quarta-feira, 7 de junho de 2017

A quebra da hierarquia.


De longe, Jô Soares sempre foi e sempre será meu melhor humorista, seu programa nas noites dos anos 1980 unia humor rasgado à mais fina inteligência, na sala do pavilhão 14 era o que se assistia.
Ás 5:30 horas, enquanto os pequenos e médios, munidos de suas vassourinhas, começavam a varrer a estrada que seguia para o cenáculo, os grandes desciam a estrada do milharal, rumo aos seus empregos, os que varriam usavam calções feitos de sacos de ração, os que seguiam para o trabalho vestiam a última moda.
Pequenos eram os internos de 7 a 10 anos, médios estavam na faixa etária de 11 a 13 anos, os que tinham entre 14 e 18, eram considerados grandes.
Hierarquia era uma coisa sagrada, levada muito à sério no pavilhão 14, já contei que, os pequenos só podiam entrar em campo, quando os grandes se cansavam, de noite, quando eles voltavam de seus empregos, escolhiam a programação da televisão e, só a eles, cabia o direito de sentarem nas poucas cadeiras que cercavam a mesa, ao resto, sobrava o tapete ou o chão frio, ninguém contestava isso, era a regra.
O mais forte de cada pavilhão era chamado de Tuba e, era admirado por todos, ninguém gostava de verdade do Roda, por conta disso, o mais admirado do lar 14 era o vice tuba, o Legú.
Diferente do Roda, que era o mal humor em pessoa, o Legú era calmo, praticante de artes marciais e faixa preta de judô, aos fins de semana era fácil vê-lo destruindo as bananeiras à golpes de kung Fú, vestido em seus quimonos coloridos.
Eu tinha idade de pequeno e altura de médio e, como já disse também, capacidade de armazenar informações e associar as coisas e, uma abominação mortal por ideias pré-concebidas.
Quando inaugurou o programa “Viva o gordo”, foi um alarde grande, a ditadura já estava quase acabada e esse programa tinha um conteúdo político bem apurado, regado de muita inteligência, a sala do 14 ficou lotada, grandes e médios nas cadeiras e a cadeira ao lado do Legú estava vazia, ele a usava para apoiar os pés.
Em alguns quadros do programa, o conteúdo era leve e as risadas eram frouxas, os pequenos com as bundas no chão gelado.
Havia um personagem que era um general que, depois de vinte anos em coma, acorda e vê o mundo mudado, acaba que ele havia perdido o tempo todo da ditadura militar.
À certa altura, o personagem entra no assunto da Argentina e eu ri muito, no meio da risada percebi que ria sozinho, o resto da sala me olhava, querendo entender a piada.
_Oi gente, Leopoldo Gaultier é o presidente da Argentina.
E tive que fazer um breve relatório do contexto da piada, do seu canto, o Legú me olhou de canto de olho e respirou fundo.
Continua o programa e acontece de novo, só eu ri...
_Gente, Shigeaki Ueki é ministro de Minas e Energia, a piada foi feita por ser ele de origem oriental.
Desta vez, o Legú olhou-me, fechou a cara e cruzou os braços, recolhendo os pés da cadeira vizinha, imaginei que eu corria perigo de vida e me esforcei para não rir mais.
Não deu, momentos depois, tive que rir e, de novo, ri sozinho.
O Legú se levantou irado, deu uma bica na cadeira ao seu lado e gritou:
_Moleque, senta aqui do meu lado.

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