre os domingos de visitas, as famílias que não tinham condições de buscar o interno, compareciam nesse dia e armavam seus banquetes no gramado, do lado oposto do campão.
Bom, o órfão tinha uma única visita, o João do Bode.
Esse notório personagem, era um crioulo alto de sorriso fácil e alma de anjo, não sei se foi promessa ou, simplesmente o sentimento de voluntariedade que o impelia a ser um afro-Papai Noel dos meninos.
Alguns contam que ele havia sido interno da Casa da Infância do Menino Jesus e, por ser órfão, não recebia visitas, fora lá, por compensação, que ele havia começado, em domingos de visita e natal, a distribuir doces aos poucos que ficavam no colégio.
Então, ele compensou a tristeza da infância, passou a ser a visita de quem jamais teria.
Alguém sempre vai supor que, para tal empreitada, um sujeito tem que ter muito dinheiro, o João não parecia, pelas roupas que vestia, ser um sujeito de muitas posses não, ele comprava uma parte e arrecadava com amigos e comerciantes, juntava tudo num grande saco e distribuía.
Quando me mudei para o Educa, percebi que o João do Bode chegava regularmente às 14:00 horas, de qualquer canto que se estivesse, o grito ia passando, de boca em boca:
_O João do Bode chegou.
E, como se fossem tambores, quem estivesse em lugares distantes, saberia da notícia e corriam ao encontro, os meninos que estavam com suas famílias também corriam, de longe se podia ver a cena, um homem grande correndo, seguido por dezenas de guris.
Claro que os doces eram bons, isso conta no final da história, porém, para alguns internos, essa era a única visita.
Viva sempre, João do Bode, um homem simples, de atitude gigante.

domingo, 10 de setembro de 2017

Mundo cão.

Dizem que a vida é sagrada e, não se deve dispor dela...alguma escrita citada na igreja ou algum livro de autoajuda, sabe-se lá.
  As pessoas que dizem isso, vivem vidas relativamente confortáveis, recostam-se em suas cadeiras estofadas, ajeitam os óculos à cara e digitam palavras em suas máquinas automáticas, protegidos em seu mundo seguro, jamais farão a mínima ideia do que se passa na cabeça da menina esquálida que acabara de entrar no posto de saúde, capengando ela segue, a dor de seu corpo é nada diante da vergonha de ser alvo dos olhares de pena e reprovação, esses olhares tem um pesar latente, apontam e massacram.
  Chegar a esse ponto foi natural, um final à rigor para uma sobrevida, para Luciléia não existe nada que a prenda nesse mundo, de homens que batem em meninas e sem qualquer remorso, as violentam, um mundo de mulheres que fazem não ver a tudo isso, pessoas que machucam meninas em lugar de protege-las, melhor mesmo é sair disso tudo.
  A moça da recepção que a atendera, não viu que seu rosto estava deformado, não perguntou sobre a boca inchada e as múltiplas escoriações pelo corpo, tomou-lhe o documento e preencheu a ficha e... se visse, não faria diferença, a cena é comum e corriqueira nas periferias das grandes cidades, alheia jogou a ficha no balcão e virou a cara:
  _. Senta ali e espera que o médico já vem.
  O canto onde as portas dos consultórios se localizavam, ficava fora do saguão, um beco fora dos olhos dos curiosos, uma fileira de bancos vazios e a menina se sentou com cuidado para não sentir as dores do corpo e, não havia uma parte do corpo dessa menina que não doesse.
  Essa menina tinha 13 anos e já era esposa de um traficante, esposa por caridade e escrava sexual, de uma besta que via prazer em torturar, humilhar, espancar e violentar.
  E não havia como voltar para casa, essa vida de agora já era a fuga de uma vida terrível.
 Entre o tratamento que a mãe lhe dava e o tratamento que o traficante lhe impunha, não havia nem melhor nem pior.
  Luciléia tinha que esperar um bocado, todo o corpo lhe doía, uma dor que dilacerava feito infecção e crescia mais e mais.
  Percebeu que a porta do consultório estava entreaberta e, uma ideia lhe veio à mente, tinha que agir rápido, olhou em volta e ninguém estava atento à ela, levantou-se e entrou na sala, ao lado da mesa havia um armarinho, daqueles confeccionados de vidro, que a porta também estava aberta com uma grande quantidade de remédios.
   Luciléia notou que no cestinho de lixo havia jogada uma sacolinha de plástico, muito rápido encheu a sacola com todos os remédios que pôde e correu no corredor em direção ao banheiro, tão rápido que ninguém se deu conta da cena.
  Enquanto tirava os comprimidos das embalagens, se despedia das pessoas que a maltrataram, se despedia das surras e dos seguidos estupros, se despedia dessa vida de cão.
  Como já não comia há vários dias, teve dificuldade para engolir o monte todo, alguns comprimidos escorreram dos palmos juntos, os mesmos palmos apararam o jato de água da torneira e desceu tudo, tudo de uma vez.
  A moça da recepção achou estranho quando aquela menina esquelética saiu correndo pelo saguão e ganhou a porta da saída, mas não deu muita atenção ao fato.
  O sol bateu em cheio o seu rosto, um clarão intenso que a fez piscar, um último raio de sol antes da tragédia do final tão próximo, as pessoas que viram seu rosto nesse momento tiveram dificuldades para saber se seu rosto esboçava um sorriso ou fora o sol que feria os seus olhos.
  Já não via mais nada, as coisas se embaralhavam em sua frente, pessoas, carros e casas formavam uma massa uniforme e sem cor, tudo ficou cinza.
  Cambaleou uns trinta metros fora do portão do posto, tombou na guia e seu corpo rolou para dentro do córrego.
  Aquele mundo mal deu lugar ao azul infinito do nada.

sábado, 9 de setembro de 2017

O piano branco



Cheguei bem cedo, desci na Raposo e segui o caminho que sempre fazia para assistir os jogos, antes de chegar na avenida Corifeu, uma rua arborizada com lindas e grandes casas, a moça era produtora musical.
Vim com minha melhor beca, camisa branca e o mocaçim brilhando, mostrei o cartão ao segurança e o acompanhei pelo jardim, ao lado da casa principal.
O jardim era largo, bem cuidado e de extremo bom gosto, entre as rosas, haviam estátuas romanas em mármores, um caminho de pedras se seguia no chão, meu desafio era me manter em cima delas e elas faziam zig zag, fosse o que fosse, não queria sujar os sapatos.
No fim do jardim, um longo corredor com piso xadrez levava ao lindo escritório, a parte do solo era uma garagem, lá havia um carro conversível e, a minha total ignorância nesse assunto, não permitiu que eu identificasse, ao lado, uma escada em formato helicoidal levava à uma sala toda arejada com piso branco, parede branca e forro branco, o sol que entrava pelas janelas, batia e refletia, deixando tudo mais branco.
Não haviam muitos móveis nessa sala, algumas cadeiras, um sofá e um armarinho de vidro, bem no meio da sala, um solitário piano branco, o segurança pediu que eu aguardasse, pois, a moça não me esperava tão cedo, me deixou só.
Longos minutos e nem uma revista para ler, cheguei-me ao piano e dedilhei de leve suas teclas.
Um suave cheiro de jasmim precedeu a chegada da moça, se eu tivesse apostado com alguém, qual a cor preferida dela, eu teria ganho.
Chegou toda de branco e, me pegou ainda ao lado do piano.
_. Vou ter que tocar???
_. Não;
_Sorte sua, eu não sei tocar.