segunda-feira, 17 de abril de 2017

A gente dá o que tem.


  O seu Odilon e a dona Ana, é bem provável que tivessem tido uma passagem bem desgraçada, cada um deles, em suas infâncias.
  Isso justificaria os maus tratos à que submeteram os internos do lar 14, dois bichos, que resolveram constituir família e acharam um empregoo com casa e comida.
  Sua função era bem específica; cuidar de 45 menores, dar-lhes uma educação e protegê-los.
  Não que isso fosse um serviço fácil, mas, durante o tempo que o exerceram, deturparam tudo... espancavam, castigavam e os expunham-nos à escravidão infantil e, lucravam com isso, com a conivência da diretoria e da Liga das Senhoras Católicas.
  Analfabeto e coxo da perna esquerda carregava sempre um revólver à cinta, a esposa achava tudo isso normal.
  Quando explodiu na imprensa, a verdadeira condição à que os internos do Educandário Dom Duarte eram submetidos, a primeira cabeça que rolou, depois das dos irmãos, foi a do Odilon.
  A sensação de liberdade que nos alcançou nesse dia, deve ter sido igual à da assinatura da lei áurea, quando voltamos da escola, já havia se escafedido o nosso algoz.
  Respiramos um ar de liberdade que não conhecíamos e ficou, em seu lugar, o Luís Antônio, que era o interno mais velho, como nosso responsável.
  Luís Antônio, aliás, uma das almas mais iluminadas que eu já tive o prazer de conhecer.
  Nesse ponto, tem uma coisa que acontece com meninos e, que não cabe explicação... era ruim o Odilon? Ah, ele era bem pior que eu descrevi.
  Mas, para meninos que não tinham pai, era um pai ruim, mas era a única coisa que se aproximava da figura de um pai, pelo menos, para aqueles que não tinham um pai...que coisa doida.
  E então, contrariando tudo o que o bom senso chama de razoável, fomos, eu, o Viana e o Adilson (Ovinho) visitar o Odilon em sua nova residência.
  Foi morar na Vila Borges, bem perto da Foseco, nos recebeu bem o casal, ficamos a tarde toda e eu tive a chance de brincar, de novo, com a menina Márcia, a filha caçula deles, que tinha uns seis anos.
  Quando voltamos para o Educa, já nos paralelepípedos que ladeiam o campão e parte em direção ao Aprendizado, nós três tinham a companhia do arrependimento e o silêncio pesava.
  Não falei palavra nenhuma, o Viana disse:
  _Que merda a gente acabou de fazer? Esse casal tratava a gente feito bicho e a gente sai para visitar, como se fossem pessoas de bem.
  Quando o Viana ficava nervoso, uma veia aumentava e ficava visível em sua testa, permaneci em silêncio, sentia mesmo a vergonha do amigo.
  E, veio do Adilson, o amigo de menor inteligência entre todos os meus amigos:
  _. Eles não eram bons, é verdade, mas nós somos. 
  Nascemos assim e nem a longa convivência com pessoas ruins, nos há de tirar essa bondade, se é verdade que cada um dá o que tem, nós acabamos de dar a eles o que eles nunca nos deram.

O menino do piano.

O menino do piano.
Antes de me fixar no Butantã, morei no centro, no bairro oriental da Liberdade, ainda que fosse um quartinho e uma cozinha, que juntos, não chegavam a 5 metros quadrados, eu gostava de morar no centro da Paulicéia desvairada.
Na Rua Conselheiro Furtado, de frente com a boate coreana um portão de ferro fundido abria para um longo corredor, um casarão antigo, que o dono transformou em oito quartos, oito portas e oito janelas, no fundo, o banheiro servia a todos, bem como os dois tanques.
A vizinhança era constituída de migrantes, um mineiro dois alagoanos, um baiano e quatro pernambucanos, uma verdadeira colcha de retalhos, por ser o único paulistano, além do dono, todos os vizinhos gostavam de me expor seus costumes musicais e suas histórias, eu tinha 17 anos e absorvia tudo, com a curiosidade de um guri de seis anos.
Algumas noites de balada, eu não conseguia voltar para casa e me hospedava onde estava, quando apontava no portão, todos os vizinhos vinham me ver, eram tempos de perigo e todos me tinham como um irmão caçula, para alguns, eu era um filho.
Todos os dias, exatamente ás 18:00 horas, do terceiro andar do prédio ao lado, cuja frente ficava na Rua da Glória, vinham os mesmos sons.
Primeiro um bater agonizante de aparelhos metálicos contra o assoalho de madeira, depois o abrir da tampa do piano que, de velho rangia alto, em seguida o torturante estalar de dedos e, por fim, as mãos batiam nas teclas do piano, nervosos num primeiro momento e, se enchia o ar de música, uma mais bela que a outra.
Nesse tempo, que durava uma hora e meia exatamente, todos paravam seus afazeres e ouviam em silêncio, pessoas de gostos diversos eram reféns da música do menino que, por conta de uma paralisia infantil, andava, à custa de esforço, apoiado em próteses metálicas.
Não fazíamos ideia de como era a aparência do menino, mas, nos era uma lição, geralmente eu me deitava no colchão e cerrava os olhos, permitindo que a música me levasse por mundos imaginários, talvez, sem a exatidão comprovada da data, isso se deu em 1984.
Num belo sábado, com todo mundo no corredor, apreciando um malte, deu 18:00 horas e a música não veio, todos olhamos para janela do apartamento e as luzes estavam apagadas, tristes nos recolhemos, parecia que nossas vidas não estavam completas.
Eu trabalhava na Rua Lavapés, no horário de almoço fui ao prédio do menino e o porteiro me contou que ele estava doente e internado no Hospital Adventista, me dei conta que nunca o havia visto.
Na saída, comprei um ramo de flores, Nany, a florista filipina, me trouxe as últimas rosas do estoque e se desculpou... me fui ao hospital, menti que era maior de idade e era amigo da família, no meio da minha conversa com a recepcionista, uma senhora que vestia negro e tinha um olhar sofrido, acenou para ela.
Veio até mim e segurou meu braço, como a conduzir-me e, numa voz suave disse:
_Ele vai receber a todos, mas, tem muita gente, nunca pensei que meu filho tivesse tantos amigos assim.
Quando cheguei à sala de espera, tomei um susto.
Todos os amigos do corredor estavam lá, bem como todos os vizinhos dos quarteirões.


sábado, 15 de abril de 2017

Zabé, o anjo negro.


Como todas as crianças que cresceram no Educandário Dom Duarte, vivi sob as regras duras do cristianismo e o irmão Augusto falava da tal alma branca...só que eu cresci e das pessoas que conheci, as que tinham um ar que se aproximava de uma santidade foram poucas, a maioria delas, não tinham a pele alva.
O Carlos Alberto não gosta de ser chamado de Zabé, havia sido interno da Casa de Infância, interno do Educandário Dom Duarte e agora era funcionário da marcenaria.
Acostumei ver o Carlos Alberto no seu caminho diário de pegar água na bica ou a esperar em frente do aprendizado, sereno e sorridente, sempre a cumprimentar a todos, sem qualquer discriminação.
Sempre vi o neguinho como um lago de águas tranquilas, como quem vive num plano superior, onde os seres não se matam entre si, só sorriem, como se o simples fato de sorriem, fosse o bastante pra iluminar e contaminar os outros viventes.
Nunca soube que o Zabé tenha se alterado ou dito uma palavra que ofendesse alguém, somente o sorriso plácido de quem não tem nada e, não tendo nada, tem tudo.
Na parte direita do grupo escolar, restava uma parte de terra, que era usada como área de recreação dos guris da escola, ainda não era cercada e se avizinhava do Aprendizado, esse prédio que agora é do SENAI, no centro desse terreno, uma extensão pequena de terra batida.
Cavamos um buraco e marcamos um círculo em volta, uns 12 meninos e suas bolinhas à ganha, alguns carregavam as bolinhas, alguns eram donos das bolinhas, os outros eram meros torcedores ou arranjadores de confusão.
O Spock era o campeão do 14, o meu pavilhão, o Miguel representava o 13, eu era o assistente do Spock e o Avelino vinha com o Miguel, porque bolinha de gude era um patrimônio e, não se sai por ai, portanto riqueza, sem proteção.
Sabe-se que o Spock era debochado, quando fazia a limpa numa vítima, costumava fazer o ritual da vitória que consistia em cuspir nas mãos, jogar as bolinhas ao alto e depois vinha um gesto obsceno.
O Miguel se sentiu humilhado, perdera toda a sua riqueza e aquele esquisito ainda ria dele, partiu pro pau, a missão do carregador era, em caso de briga, entrar pro lado do chefe e eu entrei também na briga, o Avelino fez o mesmo, os outros meninos ficaram a atiçar.
Veio lá do Aprendizado, o Zabé, entrou no meio da briga principal, segurou os dois e sem dizer palavras e, deu um sorriso.
Até pode ser, que tenha falado alguma coisa, mas todos aqueles meninos que na época tinham uns 10 anos, de vergonha, saíram, cada um para o seu lado.
E cresci, sempre a ver o amigo em seu caminhar sereno e a cumprimentá-lo em qualquer lugar:
_Arrê Zabé. Como se o sorriso desse anjo completasse o dia.…Zabé era um apelido que ele não gostava, então ele me corrigia:
_Zabé não, Carlos Alberto.
Anos mais tarde, vieram os anos de chumbo, o mundo mostrou-nos sua verdadeira face e nos revoltamos e, como se a vida se mostrasse madrasta, gritou o revoltado Viana:
_. Nesse mundo não existe uma pessoa que não tenha má índole e desafio a quem me diga o contrário.
Estávamos todos em frente do pavilhão 22 e tínhamos todos 14 anos.
Fez-se um silencio a turma não sabia o que dizer, ele se sentia bem em ganhar uma contenda e, já abria o riso irônico de vencedor.
Muito tranquilo, esperei que ele saboreasse a vitória, ao cabo de uns segundos fuzilei:
_E o que você me diz do Zabé?
A turma toda visualizou o Zabé em suas mentes e se sentiu aliviada, como se o mundo estivesse salvo.
Mas, o Viana não se deixava vencer assim fácil, depois de pensar bem e coçar a cabeleira, disse:
_Desculpa, eu falava de gente de carne e osso, o neguinho Zabé não existe.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Pequenas reminiscências.


Fato um, uma das duplas que mais fazia sucesso nos anos 70 era os Carpenthers e isso continuou naquele começo de 80, era composta de dois irmãos, ele compunha e tocava, ela tinha a voz mais linda e conhecida da época e, eu duvido que se achasse um guri que, não amasse a Karen.
Fato dois, o Grêmio Educandário era, da região, o time mais amado, de todo o entorno vinha gente da vizinhança assistir, gente que sequer havia passado do campão e não fazia a menor ideia que, se tratava de um orfanato, o Educandário Dom Duarte, funcionários e internos tinham noção da paixão dos torcedores e faziam de todos os jogos, um espetáculo à parte.
Fato três, o Luis Paulo era, entre todos os funcionários, o mais alegre, uma alegria regada de ironia, referência cultural e exemplo de postura, tudo isso, de uma maneira simples de quem fez do sofrimento de antes a piada de agora e, foi uma das primeiras pessoas que possuíram aquele rádio portátil.
Portátil e forma de falar, ele tinha o tamanho de uma televisão, só não era tão pesado, era muito engraçado vê-lo carregando-o no ombro.
Essa era uma ocasião rara, pois o Luis Paulo não participaria da partida, nem apitando, nem seria parte da comissão técnica, na verdade, o Formigão era bom mesmo como torcedor, não havia uma pessoa na casinha, que não morresse de rir das suas piadas e o time adversário sofria.
Nesse dia, ele apareceu com o rádio no ombro e não queria ficar na casinha, deu a volta no campo com o som na última e viu uma turma sentada na pequena amurada que fica de frente para a bica, avistou a mim, o Viana, o Ué e o Claudio Farofa, pediu a vaga do meio e todos se afastaram para o prazer da sua companhia:
_Nilton, gravei a música dos Carpenthers em fita.
Lá dentro de campo o Grêmio dava canseira no adversário, mais uma partida impecável do Valdevino, o exército de um homem só.
Abriu o deck e introduziu a fita e aumentou o som, tendo o barranco do lago às costas, o som reverberou e estendeu no descampado, um som suave se precipitou e a linda voz da Karen. dominou o ambiente, me lembro de ter fechado os olhos para sentir aquela maravilha de voz.
Inexplicavelmente, o Levi que era atacante apareceu na defesa e deu um chute tão forte que a bola sumiu no bambuzal, ninguém do Grêmio saiu para buscar a bola, se juntaram na área e, disfarçadamente, deram a entender que faziam uma reunião, todos a ouvir a doce voz da inesquecível Karen....do The Carpenthers.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Adeus Elis





  Em 19 de Janeiro de 1982, soubemos da morte da Elis Regina, logo pela manhã.
E, não foi a morte de uma artista, foi a morte de uma pessoa próxima, como se fosse uma pessoa que eu conhecesse da infância, meu modelo de mulher, agora eu tinha 16 anos e, tudo que eu sabia de música, era pela voz dela, através dela, eu conheci o Clube da Esquina, o balanço de Tim Maia, o som de Gilberto Gil, João Bosco, Ivan Lins e a poesia de Belchior.
  Ouvia uma música, não importava o estilo, e já pensava:
  _Putz, na voz da Pimentinha, isso fica legal.
  Eu e meus amigos do colégio e, estudávamos no E.E.P.G Alcides da Costa Vidigal, no ginásio, resolvemos que não iriamos para a escola nesse dia, no dia seguinte fiquei sabendo que os poucos guris que foram para escola, tiveram que voltar, todos os professores e a diretora, haviam faltado.
  Alguns dos amigos disseram que iam ao velório, eu não fui, até hoje, sou avesso à funerais, fiquei sozinho e fui andar.
  Como não ia usar o dinheiro da condução, resolvi tomar um refrigerante.
  Fui até o bar do Barroso, puxei o banquinho, pedi a Coca e me sentei, o Barroso estava com os olhos vermelhos, o homem era um troglodita e eu duvidei que fosse por conta do luto, mas, para me contrariar, ele já foi falando da morte da Elis e, sem qualquer vergonha, chorou compulsivamente, depois se retirou para atrás do balcão.
  Eu estava em silencio e, assim permaneci, na mesa atrás de mim, haviam 3 senhores, que bebericavam suas cervejas tranquilamente, a esposa do Barroso saiu da cozinha, passou pelo balcão, me acenou com a cabeça e foi ligar o rádio.
  O locutor falava da perda da grande estrela:
  _Essa gaúcha de Porto Alegre...
  Vendo que a notícia ia fazer mais infeliz o marido dela, girou o botão e desligou o rádio.
  O mais velho, dos homens da mesa falou:
  _Gaúcha, veja você, eu sempre achei que ela fosse daqui mesmo. Ela tinha o jeitão daquele pessoal da Mooca.
  O homem do meio da mesa, tirou o chapéu:
  _. Jurava que ela fosse mineira.
   O terceiro não disse nada, tinha os olhos fixos no copo, e o silencio imperou no ambiente, uns minutos mais tarde, ele pegou o maço de flores, que havia acomodado no colo, levantou-se e disse aos outros:
  _. Vamos lá, prestar nossas homenagens.


Heranças de uma geração.


As obras "Como nossos pais" e "Aos nossos filhos", não são, como os títulos podem sugerir, respostas de uma a outra ou continuações, são momentos brilhantes de jovens que, viveram num país sem esperanças.
 Vítor Martins pede paciência aos seus contemporâneos, posto que, um sol brilhará e Belchior ironiza o momento carrancudo, diz que, apesar da carranca, o espelho nos denuncia.
Dois poetas que viveram o mesmo momento, vendo-o com a diversidade dos pensamentos, as duas obras são imortais, heranças para a humanidade.
Em comum mesmo é, o fato de, as duas terem sido imortalizadas na voz, no riso e no choro da imortal Elis Regina...a voz.