quarta-feira, 19 de abril de 2017

A canção perfeita

  As pessoas costumam dizer que, tem música que conta história... eu vou mais longe, todo momento que eu vivi, tem uma música para lembrar, minha memória e a música caminham juntas, a música é o combustível que ativa as minhas lembranças.
  Em 1977, quando fui trabalhar na administração do Educandário Dom Duarte, com o seu Tinoco, pensei que estava sendo punido, não que eu não merecesse castigo, mas, quem imagina que um guri de 12 anos, vá se entender com um senhor, com mais de 80 primaveras, ranzinza e caladão.
  No começo, havia só o silêncio, silêncio propriamente não, arrastava-se no ar aquela música que vinha do rádio dele, uma música marcial, aqueles acordes inflexíveis, aquela coisa monótona e repetitiva, muitas vezes, ele percebia que eu fechava os olhos na minha cadeira, dava um forte tapa na mesa e, eu acordava assustado, ele sorria feito uma criança, que acabou de cometer uma travessura.
  O ajudante do seu Tinoco, diferente dos ajudantes do seu Reginaldo e do seu Alones, não saía para entregar bilhetes ou comprar alguma coisa, portanto, eu tinha que ficar ali, naquela guerra de gerações, Todos os prédios do Educandários datam de 1930, a sala do seu Tinoco parecia ser vitoriana, lá fora, os outros meninos escutavam The Commodores e Guilherme Arantes, lá dentro, a trilha sonora era, supunha eu, a de um campo de concentração.
  Na sala, haviam, além das fotos antigas, troféus enormes, de um tempo de glória da fanfarra e do futebol Educandariano, a minha curiosidade fez com que ele se abrisse e, do baú aberto, havia uma riqueza de detalhes, datas e acontecimentos, aquele velho mal-humorado era um narrador apaixonado, conhecia todas as histórias que os troféus não mostravam.
  Viciado em leitura, naquele tempo, não abri um livro, toda cultura que adquiri, foi via oral, minha mente viajava, as histórias eram dum tempo duro, nossa!.... Se no meu tempo era duro ser interno, imagina no tempo dele, onde reinava uma disciplina militar e os internos eram tratados como prisioneiros.      Aquilo foi tão bom para mim, que anos depois, fui entrevistar um velho combatente da revolução de 32, como trabalho de estudos sociais, o pracinha ficou impressionado com o meu conhecimento de causa que quis me adotar.
  Ainda assim, a música continuava a mesma, certo dia, faltando poucos minutos para o meio dia, entrei na questão:
  _Seu Tinoco, essa sua música faz pensar em suicídio, eu até que gosto de clássicos, mas convenhamos... Vagner é de lascar.
    _. Ué, eu gosto de Vagner, disse isso e sorriu, um sorriso desafiador.
  _O Hitler também gostava e isso não fez dele um ser humano lindo.
  _E. o que o "programador" sugere ???_disse ele, ainda rindo.
  _Poe aí, umas músicas de negão, falei isso, mas, já estava saindo da sala e ganhado a garagem, ele saiu até o corredor e gritou:
    _. Amanhã, vou te mostrar o que é música.
  No dia seguinte, ele tinha, em cima da mesa, uma vitrola antiga com um disco de 78 rotações, na capa do disco, que estava em cima da mesa, um nome:
  Scott Joplin, confesso que isso não me impressionou nenhum pouco, o velho segurava o braço da agulha e com um ar misterioso, começou a narrar:
    _. Imagine um mundo, um mundo sem jazz, só havia as polcas e as valsas...
  Conforme ia contando a história, crescia e descia o tom da voz, conforme a emoção, contou que os negros, nos barcos que navegavam o rio Mississippi, aprenderam a tocar piano, olhando os brancos, mas, aprenderam do seu modo, usando a parte preta das teclas, isso deu um som diferente de tudo o que era conhecido e, muito mais rápido no seu passo, servia mesmo para dançar, essa música, foi dado o nome de Ragtime e, só então, soltou a agulha no disco.
  O som que ecoou na sala, me conduziu direto ao começo do século XX e a música era conhecida, aquelas músicas incidentais do cinema mudo.
  É claro que fiquei encantado, a evolução da música foi mostrada, cada dia um disco diferente e nem se eu tivesse um curso intensivo, eu teria um professor deste gabarito.
  Blues, Jazz, isso, no entender dele, era música de negão e ele conhecia tudo, de Glenn Miller à Sinatra, de Cole Porter à Nat King Cole, mas tinha uma paixão especial por Billie Holiday.
  Quando falava dela, seus olhos brilhavam, sabia tudo sobre ela, suas músicas e sua vida, todos os dias, ele trazia um disco de Jazz ou Blues e no final, sempre executava um da Billie.
  Minha canção preferida sempre foi Blue Moon, quer dizer, a canção preferida dele, virou a minha.
   Então juntos, chegamos à conclusão que a música perfeita seria ela e, na voz da Billie.
  Na minha vida, conheci muitos amantes de Jazz, desses, oito entre 10, eram apaixonados pela Billie... aos poucos, eu me tornei um deles.
  Anos mais tarde, eu já trabalhava na Procuradoria Geral do Estado, passeava para os lados do Metrô São Bento, quando ouvi a Billie interpretando. Estrange frut., jurei para mim que ia comprar esse disco, entrei na loja e havia um senhor sentado, ouvia a música com os olhos fechados, tinha uma coleção dos discos dela, passei em revista, disco por disco e, no meio de todos eles, achei um que me assombrou, peguei-o e levei para o vendedor:
  _A Billie gravou Blue Moon mesmo?
  Ele acenou com a cabeça que sim, não acreditei e pedi que ele a executasse na vitrola, ele obedeceu, quase chorei de emoção, comprei o disco.
  No dia seguinte, fui para o pavilhão 11, que agora estava convertido em asilo, o seu Tinoco sorriu a me ver adulto, quando lhe entreguei o disco, seus olhos brilharam e gaguejando disse:
  _A canção perfeita.
  Essa foi à última vez que vi meu velho amigo de infância.


terça-feira, 18 de abril de 2017

O pai ausente



Ainda naquele assunto de ser órfão, fui-o desde os três anos e nunca tive problemas com esse fato, no Sampaio Viana era tudo muito confuso e muito escuro, na Casa de Infância do Menino Jesus veio à luz e a alegria e, no Educandário Dom Duarte me tornei homem.
Diz-se que, órfão não tem mãe e, me desculpem, isso é um erro gigantesco, eu tive umas 20 mães e umas 50 madrastas.
  Funcionárias de orfanatos e freiras não resistem a um menino carente, eu tinha um rosto de anjo e, sabia usá-lo nas conveniências.
  O pai do órfão é aquele que lhe providencia o lugar onde dormir, comer, estudar e passar a infância em relativa segurança, então, o órfão tem como pai legal, o juiz de menores.
  É ele, um nome na ficha e na certidão de nascimento do interno, é ele quem responde pelo interno, até que ele atinja a maioridade.
Me lembro de que, por várias vezes, eu e o Viana, que também era órfão, falávamos um para o outro:
_Vai pro centro, aproveita e visita o nosso pai.
  O mesmo juiz que assinava a minha ficha, assinava a ficha dele, portanto, além de irmãos, tínhamos o mesmo pai.
  Eu fui o primeiro interno a estudar numa escola fora dos domínios do Educandário, me mandaram pro Vidigal como parte de uma experiência, se desse certo, outros internos poderiam estudar fora e... deu muito certo.
  Nos dias de reunião dos pais, meu pai era o padre Paulo.
   O cabeça chata nunca usava a sua batina, no dia da reunião dos pais, ele vinha de batina.
Sempre havia um guri mais engraçadinho que fazia a piada:
_. Aquele padre ali é o seu pai?
E eu caia logo de voadora:
_. Isso mesmo, e a minha mãe é a mula sem cabeça.
  O padre Paulo foi mais um dos homens que cuidaram de mim, pude contar uma dezena deles, mas, meu pai legalmente era o juiz de menores.
  Cuidava de mim de longe e fazia bem o seu trabalho, a vida toda eu tive a certeza que não o conheceria, mas ...o destino é brincalhão e a minha vida é uma comédia.
  . Em agosto de 1983, eu já completara 16 anos, trabalhava, namorava, ia para as baladas e estudava.
  Mandaram-me chamar na administração do Educa, em sua sala, a dona Néri tinha a companhia do padre Paulo.
  Cumprimentei-os e entraram logo no assunto que mudou a minha vida.
  Disse-me que eu ia ser transferido pra um pensionato na Vila Carrão, o pensionato recebia menores do Educa e da FEBEM, tinha horários e regras...
  Enquanto ela contava os prós e os contras, um filme me veio à mente, lembrei-me do dia que eu cheguei ao internato, a dureza de ser novão, a adaptação à nova vida e percebi que havia crescido, minha prisão havia me ensinado o gosto pela liberdade, uma ficha que já ameaçava, caiu.
  Paciente, esperei que ela terminasse o padre Paulo que me conhecia e sabia que eu não ia aceitar aquilo, desviou o olhar.
_ Isso foi o que determinou o juiz de menores. Arrematou ela.
  Levantei-me da cadeira e, numa tranquilidade assustadora, estendi-lhe a mão, assim que ela apertou-me os ossos eu disse:
_Desculpe-me, mas, meu tempo de ser mandado acaba agora, a partir desse momento eu me dou a maioridade, nunca mais alguém vai dizer o que eu tenho ou não que fazer.
  Apertei a mão do padre Paulo e agradeci, sai dali e segui para o pavilhão 22, juntei minhas poucas coisas e me despedi dos meninos, sem qualquer drama, como fora toda a minha vida no Educa, fui-me, de cabeça erguida e mil planos na cabeça, quando cruzei o portão, o seu Felipe, bem mais velho do que no tempo em que eu cheguei ali, me perguntou:
_Não vai se despedir do amigo? O velho sorriso de sempre.
_. Mas que despedir, todo santo dia vou estar aqui, para esperar o ônibus, seu careca ridículo.
  . Apertei-o contra o peito, um abraço para um amigo que me viu entrar criança e sair adulto.
  E, me fui morar ali, na Osvaldão.
  Trabalhava na Procuradoria Geral do Estado e o diretor me mandou chamar e disse que nesses casos o juiz emitia um mandado de captura contra o menor evadido e, se isso acontecesse, ele teria que me demitir.
  Bom, aproveitei o correio e escrevi uma carta ao tal juiz, não me lembro com exatidão do conteúdo da carta, nela eu agradecia os anos de ajuda e tudo mais e, saiu com um capricho tão grande a carta, que teve resposta.
  Dois dias depois, recebi um telefonema, a secretária do tal juiz marcou uma audiência, finalmente eu ia conhecer o meu pai, ri interiormente e tive medo de rir na presença dele.
  No dia marcado, a secretária me conduziu a uma sala ampla com ar condicionado, sentei-me na cadeira que ficava na frente de uma enorme mesa de mogno, acabada num verniz quase vermelho, do outro lado da mesa havia uma cadeira estofada, atrás da cadeira uma porta de cerejeira, dali sairia o juiz.
Esperei um quarto de hora, o estranho é que havia uns barulhos confusos que vinham da direção daquela porta, finalmente a porta se abriu e saíram umas 30 pessoas, todas com papeis na mão, levantei-me em sinal de respeito.
Um homem grisalho postou-se a minha frente e disse que era o juiz que me representava os outros todos também eram juízes de menores, ficara tão impressionado com minha carta, que fizera copias dela, mandou pros amigos e todos eles estavam ali pra me conhecer.
Eu havia sido o primeiro e único órfão que agradeceu a um juiz pelo cuidado de uma vida e, o único a pagar esse mico.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

E, a vida segue seu rumo...


  Toda vida e todo destino segue o rumo que tem que seguir, alegrias e sofrimentos vem, conforme o merecimento de cada um.  Minha mãe, alguns anos atrás, pediu desculpas pelas coisas que aconteceram e me levaram a viver uma vida de órfão, sorri pra ela e disse:_Não tem o que perdoar, jamais abriria mão da vida intensa, das aventuras, dos aprendizados e dos amigos que conquistei.  E, não fiz média não, se eu vivesse uma vida comum, lá no Bexiga, tenho certeza que não teria metade das coisas que tenho pra contar, aprendi a olhar o comportamento humano e a ser tolerante com a vida e a natureza das pessoas, medir as consequências dos meus atos e a respeitar a opinião alheia...Bom, essa última eu ainda estou aprendendo.  Relegado ao meu papel secundário e sempre na posição de observador, vi a injustiça aflorar, vi milagres e lições que, só quem presta muita atenção vê e, nada disso eu poderia ver, senão na pele do órfão.  Sempre fui poupado pela sorte que, me virava os olhos nas horas do perigo, pude ver que, nessa vida não cabe espaço para “mocinhos e bandidos”, cada qual dá o seu melhor e a vida se desenrola, independente se alguém a está observando.  Minha vida no Educandário Dom Duarte se deu na passagem da infância pra adolescência e, convenhamos... esse é o tempo melhor da vida.  O Ovinho do 14, tinha o nome de Adilson, o apelido era devido ao formato da cabeça, em época de corte de cabelo obrigatório, o tampo da cabeça dele lembrava um ovo deitado.  Era daqueles guris hiperativos, vindos da FEBEM muito pequeno, tão pequeno que, nem fazia a mínima ideia de sua família, como todos nós tínhamos problemas nesse departamento, não costumávamos falar desse assunto, a melhor terapia era bater uma bolinha e esperar as coisas se ajeitarem.  É claro que isso era uma fuga do assunto, geralmente funcionava bem, mas em domingos de visita essa condição ficava insuportável e, depois do almoço, sumíamos do Educa.
  Na Rua Santa Barbara, o Ovinho tinha uma namorada e fugindo do fusquinha do irmão Domingos, íamos pra lá.
  Pra não ficar segurando vela, aproveitava pra visitar os amigos da escola e o Edson Pirata (ex-interno do 16) que já tinha mulher e duas filhas, quase de noite, voltávamos para o colégio.
Ambos tínhamos 11 anos, idade certa pro time dos pequenos, não me sentia pequeno e, não tendo vaga pra mim no time dos médios, me recusei a disputar o campeonato de 1978, torci pro meu pavilhão e ensinei o Ovinho a se posicionar como centro avante na área, ele terminou o campeonato com 47 gols, não parece muito, mas, em 12 jogos disputados é muita coisa.
  Assim crescem as crianças, alheias as condições e circunstância, o importante é se divertir.
  Se o seu mundo é limitado, sua capacidade de ser feliz não conhece limitações.
  Num belo dia, quando assávamos milho verde na brasa, bem perto do milharal, apareceu no lar 14 um senhor dizendo ser o pai do Ovinho, digo Adilson e, isso foi um susto.
  O homem contou uma história com passagens complicadas e circunstância triste, não que tenhamos entendido metade de tudo aquilo, mas ficamos felizes pelo amigo e, foi-se embora o amigo Adilson.
  Fui algumas vezes visitar a sua família, que possuía residência na Consolação e escritório na Paulista e podia se perceber que o novo Adilson se sentia um peixe fora d’água, tinha saudades de ser o Ovinho.
  Todo domingo de visita, saía do luxo de sua vida nova, comprava doces e visitava os irmãos que a vida lhe dera.

A gente dá o que tem.


  O seu Odilon e a dona Ana, é bem provável que tivessem tido uma passagem bem desgraçada, cada um deles, em suas infâncias.
  Isso justificaria os maus tratos à que submeteram os internos do lar 14, dois bichos, que resolveram constituir família e acharam um empregoo com casa e comida.
  Sua função era bem específica; cuidar de 45 menores, dar-lhes uma educação e protegê-los.
  Não que isso fosse um serviço fácil, mas, durante o tempo que o exerceram, deturparam tudo... espancavam, castigavam e os expunham-nos à escravidão infantil e, lucravam com isso, com a conivência da diretoria e da Liga das Senhoras Católicas.
  Analfabeto e coxo da perna esquerda carregava sempre um revólver à cinta, a esposa achava tudo isso normal.
  Quando explodiu na imprensa, a verdadeira condição à que os internos do Educandário Dom Duarte eram submetidos, a primeira cabeça que rolou, depois das dos irmãos, foi a do Odilon.
  A sensação de liberdade que nos alcançou nesse dia, deve ter sido igual à da assinatura da lei áurea, quando voltamos da escola, já havia se escafedido o nosso algoz.
  Respiramos um ar de liberdade que não conhecíamos e ficou, em seu lugar, o Luís Antônio, que era o interno mais velho, como nosso responsável.
  Luís Antônio, aliás, uma das almas mais iluminadas que eu já tive o prazer de conhecer.
  Nesse ponto, tem uma coisa que acontece com meninos e, que não cabe explicação... era ruim o Odilon? Ah, ele era bem pior que eu descrevi.
  Mas, para meninos que não tinham pai, era um pai ruim, mas era a única coisa que se aproximava da figura de um pai, pelo menos, para aqueles que não tinham um pai...que coisa doida.
  E então, contrariando tudo o que o bom senso chama de razoável, fomos, eu, o Viana e o Adilson (Ovinho) visitar o Odilon em sua nova residência.
  Foi morar na Vila Borges, bem perto da Foseco, nos recebeu bem o casal, ficamos a tarde toda e eu tive a chance de brincar, de novo, com a menina Márcia, a filha caçula deles, que tinha uns seis anos.
  Quando voltamos para o Educa, já nos paralelepípedos que ladeiam o campão e parte em direção ao Aprendizado, nós três tinham a companhia do arrependimento e o silêncio pesava.
  Não falei palavra nenhuma, o Viana disse:
  _Que merda a gente acabou de fazer? Esse casal tratava a gente feito bicho e a gente sai para visitar, como se fossem pessoas de bem.
  Quando o Viana ficava nervoso, uma veia aumentava e ficava visível em sua testa, permaneci em silêncio, sentia mesmo a vergonha do amigo.
  E, veio do Adilson, o amigo de menor inteligência entre todos os meus amigos:
  _. Eles não eram bons, é verdade, mas nós somos. 
  Nascemos assim e nem a longa convivência com pessoas ruins, nos há de tirar essa bondade, se é verdade que cada um dá o que tem, nós acabamos de dar a eles o que eles nunca nos deram.

O menino do piano.

O menino do piano.
Antes de me fixar no Butantã, morei no centro, no bairro oriental da Liberdade, ainda que fosse um quartinho e uma cozinha, que juntos, não chegavam a 5 metros quadrados, eu gostava de morar no centro da Paulicéia desvairada.
Na Rua Conselheiro Furtado, de frente com a boate coreana um portão de ferro fundido abria para um longo corredor, um casarão antigo, que o dono transformou em oito quartos, oito portas e oito janelas, no fundo, o banheiro servia a todos, bem como os dois tanques.
A vizinhança era constituída de migrantes, um mineiro dois alagoanos, um baiano e quatro pernambucanos, uma verdadeira colcha de retalhos, por ser o único paulistano, além do dono, todos os vizinhos gostavam de me expor seus costumes musicais e suas histórias, eu tinha 17 anos e absorvia tudo, com a curiosidade de um guri de seis anos.
Algumas noites de balada, eu não conseguia voltar para casa e me hospedava onde estava, quando apontava no portão, todos os vizinhos vinham me ver, eram tempos de perigo e todos me tinham como um irmão caçula, para alguns, eu era um filho.
Todos os dias, exatamente ás 18:00 horas, do terceiro andar do prédio ao lado, cuja frente ficava na Rua da Glória, vinham os mesmos sons.
Primeiro um bater agonizante de aparelhos metálicos contra o assoalho de madeira, depois o abrir da tampa do piano que, de velho rangia alto, em seguida o torturante estalar de dedos e, por fim, as mãos batiam nas teclas do piano, nervosos num primeiro momento e, se enchia o ar de música, uma mais bela que a outra.
Nesse tempo, que durava uma hora e meia exatamente, todos paravam seus afazeres e ouviam em silêncio, pessoas de gostos diversos eram reféns da música do menino que, por conta de uma paralisia infantil, andava, à custa de esforço, apoiado em próteses metálicas.
Não fazíamos ideia de como era a aparência do menino, mas, nos era uma lição, geralmente eu me deitava no colchão e cerrava os olhos, permitindo que a música me levasse por mundos imaginários, talvez, sem a exatidão comprovada da data, isso se deu em 1984.
Num belo sábado, com todo mundo no corredor, apreciando um malte, deu 18:00 horas e a música não veio, todos olhamos para janela do apartamento e as luzes estavam apagadas, tristes nos recolhemos, parecia que nossas vidas não estavam completas.
Eu trabalhava na Rua Lavapés, no horário de almoço fui ao prédio do menino e o porteiro me contou que ele estava doente e internado no Hospital Adventista, me dei conta que nunca o havia visto.
Na saída, comprei um ramo de flores, Nany, a florista filipina, me trouxe as últimas rosas do estoque e se desculpou... me fui ao hospital, menti que era maior de idade e era amigo da família, no meio da minha conversa com a recepcionista, uma senhora que vestia negro e tinha um olhar sofrido, acenou para ela.
Veio até mim e segurou meu braço, como a conduzir-me e, numa voz suave disse:
_Ele vai receber a todos, mas, tem muita gente, nunca pensei que meu filho tivesse tantos amigos assim.
Quando cheguei à sala de espera, tomei um susto.
Todos os amigos do corredor estavam lá, bem como todos os vizinhos dos quarteirões.


sábado, 15 de abril de 2017

Zabé, o anjo negro.


Como todas as crianças que cresceram no Educandário Dom Duarte, vivi sob as regras duras do cristianismo e o irmão Augusto falava da tal alma branca...só que eu cresci e das pessoas que conheci, as que tinham um ar que se aproximava de uma santidade foram poucas, a maioria delas, não tinham a pele alva.
O Carlos Alberto não gosta de ser chamado de Zabé, havia sido interno da Casa de Infância, interno do Educandário Dom Duarte e agora era funcionário da marcenaria.
Acostumei ver o Carlos Alberto no seu caminho diário de pegar água na bica ou a esperar em frente do aprendizado, sereno e sorridente, sempre a cumprimentar a todos, sem qualquer discriminação.
Sempre vi o neguinho como um lago de águas tranquilas, como quem vive num plano superior, onde os seres não se matam entre si, só sorriem, como se o simples fato de sorriem, fosse o bastante pra iluminar e contaminar os outros viventes.
Nunca soube que o Zabé tenha se alterado ou dito uma palavra que ofendesse alguém, somente o sorriso plácido de quem não tem nada e, não tendo nada, tem tudo.
Na parte direita do grupo escolar, restava uma parte de terra, que era usada como área de recreação dos guris da escola, ainda não era cercada e se avizinhava do Aprendizado, esse prédio que agora é do SENAI, no centro desse terreno, uma extensão pequena de terra batida.
Cavamos um buraco e marcamos um círculo em volta, uns 12 meninos e suas bolinhas à ganha, alguns carregavam as bolinhas, alguns eram donos das bolinhas, os outros eram meros torcedores ou arranjadores de confusão.
O Spock era o campeão do 14, o meu pavilhão, o Miguel representava o 13, eu era o assistente do Spock e o Avelino vinha com o Miguel, porque bolinha de gude era um patrimônio e, não se sai por ai, portanto riqueza, sem proteção.
Sabe-se que o Spock era debochado, quando fazia a limpa numa vítima, costumava fazer o ritual da vitória que consistia em cuspir nas mãos, jogar as bolinhas ao alto e depois vinha um gesto obsceno.
O Miguel se sentiu humilhado, perdera toda a sua riqueza e aquele esquisito ainda ria dele, partiu pro pau, a missão do carregador era, em caso de briga, entrar pro lado do chefe e eu entrei também na briga, o Avelino fez o mesmo, os outros meninos ficaram a atiçar.
Veio lá do Aprendizado, o Zabé, entrou no meio da briga principal, segurou os dois e sem dizer palavras e, deu um sorriso.
Até pode ser, que tenha falado alguma coisa, mas todos aqueles meninos que na época tinham uns 10 anos, de vergonha, saíram, cada um para o seu lado.
E cresci, sempre a ver o amigo em seu caminhar sereno e a cumprimentá-lo em qualquer lugar:
_Arrê Zabé. Como se o sorriso desse anjo completasse o dia.…Zabé era um apelido que ele não gostava, então ele me corrigia:
_Zabé não, Carlos Alberto.
Anos mais tarde, vieram os anos de chumbo, o mundo mostrou-nos sua verdadeira face e nos revoltamos e, como se a vida se mostrasse madrasta, gritou o revoltado Viana:
_. Nesse mundo não existe uma pessoa que não tenha má índole e desafio a quem me diga o contrário.
Estávamos todos em frente do pavilhão 22 e tínhamos todos 14 anos.
Fez-se um silencio a turma não sabia o que dizer, ele se sentia bem em ganhar uma contenda e, já abria o riso irônico de vencedor.
Muito tranquilo, esperei que ele saboreasse a vitória, ao cabo de uns segundos fuzilei:
_E o que você me diz do Zabé?
A turma toda visualizou o Zabé em suas mentes e se sentiu aliviada, como se o mundo estivesse salvo.
Mas, o Viana não se deixava vencer assim fácil, depois de pensar bem e coçar a cabeleira, disse:
_Desculpa, eu falava de gente de carne e osso, o neguinho Zabé não existe.