quinta-feira, 29 de junho de 2017

De versos e garota cruel.




  Em alguma postagem dessas, eu disse que nunca neguei o fato de ser interno, ato falho meu, houve uma única ocasião em que eu, como Pedro, neguei três vezes.
  Não quero dar a mim, a mesma importância que a do pescador, mas, o fiz para preservar a minha integridade física e, ainda de quebra, vou contar sobre dois personagens que deixaram saudades.
  O Oscar, que todos chamavam de sarará era, na verdade albino... aquelas pessoas que nascem de cruzamento de indivíduos de pele escura, no entanto, algo anormal ocorre em seus cromossomas, e o resultado são filhos com a coloração da pele muito alva e são, geralmente, deficientes visuais.
  Ah, o Oscar tinha um pequeno desvio de caráter, como eu o conhecia desde o outro orfanato, posso garantir que o defeito, já veio de fabricação e, ele não podia controlar, por vezes ou sempre, costumava afanar as coisas das pessoas, o que lhe rendeu, a justa alcunha de ladrão.
  A Lígia era a menina que eu cortejava, estudava comigo no grupo escolar e, me tinha como um bom amigo, como eu escrevia versos e tinha doze anos, fiz para ela alguns e, duvido que a ingrata os tenha lido.
  O jeito para conquistar as mulheres, eu só aprendi mais tarde e, como um cavaleiro que investe contra moinhos imaginários, fazia o meu possível, a moça resistia e, para a minha infelicidade, a ingrata só me queria como amigo mesmo.
  Ah, quanta crueldade daquela menina... desprezar os versos e o amor puro de um carinha feito eu.
  O próprio pai da moça me ajudava, até a mãe dela falava bem de mim, e ela?
  Como na canção... "Me fazia de escravo do seu bel prazer", Tom Jobim também falou dela, menina sem alma.
  Como eu não desistia nunca, todo sábado pela tarde, ia à sua casa fazer a corte.
  Num sábado morno de primavera, deixei meus amigos no campo do 14, tomei um banho e vesti a minha roupa de domingo, na parte interna da porta do meu armário havia um caco grande de espelho, enquanto jogava em mim o desodorante de limão, admirava o meu rosto e me sentia feliz, o Luiz Antônio passou e me deu um tapinha no ombro:
  _Ah, moleque... agora vai.
  Todo mundo do pavilhão sabia da minha luta e torcia por mim, a minha história era de domínio público, sempre me perguntavam:
  _E aí, conseguiu ganhar a magrinha?
  Sempre a negativa da minha parte e, invariavelmente, vinham palavras de conforto.
  Quando sai de frente do aprendizado, vi que o Oscar já saía na portaria, imaginei que ele fosse ao seu lugar predileto... o mercado Paraná, já até podia prever o que iria acontecer por lá.
  A Lígia morava na rua Professor João de Lorenzo, na casa onde o João Bellini construiria o seu bar, anos mais tarde.
  O mesmo de sempre, eu falava em compromisso sério e, ela falava da matéria da escola, eu recitava-lhe uns Vinícius de Moraes e ela vinha com a geometria de professora Anésia.
  Passadas duas horas de tentativas infrutíferas, preparei-me pra ir embora, quando saía no portão da casa, vi o Oscar numa carreira desabalada, rumo ao Educandário Dom Duarte, só vi mesmo o vulto e, como eu sabia as roupas que ele usava, supus que fosse ele mesmo, quando o procurei já havia feito a curva do ponto de ônibus, da descida, vinham uns homens gritando a plenos pulmões:
  _Pega ladrão.
  Meti as mãos nos bolsos e me pus a caminhar, um dos homens parou e veio em minha direção, era o dono do mercado, como os outros três, carregava um pedaço grande de pau nas mãos:
  _Ei moleque, você é interno também, né?
  _Eu? De jeito nenhum.
  . Os outros homens, vendo que jamais alcançariam o Oscar, voltaram-se para mim, um era o seu filho, os outros eu conhecia da Vila Operária, olhavam para minha figura e batiam com os paus nas palmas das mãos:
  _. Esse moleque é interno, eu tenho certeza. Disse um deles.
  _. Está maluco, eu? Um FEBEM? De jeito maneira.
  Convencidos de que eu falava a verdade, continuaram o caminho para portaria, eu continuei andando, sabia que não entrariam no colégio, o mesmo que me acusou de ser interno voltou a falar:
  _Se você não é interno, porque se encaminha nessa direção?
  _Gênio... vou pegar o ônibus no ponto do Educa.
  _Você jura que não é interno?
  Nesse momento, parei e me certifiquei que nenhum galo cantaria, olhei pros lado e disse:
  _Jurar eu não vou, que é pecado, mas, tenho certeza que não sou interno.
  Frustrados, pararam em frente da portaria e passaram a se lamentar.
  Ao perceber a minha aproximação, o seu Felipe abriu a portinha pequena e me cumprimentou, apressei o passo e entrei, agradeci ao porteiro e, estando do lado de dentro do meu lar, me senti intocável, ganhei os paralelepípedos e me virei.
  Os quatro me olhavam em cólera e me xingavam, com um resto de sol que já se ia, posto, que já se findava à tarde, estendi-lhes a mão direita e levantei o dedo médio e, ainda que eles dissessem coisas feias da minha mãe, me fui embora.
  Na escada do teatro, o Oscar se escondia e saboreava um pacote de Mirabeau, fui ao seu encontro:
  _Caramba moleque, você precisa parar com essa coisa de roubar, quase que eu apanho no seu lugar.
  Sentei ao seu lado, além do pacote que ele abrira, havia mais cinco, não falou nada porque estava com a boca cheia, depois de engolir me ofereceu um pacote, recostei nos degraus e passei a abrir o meu pacote, ele então me perguntou:
  _E aí... ganhou a magrinha???