quinta-feira, 2 de março de 2017

O castigo.


Nessa, vou pedindo desculpas pras moças.
As mulheres, esse maravilhoso presente de Deus, que fazem os meninos suspirarem, que silenciam uma conversa animada, que nos causam dores na alma e nos tiram o sono, nos faz poetas e patetas.
Tudo isso, num tempo mais tarde, na infância nosso maior material de adorno tem outro nome... bola.
Feito isso, deu pra perceber que vem aí mais uma aventura de futebol, futebol e amizade.
_Caramba Niltão, você só pensava em bola? Perguntará o leitor.
_Absolutamente, eu pensava em coisas como, a paz mundial, ganhar na loteria esportiva, conhecer o Simba Safari e quebrar a cara do George Foreman. É... pensando bem, eu só pensava na bola mesmo.
Na verdade, eu não conseguiria falar desse amigo, sem falar de uma partida de futebol memorável.
Antes disso, um prólogo que vai, no fim do texto, dar sentido à narrativa:
No final de 1979, mais ou menos, houve uma verdadeira revolução no Educa, quase todos os grandes foram "expulsos", os buldogs da dona Camila passaram a fazer parte da paisagem, os irmãos foram embora, o pavilhão 11 foi desativado e mais tarde viraria a creche, livre dos grandes o pavilhão 15 virou um lar de meninos com idade de seis e sete anos.
Os meninos do 15 viraram a grande atração, quando eles desciam, em fila indiana, para o refeitório central, causava certa euforia nos outros internos, qualquer um que estivesse na frente da fila, dava licença pra eles, eram os caçulinhas de todos. Vendo um deles, que se movia muito rápido e entre todos era o mais bagunceiro, meu amigo Viana disse:
_Aquele ali parece o Ligeirinho, aquele ratinho das histórias infantis, todos concordamos e o apelido pegou.
Então vamos ao assunto:
O Valdir Lustosa havia vindo da Casa de Infância, mais um dos meus amigos mais velhos, tinha o irmão Paulo e eles moravam no lar 24.
Disse em outra postagem, quando falei do Sebastião, que na Casa da Infância haviam dois grandes goleiros, o outro era o Valdir.
Ainda que ele fosse um "fora de série" no gol, o time do 24 era de medíocre à ruim, suas belas defesas não salvavam o time.
Nosso próximo adversário seria o 24, a hegemonia do 14 era tão grande que a expectativa era um massacre, com muitos gols.
Cego pela arrogância encontrei o Valdir no Attiê, na hora do recreio, falamos sobre o jogo próximo e devo ter sido bem pretencioso, ele ameaçou de partir pra pancada, formou-se uma rodinha em volta, uns me seguravam e outros o seguravam.
_Tá pensando que vai ser fácil assim? Vamos deixar vocês de joelhos, vão ver, vão ver.
Alterado, mas tentando me manter calmo disse, entre o riso sarcástico:
_Só um milagre vai salvá-los da ruína.
É, fui prepotente, arrogante e nada humilde, vai dizer o leitor.
Sabendo que, se eu alegasse ter doze anos à época, não seria uma boa desculpa, admito que fosse bem canálha nesse episódio. Pessoa mais espiritualizada, diria que eu iria pagar nas próximas encarnações.
Porém, isso não acontece no meu caso, se Deus espera o momento certo pra ajustar as contas com todos... no meu caso, o castigo vem na hora, sempre foi assim.
Da sexta pro sábado, sem aviso nenhum, caiu um verdadeiro dilúvio, fomos dormir com uma chuva medonha e ela perdurou a noite toda, a manhã toda e cessou as 13:00 horas e o jogo estava marcado pras 14.
O campão do Educa era um sonho, grande, bem localizado e imponente, mas em termos de drenagem...
Quando chegamos ao local do combate, veio-nos uma vontade de chorar, o campão havia se transformado numa gigante piscina de lama, pensamos em conversar pra adiar a partida.
O Luís Paulo que, já era preto, trajava um uniforme muito preto. Olhou-nos de rabo de olho, o apito já à boca, balançou a cabeça numa negativa.
O time do 24 chegou, vestindo camisa, calção e meiões cinzas, o Valdir vinha sorrindo na frente da fila, olhei pro céu e o sol era firme, a torcida estava disposta a ver um espetáculo pastelão e gritava pra partida começar logo.
Naquele lamaçal nada adiantaria nosso toque de bola, se o Negão e o Mamede eram os mais rápidos laterais ou se o Tadeu era o melhor jogador de todo o Educa, se o trio de volante do 14 era o mais eficiente do campeonato, a gente mal conseguía nos manter em pé.
Na hora que os times se cumprimentavam, o Valdir ainda ria quando me apertava a mão:
_Eu acredito em milagres, e você?
Nesse momento eu fui ao inferno e voltei e, se tinha uma coisa que pouca gente sabia era que o Valdir era feito o Ayrton Senna, normalmente um ótimo goleiro, na lama ele era imbatível.
Estava em silencio quando nos juntamos no meio do campo, o Viana falou:
_Vamos jogar feio, se tiver espaço, paulada no gol.
E foi mesmo um jogo feio, sem passes, sem toque de bola, sem jogadas de efeito e a torcida se divertido com o espetáculo, a chuva voltou e todos se amontoavam na casinha da arquibancada.
Fizemos o combinado, de qualquer lugar batíamos pro gol, cada chute que dávamos o Valdir fazia uma defesa mais linda e ele ganhou o carinho da torcida.
No primeiro tempo ainda, o Luís Paulo marcou uma penalidade pra nós e ninguém contestou, fui pra bater, posto que, eu era o batedor oficial.
Ajeitei a bola na única parte de grama da área do gol que fica na frente da bica, a torcida gritava o nome do Valdir, ignorei e bati com convicção, esticou-se e buscou a bola, nunca havia perdido um pênalti na minha vida, quando o rebote voltou pro meu lado, me desequilibrei e cai na lama. É claro que virei à piada do jogo, parte da torcida gritava o nome do goleiro, a outra parte me xingava.
Poucos minutos depois, outra penalidade foi marcada, fui pra bola pensando em vingança, antes disso o Tadeu pegou a bola e disse que ele ia bater, minha liderança havia sido desafiada e ninguém do time me apoiou puro pesadelo eu vivia.
Naquele instante, fazer um gol era imprescindível, a vergonha batia em nossos ombros, gente que geralmente torcia por nós, agora gritava o nome do Valdir e ele sorria.
Se na minha vez a defesa foi plástica, o Tadeu bateu firme no canto oposto, à meia altura e o miserável do Lustosa buscou e encachou ela e sorrindo uma gargalhada alta, bateu no peito.
É do brasileiro, essa coisa de torcer pro mais fraco, ainda que eles nem chegassem ao meio do campo, a torcida gritava 24, em alto e bom som.
O pesadelo perdurou o jogo todo, sem poder jogar, chutávamos de qualquer lugar e o Valdir fechava o gol, empurrados pela torcida, todos os jogadores ficaram dentro da área, 11 goleiros e o desespero aumentavam e isso nos contagiou, paramos de agredir, tudo se caminhava pro zero a zero.
O Luís Paulo já consultava o relógio, faltavam poucos minutos pro fim do jogo, uma falta foi marcada na intermediária, conforme eu ajeitava a bola, o arbitro olhava o relógio, o Viana foi pra ponta da barreira, ajoelhei e fiquei falando em voz baixa, falando com a bola, o Luís Sérgio passou por mim e perguntou o que eu estava fazendo, respondi que estava fazendo uma promessa.
Última chance coloquei o pé esquerdo ao lado da bola e calculei um perfeito angulo de 45 graus, dei três passos pra trás e bati.
A bola passou a quatro dedos da cabeça do Viana, rodando na caminhada pra trave e ia no endereço certo, O Valdir saiu com o corpo todo no ar, a impulsão o fez deitar, pareceu um voo, foi lá no angulo pegou a bola com as duas mãos e, ainda no ar, a trouxe para o peito, quando caiu espalhou a lama, entre os olhares de todos e a euforia da torcida, ficou uns breves centésimos de segundos no meio da lama, deu um grito desafiador e esse grito foi pra mim.
Já o Luís Paulo tinha o apito na boca, só faltava soprar, pra aquele pesadelo chegar ao fim.
Ainda com a bola na mão e olhando na minha direção, tive a impressão de que ele ia jogar a bola em mim, deu uns passos pra trás, pra tomar distancia e dar o chutão.
Mais um passo pra trás e escorregou na lama, com a bola na mão, caiu pra dentro do gol.
O silencio que se fez, foi um misto de comédia e tristeza, ninguém acreditava naquela cena, antes de apitar o gol, o Luís Paulo soltou uma longa gargalhada.
Depois do jogo, o próprio goleiro fazia piadas de si, os dois times se cumprimentaram cobertos de lama.
Pra cumprir a minha promessa e me redimir, passei um mês ajudando o a tomar conta dos pivetinhos do 15.

Em memória de um amigo especial.


Não conheci o Valdir Nascimento no Educandário Dom Duarte, quando de lá sai, fiquei um tempo morando com o meu pai adotivo, o Ditinho da gráfica, no centro de Sampa.
E conheci-o, nesse tempo, ele era chefe da cozinha do Maksoud Plaza, disse-me que aprendera a profissão com o irmão Simão, quando era interno do pavilhão 16, homossexual assumido, tinha ideias próprias e uma dignidade na postura e, por conta disso, estava sempre envolto em discussões calorosas.
Quando eu cheguei no Educa, ele já estava saindo.
O Valdir costumava dizer que, toda pessoa, independente de religião, raça ou opção sexual tem que andar de cabeça erguida e fazer valer seus direitos. Nesse tempo, que o adulto em mim estava quase por se formar, esse adulto deu-me os últimos ingredientes e, é claro que ele virou um amigo de primeira grandeza.
Mais tarde, lhe apresentei a Ângela, de quem ele virou mais amigo ainda do que era meu.
Num tempo de dificuldade financeiras, convidamos-o para morar conosco, na Osvaldão e, ele experimentou, pela primeira vez na vida, o prazer de ter uma família, para os meus filhos, ele sempre será o tio Valdir.
Quando soube que era portador do vírus HIV, como era do seu feitio, não fez drama e encarou a situação de frente e, quando sabia que o fim se aproximava, internou-se.
Disse que queria poupar as crianças e, não queria que os amigos o vissem no fim, sem um sorriso.

O descanso merecido.


Quase todas as tardes, a arvore do meu quintal espicha a sombra pra calçada, minha rua é calma e quase nunca, passa um carro ou transeunte.
Levo pra lá, a minha cadeira de praia e fico a apreciar a calma que a vida me proporcionou, de quando em quando, uma pescada e desperto, o neto brinca com um cachorro e grita sempre, fico a contemplá-los, sob o céu azul de Camaçari.
O vizinho, que é a fofura em pessoa, me pergunta:
_ Ô Paulista, tá cansado de que???
Muito calmo, me deixo cair na minha confortável cadeira e devolvo a gentileza na mesma moeda, sem me esquecer que fui educado em colégio de freiras:
_Vá cuidar da sua vida, seu FdP.

O cachorro do Arlindo


Arlindo era um sujeito normal, desses que vão à missa as quintas de noite e aos domingos pela manhã, aparentava uns 25 anos e morava só.
Dele, a vizinhança só sabia que trabalhava com tecnologia, técnico de alguma coisa, supunham.
A casa simples que ele morava não ficava à vista do povo, um muro enorme a escondia, acima do muro haviam uns fios e uma câmera de vigilância pendia, sempre que alguém se aproximava do portão, se podia ouvir o latido forte de um cão feroz, junto com isso, um arrastar de corrente.
Sempre que o Arlindo chegava, passava rápido para dentro do quintal, como se tivesse medo que o cachorro saísse para a rua.
Apesar de nenhum vizinho, jamais ter posto os olhos no Jacaré, todos o respeitavam e temiam sua fúria.
Qualquer pessoa que passasse em frente da casa, ouvia o latido ameaçador, muitos evitavam, quando iam chegando neste trecho da rua, mudavam de calçada.
E se imaginava como poderia ser o Jacaré...talvez um capa preta, ou um fila, quem sabe um dobermann...eram várias as opções, no que todo mundo concordava era que, o bicho era enorme.
A curiosidade do pessoal era tanta que, a professora do primário, da escola do bairro, passou de lição de casa um desenho do Jacaré, como cada criança imaginava a aparência do famoso cachorro do Arlindo.
É claro que as crianças se soltaram, em todos os desenhos o Jacaré era gigante, uma menina desenhou o diabo e coloriu de vermelho.
Houve uma temporada em que quase todas as casas foram invadidas e tiveram vários aparelhos e dinheiro furtados, me diga qual a única casa que os larápios pouparam...isso, a casa do Arlindo.
No dia que o Arlindo disse que ia se mudar do bairro, uma verdadeira multidão se formou do outro lado da calçada, a maioria já preparada para correr, nunca se sabe.
O povo fazia aposta, alguns guris se apinhavam nas arvores da rua.
Alheio a tudo aquilo, com o portão aberto, Arlindo ajudou os carregadores com os moveis e as caixas, toda vez que ele entrava em casa, a expectativa aumentava, os vizinhos ficavam com a emoção à flor da pele, o estranho é que ninguém ouvia o forte latido do cachorro.
Quando Arlindo e os carregadores terminaram o serviço, ele tinha uma caixa media na mão, passou a chave no portão e a guardou no bolso da calça.
Houve um grito na multidão:
_vai deixar o pobre do cachorro sozinho???
E o povo todo se indignou, Arlindo foi vaiado em coral, um vizinho criou coragem e deu um passo à frente:
_. Não pode, isso é desumano, tens que levar o cachorro contigo.
_mas eu estou levando o Jacaré comigo. Respondeu-lhe o Arlindo.
Alguns riram, uns se indignaram e a vaia aumentou.
_. Então cadê ele???
Diante da interrogação geral, Arlindo abriu a caixa que carregava e a mostrou para o vizinho.
O vizinho pareceu que estava tendo taquicardia, deu um grito e pareceu rir, ou chorar, só se sabe é que ele perdeu a fala.
O Jacaré nada mais era que um gravador, que funcionava com sensor eletrônico de movimento.

O Pingo.


Muito se engana, quem pensa que a Osvaldão termina na casa do clã dos Borges de Minas, a família do Alemão e do Wallace, na verdade, ela só termina na rua do Balão.
Não obstante, a comunidade, compreendia a área desde a esquina do Zé Luís até a casa da Japonesa, dali em diante, era outro universo.
Esse mundo, a que me refiro sempre, era povoado de pessoas que, diferentes entre si, eram iguais. Onde a pernambucana família do seu Manoel e o Zé Mineiro eram vizinhos de porta e velhos conhecidos, a Eva dava gritos com o filho Carlinhos e, se podia ouvir em toda extensão da rua e, o Rubinho, que puxara carroça a infância inteira, agora era uma das atrações da rua.
O Corcel 2 do Nelcindo Diniz era o ponto de medida do meio da rua e, dessa medida se podia ver o fim dela, atrás dos carros do Ailton Pedrosa.
Era uma rua marcada de personagens ricos, o que dizer do velho Dila, que tinha um passado nebuloso no crime e, recuperado, era uma das pessoas mais respeitadas da rua, não pelo passado, mas, por ser palhaço mesmo.
Em certa época, mudaram-se para o sobrado do irmão do Velhinho, um casal sensacional, eram a dona Deodata e o seu Irineu...estranho, nunca me vem à memória o seu Irineu vestindo uma camisa, sempre me lembro dele sem a camisa, tenho a impressão de que, no inverno, ele não saía de casa.
Deixa lá, era um casal muito amável e a filha Nice e, não podia ser diferente, era a própria definição da simpatia, dir-se-ia que, essa família caiu como uma luva nesse universo particular e, ainda havia aquela netinha deles, uma que ainda pequena, já usava óculos.
Marcante, era o sorriso do casal, marcante também era a fúria do Pingo, além da família, havia na casa um casal de cães, enormes eram os cães, o macho feroz atendia pelo nome de Pingo.
O Pingo povoava os pesadelos dos meninos e adultos da rua, de quando em quando, ele jogava as enormes patas na grade e, ela parecia que, a qualquer tempo, iria ser derrubada. O seu Irineu descia e acalmava o bruto.
Entre as habilidades que o Rubinho dominava, estava a capacidade de imitar o latido dos cachorros, sempre que passava na frente da casa, latia ...em resposta, o Pingo ficava mais furioso e balançava as paredes.
Não era raro, aos domingos, todos saíam para a rua e a Osvaldão parecia um tapete de retalho, mulheres conversando, velhos em suas prosas e crianças a brincar, muitas crianças mesmo.
Não sei se, finalmente o Pingo conseguiu arrebentar a grade ou a dona Deodata não trancou o portão, só sei que o Pingo estava na rua, em centésimos de segundos a rua ficou vazia, todos dentro de suas casas ou a espreitar pelas frestas das cercas, da minha, eu olhei a cena, o Pingo cheirava o ambiente, parecia procurar as crianças que a poucos faziam o alarido.
Contrariado, a fera olhava em volta e não achava ninguém, olhou na direção do muro do cemitério, quem sabe haveriam algumas crianças por lá e foi naquela direção.
O Rubinho que estava no bar da dona Maria Baixinha, queria evitar que o Pingo fosse para rua e, talvez pudesse ser atropelado, fez a única coisa que lhe pareceu lógico naquele momento...latiu.
O Pingo que já estava quase chegando na João de Lorenzo, parou e foi na direção do autor dos latidos, eu pensei:
_. Esse é o fim da carreia de palhaço do Rubinho.
Qual nada, o Rubinho não teve medo, ficou ali mesmo. O Pingo sequer mostrou hostilidade, ficou ao lado dele e aceitou o carinho, o Rubinho se ajoelhou e o abraçou, encorajados, os meninos saíram de seus esconderijos e se somaram ao cachorro que gostava de crianças.
Quando o seu Irineu se deu conta do ocorrido, teve que, constrangido, tirá-lo das garras dos meninos.