terça-feira, 4 de abril de 2017

Honra teu pai.




Eu não conheci a escolha, nasci corintiano.
Meu pai, me deu o nome dele, mas me chamava de Baltazar (o cabecinha de ouro) e, como ele era ligado à escola de samba, na minha primeira infância, eu só conhecia corintianos e sambistas.
   Como eram todos fanáticos, eu tive dificuldades, pra entender que o clube estava em jejum de títulos, como explicar essa coisa??de ter alegria sem títulos.
   Eu já morava num orfanato, longe do meu pai, não sabia de nada de mim, só sabia que torcia pro timão, torcer, foi a primeira forma de eu me identificar no mundo, antes de me alfabetizar, de ter uma religião, eu só era corintiano.
Em 1976, o meu time disputou o memorável jogo com o Fluminense, foi pros pênaltis e Tobias, que antes de embarcar pro Rio, foi rezar no pé da santinha da capela do nosso colégio, defendeu. O Zé Maria, que foi junto, ficou jogando bola com os meninos, na quadra, na hora do almoço o Brandão perguntou quem de nós, torcia para o Corinthians, todos responderam em coral.
A partida foi chamada de INVASÃO do MARACANÃ e ao fim do jogo, que foi transmitido pela televisão, assistimos, todos no salão, por incrível que pareça, todas as freiras eram Corinthians, lembro que uma delas, gritou um palavrão na hora do gol de empate, convertido pelo Russo. No fim da partida, saímos para a avenida Nazaré, bem em frente do colégio, para comemorar a vitória, a impressão que dava era que todo mundo torcia para o TIMÃO. Depois, fui descobrir que não era todo mundo...só 7 entre 10, quase todo mundo.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

A araucária


Um bom observador perceberia que o Educandário Dom Duarte era uma gigantesca obra de engenharia, num tempo remoto, fora erguida uma verdadeira cidade.
A estrada que se seguia do pavilhão 11 era de terra vermelha, milhões de carradas de terra foram despejadas e, se seguia até o cenáculo, para conter essa terra toda, outra quantidade de árvores foram plantadas no lado esquerdo, uma grande depressão precipitava-se no lado esquerdo e levava à parte mais baixa.
Na parte mais baixa ficavam a olaria e os lagos, essa parte do terreno era original da região, dali o seu Paulo tratorista retirava um solo de argila, matéria prima dos tijolos fabricados.
Atrás do pavilhão 11 haviam um canavial e um milharal, essas culturas não tem raízes fortes o suficiente para conter a terra, em épocas de muita chuva, era comum os desbarrancamentos, a parte desse barranco seguia num ângulo aproximado de uns 45 graus, até chegar ao pavilhão 14 haviam duas curvas leves e o barranco era coberto de abacateiros, um largo espaço para um mandiocal e uma longa área de pinheiros que, em dias de chuva de vento, cantavam uma triste melodia.
Abaixo da curva que a estrada desenhava, ficava o bosque do 14, em formato de semicírculo e com uma paineira de entrada, tinha sombra o dia inteiro, a única parte em que os meninos não reclamavam de capinar.
Não creio que ela tenha sido plantada ali de propósito, creio que alguém deve ter feito uma experiência e, por sorte, deu certo.
Digo isso, porque ela se encontrava na metade do barranco, dificilmente alguém plantaria uma árvore que cresce 40 metros, na metade de um barranco.
Os galhos crescem em forma de chapéu, a sombra generosa garantia a ausência de capim, embaixo dela, se podia ver parte das costas do pavilhão e grande parte da estrada, bem como o campo à direita e, as ondas que o capim gordura fazia ao vento.
Para saborear uma boa leitura, a coisa que eu mais amava fazer, tinha que me esconder dos amigos, esse era o meu melhor lugar no mundo, embaixo dela, aprendi todo o sentido da vida, a paz que a araucária me dava, me ligava ao mundo e, me tirava dele para viver as coisas do Lins, do Montello, do Jorge e do Machado.
Num dos galhos havia uma coisa pendurada e, eu supunha que fosse um cacho gigante de marimbondos, não me assustava, pois, ele estava a uns vinte metros de altura.
Eu lia “Memórias póstumas de Brás Cubas” e ia forte na leitura, não ria, sabia que aquela grota poderia reverberar o som e, meus amigos me descobririam.
Terminei a leitura, fechei o livro com calma, coloquei-o na barriga, encostei a cabeça no monte de folhas de pinheiros e senti o cheiro agradável que as folhas jogavam no ar, acomodei-me e dormi.
Acordei súbito ao ouvir um barulho semelhante ao de uma bomba que me foi arremessada, frações de segundos e o zumbido terminou numa grande explosão.
Aquilo não era cacho de marimbondos e sim, um enorme cacho de pinhões, caíram ao lado da minha cabeça e se espalharam no chão, fui tomado de uma felicidade sem igual, acabara de descobrir que a araucária dava frutos, enquanto enchia os bolsos pensava em chamar o sexteto e anunciar a descoberta e... não precisei... eles já haviam ouvido o barulho e já estavam recolhendo os pinhões.
Pela tarde, haveria fogueira e banquete.

sábado, 1 de abril de 2017

A Rúbia.




Antes do meu tempo, elas eram chamadas de "Voluntárias”, soube disso faz pouco tempo, o Udiney me contou, o fato é que meus contemporâneos as chamavam simplesmente de moças.
É claro que era meio estranho chamar a Margarida de moça, porém, era uma regra e, regras são nada mais que regras, portanto, eram moças.
E, justiça seja feita, eram elas que, de fato, cuidavam das crianças, eu tenho lembranças da Olga escovando os meus dentes e da Cinira me banhando, quando eu nem conseguia fazer isso.
De todas elas, a minha predileção pendia pro lado da Rúbia, que era no meu ver a mais alegre de todas, efusiva, talvez seja o adjetivo que melhor a descrevesse, se todas as moças eram personagens de foto novelas, a Rúbia era comunista, tinha opinião e contestava.
Usava, na maioria das vezes uns jeans desbotados ou aquelas roupas soltas dos Hippies, sempre com sandálias franciscanas.
Cortava os cabelos bem curtinhos, bem à moda da Elis Regina e, feito a Pimentinha, tinha opiniões seguras, coisa rara de se ver nos adultos dos anos 70.
O outro fato, que me fazia ser apaixonado pela Rúbia é que, muitas vezes, quando ela folgava, me levava pra casa dela e, nessas saídas, tive o prazer de participar de algumas reuniões clandestinas do Partidão.
Sempre se mantinha na crista da onda, ouvia Belchior, Caetano e os Mutantes, me fazia ouvir as músicas e pedia que eu desse significado pra todas as letras, acabou que fiquei craque nisso.
Uma bela tarde, no horário de repouso, me arrastou para o hall das moças, não era costume dos internos, frequentar essas dependências.
No corredor, assim que deram conta da minha presença, as outras moças, em roupas de baixo, correram pros seus quartos, pra não ficar mal, fechei os olhos com as mãos e jurei que não ter visto nada, muito embora, até hoje eu me pergunte porque, diabos, a Cinira usava calcinhas de criança, daquelas enfeitadas com estampas do Mickey.
Entramos no quarto da Rúbia e como quem faz uma coisa proibida, fechou a porta e com o dedo indicador nos lábios, me exigiu silêncio, fiquei imóvel.
Pediu que eu me sentasse na cama e se ajoelhou perto de mim, depois estendeu a mão para debaixo da cama e de lá retirou uma vitrola, jogou a vitrola na cama e abriu o compartimento das pilhas, estavam todas lá, levantou o travesseiro e, com todo o cuidado do mundo tirou de lá um LP, mostrou pra mim, Taiguara... e uns dizeres meio indígenas.
Havia um disco censurado do cantor e, era aquele mesmo, passamos umas duas horas ouvindo o disco.

A promessa.


Já disse várias vezes que, fui criado por mulheres, muitas mulheres, sem ter a parte paterna na minha criação, fui meu próprio pai.Contrariando o que as pessoas pensam, meninos criados por mulheres não são efeminados, esses são meninos criados pela avó ou por mães solteiras.Meninos que são criados por várias mulheres são profundos respeitadores do sexo frágil, tornam-se cavalheiros e as defendem com unhas e garras, são capazes de enfrentar um batalhão sozinhos e só se ajoelharam diante de uma mulher, sem a velha lengalenga de se qualificar como hetero, na cabeça dele, Deus fez a mulher com o seu melhor material, do resto veio ele.Se na infância, a bola nos regia e nos mantinha unidos, na adolescência descobrimos o encanto das meninas, seu perfume e seus lábios carnudos.Deixamos de ser gladiadores e nos tornamos amantes, as meninas vinham de séculos de repressão e, no início da década de 80, a represa se rompeu de vez, todo simples rolê acabava em sexo...podem perguntar, se não me acreditam.Os moleques do pavilhão 22, principalmente às segundas-feiras, antes de dormir, contavam as aventuras do fim de semana com requintes de detalhes, uns poucos tinham uma namorada fixa, feito o Tadeu, o resto contava de uma garota por semana essa coisa virou uma obrigação, contar as aventuras para os amigos era como contar as façanhas do futebol.Indo pra Pinheiros, nos empolgamos e acabamos fazendo bagunça no Buzão, o motorista parou na Paineira e fez menção de que ia chamar a polícia no posto que ficava ali, como ele havia trancado as portas, pulamos pela janela e sumimos, cada qual por um lado, esse foi o dia que eu corri mais que o Valdevino, que era recordista dos 100 metros rasos.Dei um balão e saí na estação de trem, quando cheguei à Chic Show já estavam todos na fila e entramos no salão, uns 70 graus de temperatura justificavam o apelido do salão..."Panela de fritar macaco", antes de começar as coreografias do nosso grupo, uma cervejinha caia bem, metemos as mão nos bolsos e vimos quantas garrafas vinham...estupidamente gelada.Cada um com seu bolinho e cada bolinho com passos ensaiados, entrar em rodinha alheia era crime e o infrator tomava cambau.
No nosso sagrado círculo, uma menina passou, é claro que meninas não tomavam cambaus e, cavalheiro que sempre fui, enlacei o braço dela ao meu e a conduzi pra longe daqueles selvagens, no meio desse caminho as luzes se amorteceram e começou a sessão de lentas e, já que a tinha, virei-a de frente pra mim...meus olhos jamais tinham visualizado uma beleza assim.
A pele da garota era negra e brilhava na profusão das luzes, nos olhos rasgados e pequenos tinham traços orientais, a boca era vermelha de batom e grossos lábios convidavam, um nariz perfeitamente pequeno, as covinhas apareciam nas bochechas quando ela sorria, um anjo, de longe, a mais linda moça que eu havia visto nos meus longos 14 anos, me lembro de esfregar os olhos pra me certificar de que não se tratava de miragem.
Dancei uma, duas e como ela não fazia questão de desapartar de mim, me deixei durante toda a playlist de lentas.
Esqueci-me dos amigos por completo, mesmo na hora dos Funk’s, ficamos agarrados, num beijo que só acabou quando o baile se findou.
Na saída, comuniquei aos amigos que ia levar a dama pra casa.
_Aonde você mora, princesa?
_Morro do Querosene.
Estava tão encantado com a beleza da moça que, resolvi ignorar a pontada que me veio, quando ouvi o nome do bairro dela.
_Beleza, vamos conhecer um bairro novo.
Durante a viajem dos dois buzões, o beijo continuou, nem vi onde entramos, só pensava que ia me dar bem.
Subimos um escadão, uns caras mal-encarados estavam em frente da casa dela.
_. Quem é o playboy? Perguntaram os sujeitos.
Playboy, eu??tive vontade de brigar, mas não ia, por nada nesse mundo, por a perder o meu troféu, ignorei.
Os pais dela não estavam em casa e, prontamente me mandou sentar no sofá da sala, foi ao quarto e jogou um som no ambiente, instintivamente bati a mão no bolso da calça, pra conferir, estava lá o preservativo, respirei aliviado.
Ao som da melodia, ela se sentou ao meu lado e nos acariciamos por longo e tranquilo tempo.
_Ah, eu hoje vou me dar bem.
Enquanto beijava, acariciava lhe as partes íntimas e ela gemia aos meus ouvidos, eu me sentia o cara mais feliz da face da terra.
Sábio mesmo é aquele ditado que diz que "Alegria de pobre dura pouco".
Repentinamente aquele anjo se levanta, tira a blusa e a calça e diz:
_isso só vai funcionar de verdade, se me bater.
Eu ouvi claramente, mas perguntei, pra ela confirmar que eu havia entendido errado, pra minha desgraça ela confirmou e, enquanto pedia uns tapas, tirava o que restava das roupas.
Muito triste, mas resoluto, levantei-me, arrumei as calças e saí daquela casa.
Estava com tanta raiva que, se tivesse encontrado aqueles que me chamaram de playboy, os teria feito engolir as palavras, durante a volta pra casa, ecoavam as palavras da Rúbia em minha mente: "Nunca tratar mal a uma mulher" essa promessa fora feita na Casa de Infância, quando eu tinha 8 anos.
É claro que contei aos amigos, essa desventura e, é claro que virou a piada preferida da nossa turma.

sexta-feira, 31 de março de 2017

O jacaré.


Aposto que você pensou que eu ia falar da lenda do jacaré, que habitava as águas do lago da pedreira.
Mas, isso era pura lenda mesmo, por aquelas bandas haviam macacos, cobras, preás e fantasmas, esse réptil foi coisa inventada pelos funcionários da pedreira, não fosse isso, os meninos do Educandário Dom Duarte viveriam pulando no perigoso e assombrado lago.
Jacaré não era um réptil e sim um cachorro...o cachorro.
Se corresse o Educa, iria encontrar vários cães que faziam companhia aos internos, perguntando para os meninos do 12 eles te diriam que o melhor de todos os cachorros do mundo era a pastora alemã Laika, os meninos do 19 diriam que o melhor mesmo era o Peri, a maioria dirá que o Viele era o mais querido de todos.
Criadores e veterinários dizem que, com cuidados extremos, um cão não viverá mais que 14 anos, posto isso, sou obrigado a concordar que o Jacaré foi um fenômeno, esse viveu 17 anos e eu, fui testemunha de seu nascimento e morte.
Em 1977 eu trabalhava na olaria e tinha 10 anos, quando vinha para o trabalho, o seu Luís, uma das pessoas mais queridas que eu tive o prazer de conhecer e, que era o encarregado da máquina de moldar tijolos, trazia sempre uma cachorrinha, essa o acompanhava sempre e, é claro que os meninos se divertiam muito em companhia dessa nos intervalos e na hora da saída.
No dia que ela deu cria, eu e o Lucídio fomos à casa do seu Luís e vimos a ninhada, foram sete cachorrinhos, deu nomes a todos e, deles todos, o mais fraquinho, o que menos parecia ter chances de vingar, ele batizou com o nome de Jacaré.
Preocupado com a frágil saúde do pequeno cãozinho, o homem passou a levá-lo para a olaria, sempre enrolado em uma toalha, ficava quietinho ao lado da esteira, o seu Luís de quando em quando, passava os olhos.
Devidos aos extremos cuidados do dono e a torcida dos meninos, o Jacaré vingou, da ninhada toda ele passou a ser o maior, de natureza calma, mas, assustadoramente grande.
Não era desses cães que fazem festa ou vão buscar bola ou graveto, quando via um amigo, se sentava ao lado e ficava perto, e acostumou tanto com a olaria que não foi mais pra casa, os arredores da olaria virou o seu lar, era comum vê-lo sentado ao lado do seu João do forno e, num outro momento, ganhando comida do Carlinhos do artefato de bloco, de noite e nos fins de semana ele vigiava todo o complexo, do barranco do 11 até a estrada da assistência, o estranho ouvia um latido forte, que por si só, já metia medo e, repentinamente, um monstro aparecia na sua frente.
Quando a olaria foi fechada, continuei a passear por aquelas bandas e, quando me via, vinha ter comigo, uma amizade silenciosa.
Depois da morte do seu Luís, o Jacaré continuou a guardar o território, quando íamos pescar ou caçar rás, ele vinha e nos protegia, voltávamos pelo lado da mata, ao lado daquela fera, nada nem ninguém nos metia medo, ia conosco até o pavilhão 14 e, quando a luz do dormitório se apagava, ia embora.
Cumpri o meu tempo de Educa e fui embora do colégio, virei adulto, em 1985 fui trabalhar no Cemitério Israelita, na empresa Uni jardins, minha esposa esperava minha filha.
Assim que cruzei o portão do Israelita, um enorme cachorro veio latindo ao meu encontro, fiquei surpreso, pela primeira vez vi o Jacaré me fazer festa.
_. É Jacaré, eu também estava com saudades.
Um dos funcionários me disse que eu estava enganado, aquele cachorro se chamava Bob.
O encarregado Lindolfo, estranhou que aquele cachorro, que não gostava de ninguém, foi fazer festa para um estranho.
Eu disse que esse cachorro eu conhecia desde filhotinho e que ele pertencia ao finado seu Luis.Ele disse que o cachorro havia aparecido fazia já uns anos, ele simpatizou e ficou cuidando dele.
O Educa havia mudado muito e os antigos moradores já haviam saído de lá, o Jacaré atravessou a avenida e foi viver nova vida, tinha até nome novo.
No tempo que trabalhei ali, o cachorro me acompanhava por todo lado.
A vida é evolução e vivi o que ela havia me reservado, em 1994, quando foi inaugurada a nova sinagoga, voltei para o Israelita, agora eu era vigilante, o Lindolfo já havia morrido e o Jacaré me recebeu de novo, se os outros vigilantes faziam rondas em duplas, eu fazia a ronda da meia-noite sozinho claro, na companhia do meu amigo de infância e, como na infância, nem alma me metia medo.
17 anos ele já havia completado, sentou-se, fechou os olhos e se foi...sem dramas, como sempre foi a sua longa vida.