quarta-feira, 5 de abril de 2017

De histórias e lendas.


Saber ensinar é uma arte e isso não depende de se ter um diploma ou um registro em carteira.
Sempre disse que aprendemos mais coisas da vida com funcionários simples do Educandário Dom Duarte que com as pessoas que ganhavam para educar de fato, vou mais além, muito do que eu aprendi sobre a vida, veio de pessoas sem qualificações e com os meus amigos menores.
Se as mães dos internos soubessem, o que de fato, alguns laristas faziam, iam preferir jamais expor os filhos aos cuidados dessas pessoas.
Aos fins de semana, em dias de manutenção da piscina e de ausência de jogo do Grêmio, costumavam os internos reunirem-se no espaço que ficava entre a piscina e o lago, as arvores davam a sombra e os meninos pulavam em seus galhos, uns só ficavam na grama baixa, ouvindo a música que vinha dos alto-falantes do teatro.
Por ser um território neutro, é fácil de imaginar que o grupo fosse constituído por internos de quase todos os pavilhões, dois ou três de cada, ficavam ali, brincando de esconde ou de pega e, por vezes, de bobinho, sempre se achava uma bola.
Quando o açúcar baixava, sentavam ou deitavam-se na grama e alguém puxava um assunto.
E então, vinham histórias de lances miraculosos no futebol, histórias de assombrações, de internos fujões ou de violência extrema praticada por algum larista carrasco.
Via de regra, cada um contava coisas acontecidas em seus pavilhões, a história começava na boca de um narrador e o amigo ia concordando e terminando a história, ao término dessa, vinha outro e contava a sua, o amigo do mesmo pavilhão concordava e corrigia, os demais ouviam atentamente até o final, acabava virando um desafio, cada qual contava façanhas e bravatas dos amigos que moravam com eles e, ao fazê-lo, acabava pondo em evidência o seu grupo.
Cada fato heroico de alguém de um pavilhão, era atribuído aos demais e, a glória cabia a todos os moradores desse pavilhão.
Algumas dessas narrativas não tinham uma época precisa, falavam de um tempo remoto, coisas de pessoas e fatos de 30 ou 40 anos passados, esses fatos, na boca dos meninos, soavam como lenda.
Sempre gostei de histórias, mesmo que elas fossem, só lendas.
Numa tarde, o Claudinho do 16 contou uma que chocou a todos e essa era verídica, já que, parte dos personagens dela ainda viviam no Educa...
O Bambuzinho do 16, já era um menino crescido, bem provável que tivesse uns 12 anos de idade e sofria de incontinência urinária, quase sempre amanhecia com o colchão molhado.
O chefe do pavilhão, seu Alcides resolveu corrigir o problema de uma vez por todas.
Às 4:30 da madrugada, depois de constatar que o menino já havia urinado na cama, acordou todos os outros e foram para frente do pavilhão, o Bambuzinho teve que, num frio de rachar, tomar banho gelado e ficar nu encostado na parede.
O chefe ordenou que os outros meninos formassem uma fila indiana, todos tinham que passar e dar um tapa no rosto do infrator, caso alguém se recusasse, tomaria o lugar dele.
E, sob o olhar atento do carrasco, começou o deprimente espetáculo, alguns dos meninos da fila cuspiam na mão pra acertar com gosto, gelado e humilhado o garoto não soltava um ai, a cada tapa se ouvia o som da pancada.
Na metade da fila estava o Francisco, enquanto seguia a fila ele não se preparava pra bater, os olhos fixos no menino que apanhava e não emitia qualquer som.
Quando chegou a vez do Francisco a fila parou e um silencio se fez, as mãos ainda abaixadas a olhar o amigo que já não sentia a dor.
O carrasco gritou que ele não passava de um covarde, ele balança a cabeça negativamente e, para o espanto de todos, empurra o Bambuzinho e assume o lugar dele e, isso, nenhum covarde faria.
Contrariado na sua autoridade, o Alcides suspende a sessão de tortura e chama-o pra dentro.
Grita, ameaça e o chama de covarde e o Francisco não fala nada, só discorda com o seu balançar de cabeça, vendo que o marido está perdendo a razão, a esposa dona Maria entra na conversa e, sem qualquer aviso acerta um tapa no rosto e, ainda que lhe deixasse tonto pela surpresa, o garoto não chora.
_Ficou sem café da manhã por uma semana, esse foi o castigo.
Arrematou o Claudinho e, ao fim da narrativa, seus olhos brilhavam de orgulho, enquanto os ouvintes aplaudiam.

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