quarta-feira, 29 de março de 2017

O gêmeo do mal



Em dias de verão, pelas tardinhas, o sol pintava com um amarelo vivo, o céu, por cima da mata da olaria
Assim, os nossos dias eram coloridos e, não importava a condição de órfão, eu nunca estive sozinho na vida, tinha os amigos e alguns eram como irmãos, tinha meus autores e minhas canções, por vezes se misturavam o Guimarães Rosa e o Bituca e o meu viver a infância ia mesmo tomando jeito de literatura, literatura cantada.
Ainda guardava, da infância, o Belchior e o Casimiro de Abreu, esses nunca saíram da parede da memória, ao passo que eu crescia, outros gênios se juntaram à galeria, nomes novos para compor a sinfonia da minha vida, feito Beto Guedes e Érico Veríssimo.
No entanto, minha cultura não me fazia retraído ou tímido...jogava futebol, rodava pião, roubava frutas no pomar, pulava sela e enrustia bananas...feito todo índio do Educa.
Quando chegou a adolescência, um mundo novo sê-nos mostrou e, nos arrastou em seu redemoinho.
Esse mundo novo, se mostrava muito mais drástico e complexo, exigia respostas rápidas e atitudes firmes, num sentido mais amplo, a mesma cena que trazia o doce colo de uma mulher, podia ser precedida pela trajetória de um tiro em sua direção.
E nessa nova cena, o prazer do sexo vinha acompanhado do perigo eminente e, eles são parceiros antigos.
Primeiro, para acabar de vez com essa coisa de achar que um raio nunca cai duas vezes na mesma arvore, vou contar da Casa da Infância, por lá eu já havia me deparado com um sósia, o seu nome era Delevado... pessoas com o mesmo corpo, rosto. Tudo idêntico a você, são até comuns de acontecer, no entanto, a probabilidade dessas pessoas se encontrarem é muito remota, de estarem no mesmo país, na mesma cidade, no mesmo bairro...na mesma casa então...
Ainda que o Delevado fosse uns dois anos mais velho, nos divertíamos com isso, por vezes, ele ficava de castigo por mim e vice-versa, todos achavam que se tratava de gêmeos, o raio havia atingido a minha arvore uma primeira vez.
Quando passamos a curtir os bailes, eu já havia completado os quatorze verões e tinha uma dívida com o sexo oposto, por esse tempo eu devorava tudo o que se seguia em minha reta, não precisava ser bonita, se tivesse um corpo mais ou menos...o jacaré virava bolsa, paguei com juros e correções monetárias.
A Beth já havia comemorado seus vinte e quatro anos, quando me viu num baile na Santa Bárbara, entre os "Neguinhos do Educa', disse que foi tomada de um inexplicável amor à primeira vista, me soou meio brega isso, mas relevei, uma pessoa com mais dez anos da minha idade, era bem provável que soubesse muito da matéria que me interessava nessa época, o sexo.
Ficamos e saímos pelas madrugadas e com o tempo fui descobrindo fatos de sua vida, que já era mãe e já havia tido uma união estável, a separação se deu por conta de seu cônjuge ter se tornado traficante, aliás, no começo dos anos 80, essas pessoas eram chamadas de contrabandistas.
Ah, o dito cujo fazia parte da gangue do Pivete, aquela turma que apavorava toda a vizinhança por esse tempo.
Num baile na favela do Uirapuru, me foi apresentado o ex da moça, assim que lhe apertei a mão, tomei um susto, ele também se assustou e juntos, demos um passo para trás...O raio havia caído de novo.
Foi como se eu me visse no espelho, os meus amigos e os amigos dele esfregaram os olhos e a Beth ria.
Um silêncio se fez, ficamos a nos olhar, pasmos e aturdidos...absolutamente tudo igual, até a altura.
_Prazer, Adir.
_Prazer, Niltão.
_Que doideira.
_Cara, você é bonito.
Se eu não dissesse uma besteira dessas, acabaria perdendo a minha identidade, as mais de 50 pessoas que estavam a ver a cena, contorceram-se de rir.
Então, como nem tudo na vida são flores, passei a ficar com medo de passear pelo João XXIII, numa dessas vai que...
Porém o medo não era tanto que pudesse me esquecer da satisfação dos carinhos da Beth e, é claro, continuei saindo com ela. Conheci o pai dela, um trabalhador que saía de madrugada para trabalhar no Metrô, foi difícil colocar na cabeça dele que eu não era o Adir, aquele sujeito, que na cabeça dele, havia levado a sua filha para o mau caminho.
Era de praxe, terminada a noitada, levávamos as moças para casa delas, somente quando a última era entregue, seguíamos para o pavilhão, todo o bando junto.
De frente do Attiê, existia um bar, ao lado desse, uma rua principiava uma queda e se descia para uma várzea, essa rua seguia até um escadão murado, que dava na rua Santa Bárbara, a Beth morava ali e era a última mina a ser entregue, o bando todo ficaria ao pé do escadão e eu levaria a moça em casa, uns beijinhos, umas afofadas e ia embora, tranquilo e calmo.
Depois dos beijos e carinhos, desci o escadão, os amigos estavam em frente ao posto de madeira, ouvi gritos nas minhas costas e me virei.
Era o pai da moça, eram umas 6 horas e o sol ainda não havia se apresentado, por conta disso, demorei a perceber o que ele trazia na mão direita, os amigos sumiram numa corrida e adivinhando o que ele carregava, apressei o passo.
Ele estava caindo de bêbado e gritava palavras desconexas, só se entendia que ele falava o nome do Adir.
Eu já corria, quando enfim entendi o que ele falava:
_Adir, seu filho da puta...vou beber o teu sangue.
Naquele corredor fechado o barulho do tiro foi ensurdecedor, quando dobrei a esquina, o tiro estraçalhou no poste de madeira, menos de um dedo do meu nariz, ganhei a rua e encontrei os amigos no Atite, mais dois tiros foram deflagrados e ele ainda gritava.
Na volta para o Educa, jurei que nunca mais ia para nenhum baile, aquilo era muito perigoso...no sábado seguinte, o Paulo fazia o melhor de todos os bailes da região, na hora da lenta beijei a boca da menina que eu nem conhecia e agradeci a Deus pela linda juventude.

Em memória do amigo Betão.


Era o ano de 80, inverno rigoroso, tanto que, me demorei para decidir se ia ficar no pavilhão ou ia sair com os amigos, pegar um som, posto que, era sábado.Quando decidi, fui atrasado, o ponto de encontro era sempre o mesmo, sempre íamos para a rua Osvaldo Libarino, ali, na ponta da favela, juntávamos a turma e andávamos à cata dos bailes, lá moravam o Biá, o Cesar e o Galego. Quando cheguei, pude ver que, ao lado da pick-up Ford do Macalé, que já não andava há muito tempo, havia uma fogueira e 3 meninos se aqueciam nela, eram os dois Djalmas e o Betão.Os dois Djalmas eram internos do Educandário Dom Duarte feito eu, o Betão morava com sua família, gostava de uma boa piada e quando começava a rir, dava trabalho pra parar.Era daqueles sujeitos da paz, de boas amizades e muitas piadas, pra falar a verdade, já começava a graça na família... sendo filho de Santista e tendo 2 irmãos Corintianos, a peça torcia pro Palmeiras, ou seja: piada, logo de testa.Quando me juntei a eles, era o que ele fazia mesmo, os outros 2 riam compulsivamente, perguntei onde estava a turma, ele disse que alguns tinham ido pra Flamengo, mas lá estava devagar, resolveram conferir o baile da Santa Barbara, perto do final do João XXIII, era assim que funcionava... o pessoal saia no rolê pelo bairro, cada grupo prum lado, depois todos se juntavam no melhor som, a gente podia ficar tranquilo, que dali à poucos, alguém viria dizer qual o melhor rumo.Enquanto ouvia as piadas do Betão, aquecia as mãos no calor da fogueira e dava uns goles no copo de vinho seco, que passava de mão em mão (à isso se dava o nome de "fazer a carioca").
Enquanto ele falava, ajeitava o cabelo, para arredondar o Black, os olhos verdes brilhavam no reflexo das chamas, chamá-lo de Betão já era uma piada, ele era menor que o irmão mais novo... o Rogério, a mãe tinha lhe dado o nome do rei Roberto Carlos e, é claro que isso era, sempre motivo de risos.
Em toda a turma, ele era o único que não tinha diferença com ninguém, quando havia uma discussão entre os amigos, lá estava o Betão pra separar os desafetos.
Ficamos nessa madorna um bom tempo, repentinamente, ouvimos uma correria, alguns meninos desciam a João de Lorenzo em desespero, foram ao nosso encontro, o Reginaldo ainda arfando perguntou da turma, disse que no meio do baile na Flamengo, o tal do Caveira havia prendido os nossos amigos, queria uma fita que ele não soube explicar.
Caveira era um sujeito de maus bofes, que se denominava dono do Jardim São Jorge, o Pelezinho (12) e o Coquinho (24) estavam sob o seu controle, disse o Reginaldo (que era primo do Betão), se a turma não corresse, eles iam sofrer.
Os Djalmas eram pivetes, eram corajosos, mas, pivetes... eu e o Betão nos entreolhamos e foi o Betão quem falou:
_ É... Niltão, não vai dar pra escapar dessa não.
Eu não falei nada, meus amigos estavam em perigo e, ainda que, fossemos o time reserva e a probabilidade de a gente tomar uma surra fosse grande... amigo é amigo.
Enquanto percorríamos o caminho até lá senti a adrenalina explodir, pensava na briga, eu tinha 14 anos e boa estatura, os outros quatro eram baixinhos, tudo bem, eu teria que brigar por mim e pelos outros, e pensar que uma dessas eu estaria dormindo.
Deu pra saber onde era o lugar certo pela música, tocava Bar Kays, ao nos ver, o DJ puxou a agulha do toca discos e ficou de costas, na defesa do aparelho de som.
Ganhei a sala, os meus amigos atrás de mim, o Caveira saiu da cozinha, ela media uns 4 dedos a mais que a minha altura, usava óculos escuros, caminhou ao meu encontro, ergui os braços e as mão, em gesto de Angola, ele fez o mesmo, ficamos numa distância de menos de um palmo, um do outro.
Quando eu ia começar o diálogo, o Caveira deu um pulo pra traz, os outros membros da quadrilha fizeram o mesmo, olhei pra traz e pude entender.
Já do meu lado, o Betão gritava, com a mão direita enfiada nas calças:
_Cadê os meus amigos???
Nunca havia visto o meu amigo daquele jeito, parecia um psicopata, dois dos amigos do Caveira pularam a janela e sumiram na noite, enquanto ele gritava, pigarreava e piscava, até eu fiquei com medo.
O Pelezinho e o Coquinho saíram de um dos quartos e se postaram na nossa frente, o Betão fez sinal com a cabeça, pra gente sair, ficou ali, olhos fixos nos caras, quando percebeu que já estávamos todos do lado de fora, saiu, ainda de frente pra eles.
Ganhamos a rua em silencio, ninguém saiu da casa, caminhamos 2 ou 3 quarteirões e o Betão rompeu o silêncio:
_Niltão, tá na hora de a gente correr.
_Correr pra que? Você não está com o berro na mão???
_. Quando foi que eu disse isso???
Aí bateu o pânico, iniciamos a corrida, deu para escutar alguns tiros, mas já estávamos no nosso território.
Enquanto corríamos, escutávamos o Betão gargalhar.

terça-feira, 28 de março de 2017

O anjo da minha rua.


A juventude tem momentos que vão te marcar para a vida toda, alguns rostos serão esquecidos e outros serão eternizados, da dona Havanir eu guardo um rosto bonito e sereno, os olhos verdes que cativavam, já surgiam as primeiras rugas e os fios brancos completavam o quadro de beleza singular.
Essa senhora tinha por hábito, cuidar de quem não tinha recursos, enfermeira de profissão, cuidava dos doentes em suas casas e, vez em quando, fazia um parto, como bem cabe à um anjo.
Já tendo vários filhos seus, também assistia aos meninos que não tinham mãe, mesmo correndo, sempre se tinha um tempo para ouvir os conselhos da dona Havanir e, eram poucos, os adultos que mereciam essa consideração de nossa parte, ela olhava nos olhos, via nossas almas e, sempre vinha um conselho.
Claro que crianças crescem e, trilham caminhos perigosos, a estrada do mal exige que o preço da sobrevivência seja a fúria, a inocência dá lugar ao extinto de sobrevivência, via de regra, o mais forte se sobressai e os anjos são esquecidos, a menos que...
Estranhamente, eu nunca vi a dona Havanir em outro cenário que não fosse a rua Osvaldão e, ainda que ela tivesse a sua família e morasse ali, eu nunca entrei em seu quintal, sempre a via e conversava na rua mesmo.
Estávamos em oito, lá para os lados do Taboão e, nos envolvemos numa briga séria, não vou citar os nomes dos outros sete e, no fim da narrativa, creio que você vai entender o motivo.
Eu tinha dezessete e a fúria estalava, nos vimos em menor número e decidimos ir à casa de um dos integrantes da turma, pegaríamos uma arma e mostraríamos nosso valor a balas, em passos acelerados, partimos pra Osvaldão.
Do asfalto do BNH, atrás das arvores principia uma descida, um grosso tronco deitado servia de ponte, por cima do córrego Bota frias, noite sem lua, aquela parte não era iluminada e tivemos que atravessar a ponte, um de cada vez e ganhamos a rua., com o portão do cemitério à nossa frente, na metade da rua chegamos à tal casa, de posse do canhão iniciamos a volta, todos juntos.
No fim da rua, uns barracos acabavam de ser construídos e havia umas famílias novas ali, quando chegamos nessa parte vimos um vulto branco saindo do portão de madeira.
Estacamos diante do susto e permanecemos a olhar, depois da confusão percebemos que era a dona Havanir em seu uniforme de enfermeira, quem estava com a arma escondeu-a, eu dei um passo atrás e me escondi, em vão, ela veio em nossa direção e, mesmo no breu que estava, reconheceu um por um.
E, então???não éramos mais crianças e aquela senhora nos fazia ter vergonha de fazer coisas erradas, eram duas da madrugada, alguns respingos de sangue no avental dela, denunciavam que ela acabara de trazer mais uma alma ao mundo, devia estar muito cansada e mesmo assim, parou para aconselhar-nos.
Como eu disse, ouvi os conselhos desse anjo mais de mil vezes, esse especificamente, me aturdiu. Ela disse numa voz muito serena e não falou do jeito que era seu costume, estranhamente ela disse:
_Meninos, essa vida não dá camisa a ninguém.
Esse tipo de vocabulário não fazia sentido, dito por uma pessoa da geração dela, muito menos cabia à uma pessoa notadamente religiosa, esse discurso demorou uns vinte minutos, quando ela terminou eu já não tinha mais a convicção de abrir caminhos a bala e me impor pela violência, se despediu e se dirigiu à sua casa, ficamos acompanhando os passos dela e só retomamos o nosso caminho quando ela entrou em casa, quando chegamos à ponte, as palavras dela ainda reverberavam na minha mente, parei e disse aos amigos:
_. Ô gente, não leva a mal não...meu caminho acabou aqui.
No breu daquela escuridão, ninguém disse nada, o Djalma do 15 veio para o meu lado, os outros atravessaram a ponte e sumiram para os lados do BNH, fizemos o caminho de volta ao Educa e, só de manhã o Djalma falou a respeito:
_. Não dá camisa hein?!?!
Era inverno de 1983, estou completando 52, o Djalma é vivo, mas, não curte redes sociais.
Os outros seis, contando seis meses dessa noite, tiveram mortes violentas.
Eu quero acreditar que a dona Havanir, continua a encantar a vida com seus olhos verdes de anjo.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Questão de sorte

Em 1991, eu trabalhava na Usina de Traição, um posto da Eletropaulo e a Avenida Ayrton Senna se chamava Avenida Jânio Quadros.
Nelson Mandela havia acabado de ser libertado e o governo do estado de São Paulo o recebeu com honras de chefe de estado, por questões de segurança, o itinerário da comitiva não foi divulgado, pela televisão o vimos chegar e nos contentamos com tal honra.
Não existia um ônibus que fizesse o caminho de Pinheiros até a Ponte João Dias, onde se localiza a Usina, portanto eu tinha que descer na Paineiras e fazer esse caminho de seis Quilômetros, beirando o muro do Jóquei Clube, na sola.
Quando ouvi a sirene dos batedores, já estava no meio fio que separa as duas pistas da avenida, o semáforo fechou e a minha ficha caiu, dentro da Limusine negra estavam o futuro presidente da África do Sul e a esposa.
Do lado esquerdo do carro, o meu lado, a esposa Winnie apoiava o cotovelo na janela e segurava a porta com a mão esquerda, em seu dedo médio reluzia um anel de ouro que ostentava uma enorme pedra azul.
Motos da PM à frente e atrás do carro e eu estava a menos de dois metros, alguns passos firmes e fiquei ao lado da Limusine e como alguém que não perde a chance que cai do céu, me curvei, peguei a mão da Winnie e beijei, o simpático Mandela sorriu e eu o cumprimentei inclinando o corpo na Angola.
Diante da cena, não restou aos seguranças nada, além do sorriso cúmplice e o coçar de cabeça... e o sinal ficou verde e a vida continuou.
Existem coisas e fatos, que a sorte traz que soam como inacreditáveis, a sorte não manda dinheiro, ela te preserva e te mostra que a vida é só uma questão de estar no mundo em paz.
Quando o Adilson (Ovinho) foi encontrado por sua família, contou-lhes que, eu era o amigo que sempre o consolava nos piores momentos de solidão, ele não se conformava por ser órfão, nos domingos de visita sempre saíamos em aventuras.
Fui visitá-lo em sua nova casa e a irmã me disse:
_Vou compensá-lo por aliviar a dor do meu irmão.
Chamava-se Claudia e era empresária do ramo artístico, tinha uns 25 anos e uma beleza invejável, eu disse que fiz o que um amigo faz e dei de ombros.
Quando a banda Earth, Wind and Fire foi trazida ao Brasil pela Chic Show, contou com o apoio de uma jovem empresária paulista.
Eu jogava bola no campo do 14, quando me gritaram do barranco:
_Tem uma mulher linda, num Porsche te chamando, Niltão.
Corri e subi o barranco e vi a Claudia na área do pavilhão, tinha uma sacola de Shopping nas mãos.
_Vai se lavar e veste essas roupas, que hoje te pago a dívida do meu irmão.
E foi assim, que o cara mais pobre do mundo, assistiu ao show da maior banda de todos os tempos, em cima do palco do Anhembi.