quinta-feira, 27 de abril de 2017

Rebola Sebastião, rebola.


  É um fato que o Sebastião do 14 morreu... Modelou o corpo, pôs peruca, trocou o sexo e nasceu “Lene Summer”, uma mulata que fazia shows e morava do Edifício Copan.
  Conheci-o, ainda na Casa de Infância do Menino Jesus, ambos tínhamos quatro anos, e para quem acha que a convivência influencia na opção sexual, garanto que não, ele sempre foi assim, um menino com alma de menina e não sofria por conta disso, criança não tem preconceito e, as freiras não viam nisso, uma falha de caráter, portanto, cresceu assim. 
  Caçula de uma família que já tinha quatro filhas, o pai com idade avançada e viúvo, resolveu interna-lo num colégio, na esperança que ele virasse homem, do pai, que era palmeirense roxo, herdou o gosto pelo futebol e virou goleiro, mas torcia mesmo para o Santos.
   _Por que o Santos, Sebastião? Perguntavam os outros meninos.
   _São muito mais lindos, os crioulos da Vila Belmiro. 
  Jeito de quem não veio ao mundo a passeio, ria com facilidade, em dia de visita, uma de suas irmãs vinha visita-lo com roupas brancas e turbante, como é habito de praticantes da umbanda, ele se aproveitava bem disso, dizia que se o aborrecessem, faria uma mandinga e já era... 
  Crianças criadas no rigor do catolicismo morrem de medo de magia, ninguém ousava discutir com ele. 
  No último ano neste colégio, tive meu momento de glória, cobrei o pênalti que levou meu time ao título e não vi a bola alcançar as redes, na minha mente ficou o goleiro se esticando no canto, quase rente à trave, quase que ele pega a bola. 
  Na Casa de Infância, haviam 2 grandes goleiros, o outro era o Valdir Lustosa. 
  Quase chegando o dia da apresentação do nosso show no Educandário Dom Duarte, a madre Dolores nos mostrou a roupa que usaríamos na ocasião, no alto dos meus nove anos, dono pleno da minha vontade, disse à religiosa:
   _Madre, eu respeito e amo a senhora com todo o meu coração, mas, por nada e por ninguém nesse mundo, eu subirei num palco, para cantar e dançar vestido em meias calças.
  Fui enfático, quando terminei de falar, o Gilberto e o Fabiano pularam para o meu lado e, fizeram deles, as minhas palavras. 
  Ante o olhar triste da freira, o Sebastião olhou-me com o seu olhar de cólera, juntou as duas mãos nas ancas, bateu o pé direito no chão e com um ar de desprezo, fuzilou:
  _Ai Nilton... Como você é grosso.
  E garantiu à freira que o show continuaria, fomos substituídos pelo Paulo Régis e o Hélio e assim, deu-se a catástrofe da festa da Liga de 1976.
  Quando nos mudamos para o Educa, o Sebastião estava gozando as férias e não chegou conosco na Kombi do seu Paulo, chegou umas semanas depois, trazido pela irmã.
  Quando disseram que havia chegado o “NOVÂO”, fui lá para, se fosse o caso, defender o amigo.
  Logo que ele se despediu da irmã, foi à rouparia, o ajudante da dona Ana era o Téquinha, eu e os outros meninos ficamos perto, quando me viu o Sebastião sorriu, o Téquinha estava com as roupas marcadas com o número, o irônico 124, que ele adotaria dali em diante, entregou-lhe o monte de roupa, o novato agradeceu, saiu rebolando e sorrindo, vendo isso o Téquinha não resistiu e gritou:
  _. Ei novão, você é viado?
  Parou o Sebastião e voltou-se, na direção do ajudante:
  _. Sou sim, está perguntando por quê? Você também é?
  Contrariado, o amigo, vendo que o novato vinha em sua direção, não teve alternativas, a não ser a de correr, os meninos que acabaram de chegar, queriam saber o que havia acontecido, quando souberam, nos acompanharam nas gargalhadas, assim foi o primeiro dia do Sebastião, o esperto que queria fazer a piada, acabou virando a piada.
  E então, vem uma coisa contraditória que, acontece em internatos, tem graça fazer piadas e galhofas com quem não é homossexual, se xingar um menino de viadinho e ele não é, tem-se no mesmo instante, uma discussão, que pode se levar a uma briga, mas, quando o menino é assumidamente, perde-se o clima da dúvida, não tem graça e, ninguém fala mais nisso, com o passar do tempo, o Sebastião virou o ajudante da dona Ana, que o tratava com atenção diferenciada, o próprio chefe Odilon sequer brigava com ele, posto que, ele ainda era a babá de seus filhos, sequer pegava na enxada, feito os outros meninos, quase não saía dos arredores do pavilhão.
•  ... E vai a vida no seu caminhar contínuo e gradual, meninos crescendo igualmente, nas suas diferenças.
  Por conta da fama do futebol dos internos, logo que fomos estudar no Attiê, uns meninos da Rua Santa Bárbara, me convidaram a levar um time de internos para um desafio, valendo Tubaína.
  O campo era, na verdade, um terreno descampado perto da favela do Uirapuru, quase ao lado do campo do Palmeirinhas, levantaram duas traves de madeira e, no espaço, só cabiam seis de cada lado, cinco na linha e o goleiro.
  Topei na hora, chamei o Feliz e o Viana, meus parceiros e fui ao pavilhão 12 para recrutar o Zé Almir e o Fabiano, o nosso goleiro era o Valdir Lustosa do 24.
  Começou assim o time profissional “do Nilton”, o time não era meu de fato, e como não escolhemos um nome paro time, os outros meninos, quando eram interrogados acerca do que iam fazer, respondiam:
  _Vou jogar no time do Nilton.
  Profissional, porque jogávamos por Tubaína, nessa brincadeira, corremos e jogamos em vários campinhos da região e ganhamos o respeito dos moleques da área, representando os internos.
  Um belo dia, me apareceu no 14, uma dupla de guris mal encarados que moravam no Taboão da Serra, queriam marcar um festival num campinho que ficava atrás do Cenáculo, a tomba seria 10 cruzeiros, meu sexto sentido me avisou que havia coisa errada, chamei o Viana e falei para ele, como meu melhor amigo, ele sabia que nunca falhava minha intuição, mesmo assim, ele fechou com os meninos, aquele neguinho gostava de brigar mesmo.
  Tinha que arrumar o dinheiro da tomba, meninos normais pedem dinheiro para os pais, eu não o tinha, a relação mais aproximada que eu tinha de paternidade era com o seu Tinoco.
  Desci à administração e joguei a conversa no seu Tinoco, o velho esperneou, disse poucas e boas, xingou e amaldiçoou, meteu a mão no bolsinho de dentro do colete e jogou 30 cruzeiros na mesa:
  _Some daqui, menininho cacete.
  No sábado, véspera do jogo soube que o Valdir havia trincado o pulso, bateu o desespero, corremos o Educa todo e não havia um goleiro, sequer um miserável de um goleiro, num raio de 300 quilômetros quadrados, resolvi que, ou eu ou o Viana nos revezaríamos no gol, fomos ao 12 e chamamos o Lourival para completar a linha.
  Reunimos a turma na piscina e subimos a ladeira da jaqueira, sem o Valdir estávamos sem confiança, logo num jogo à dinheiro, lamentávamos o azar e eu, com a sensação de perigo eminente, com a aproximação do perigo, o Viana esfregava as mãos.
  Na estrada, ouvimos alguém cantando no pavilhão 14, olhamos para saber de onde vinha a música e avistamos o Sebastião varrendo a área de terra batida, tinha uma vassoura feita de galhos de bambu e cantava com euforia:
  _Menina, eu sou é homem, menina eu sou é homem...
  Não pudemos evitar a gargalhada, para rir eu fechei os olhos e assim, a cena do pênalti me voltou como um filme:
  _Ô molecada, o Bastião é goleiro.
  Não pararam de rir os guris, depois que falei, riram mais ainda, perguntei então se alguém estava a fim de ser goleiro, cessaram-se os risos, rápida reunião, resolveu-se que, ter um goleiro seria bom, mas, a postura do Sebastião iria nos desmoralizar.
  Fomos, eu e o Viana falar com ele, ele topou na hora, o Viana disse que ele teria que se postar feito homem.
  E, uma prévia aula de masculinidade foi ministrada.
  No caminho que levava ao Taboão, passamos no Cenáculo e comemos as bolachas das freiras, com era do nosso costume e, fomos procurar o campinho, o Sebastião tentava se postar feito homem e imitava o nosso andar, caminhava uns metros com o andar firme e rebolava outros metros.
  O Viana que vinha atrás corrigia lhe a postura:
  _Pare de rebolar miserável, pare de rebolar seu viado.
  O Sebastião andava feito nós por alguns metros e tornava a rebolar e o Viana tornava a gritar:
  _Pare de rebolar moleque. O resto de nós ria, todos, com exceção do Viana, sabíamos que ali não haveria conversão.
  Chegamos ao campinho, os outros três times já nos esperavam, casamos o dinheiro e fizemos o sorteio, ganhamos os dois jogos e fomos para final, ganhamos a final nas cobranças de penal, erramos três chutes e o Sebastião defendeu quatro penaltes.
  Na hora de pegar o dinheiro da tomba, o menino que fez às vezes de mesário disse que não ia dar o dinheiro, enfiou-o no bolso e desafiou quem fosse macho para tirar o dinheiro de lá, nesse instante os meninos dos três times se emparelharam todos contra nós. 
  Mesmo assim o Viana deu-lhe um safanão e lhe tirou o dinheiro do bolso, ficamos de frente para eles, além do futebol, tínhamos a coragem dos internos do Educa.
  Não se deram conta que o Sebastião estava atrás deles, sem aviso, deu uma rasteira que caíram três, assentou o pé que usou na rasteira e levantou o outro, esse acertou outros três no rosto, quando fomos perceber o que havia acontecido, havia seis guris no chão e o Sebastião com o dorso abaixado, os braços abertos numa ginga da mais perfeita capoeira, os meninos que caíram e os que ficaram em pé correram.
  Ficamos olhando para o goleiro por um tempo, admirados e confusos, quando ele teve certeza que só havia sobrado nós no campinho, relaxou e disse:
  _Ai, esse negócio de ser homem me cansa, vamos embora que quebrei uma unha.
  Na volta, a estrada parecia mais longa, fomos em silêncio tentando entender aquilo tudo, perto do parque das Hortênsias o Viana quebrou o silêncio:
  _Rebola Sebastião, rebola mesmo.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Ao mestre, com carinho


Em 1980, eu já estudava no E.E.P. G Alcides da Costa Vidigal, fui transferido por organizar uma pequena greve estudantil, no E.E.P. G Luís Elias Attiê (por conta de questionar a legitimidade do então governador Maluf), mas isso, é outra história.
O que seria um castigo acabou me ajudando a ampliar os horizontes (geográfica e socialmente) e, ser o único preto, numa escola com a maioria branca foi muito bom, foi como chegar à selva, no alto da cadeia alimentar, no primeiro dia de aula, pra causar uma ótima impressão, apareci com um corte moicano, um acinte, aos olhos desacostumados dos alunos da escola do Jardim Peri-Peri, pude perceber que os mais cabulosos da escola ficaram com medo... E murmuravam: 
_ Além de preto, o cara é da F.E.B.E.M.
 Mas, foi só pressão, aos poucos, fui mostrando que era do bem, fiquei amigo de todos e, até hoje, conservo algumas dessas amizades. 
E, não me aconteceu coisa pior, porque o Padre Paulo me protegeu... 
O carimbo de subversivo no histórico escolar e a recomendação para eu não participar de qualquer atividade de cunho político, saiu bem barato.  
Foi por essa época, que todos os grandes foram transferidos para o lar 22, isso foi a melhor coisa que poderia ter acontecido, todos os doidos, de todos os pavilhões, juntos.Temia-se que se começasse uma guerra, tinha o precedente dos últimos dias da administração da Dona Camila, quando vários internos dos pavilhões 12, 13 14 e 17 invadiram e depredaram a residência dela, para resgatar o Luís Antônio, que havia sido levado (algemado) pelo marido dela, um ex-policial, de maus bofes.
O bando já se preparava para invadir a residência, quando a polícia chegou, ninguém recuou e só saiu depois que o amigo foi libertado.
Daí, seguiu-se vários desinternamentos (os cabeças da manifestação) e a gradativa saída da equipe administrativa.
Pelo fato de eu ter me saído muito bem na nova escola, o colégio passou a mandar mais internos para estudar lá, logo, o Jardim Peri-Peri passou a ser frequentado pelos "neguinhos do Educa". 
Entenda-se que, quando eu escrevo neguinho, não estou falando de raça ou cor da pele, nessa época, muito branco se chamava de nêgo... 
Passava laquê no cabelo e moldava um Black Power, andavam no meio dos pretos, como se pretos fossem, era muito engraçado, vê-los apavorados, quando a chuva ameaçava de cair.
No movimento, a coisa cresceu, a região do Butantã ficou estreita, já não podia satisfazer a nossa fome de domínio, passamos a frequentar os bailes de Pinheiros, mais amizades se juntaram ao grupo e passamos a frequentar todas as casas que tocavam o som Black, em Sampa, em Osasco e Santo Amaro.
Estávamos em plena ditadura, com sede de mudanças, o sonho de mudar o país ficou pra depois, o jovem da periferia queria mudar a sua própria condição, ser respeitado como jovem, essa era a bandeira.
Usando uma postura racista, que pregava o ódio aos brancos, alguns DJs e produtores de bailes, se destacaram nesse tempo, mais tarde se descobriu a verdadeiras intenções (muitos deles, foram eleitos para cargos públicos) eram perigosas às palavras que eles pregavam, a essa altura a tensão aumentou nas ruas, se um branco andasse numa calçada e vinha um preto em sua direção, em pânico, mudava de calçada. Alguns amigos saíam para passear e diziam:
_Vamos ali, fazer uns boys.
Um dia, o Valdevino e o Viana, que sabiam da minha crescente disposição para as brigas, me convidaram pra esse "rolê", disse a eles que declinava do convite, não achava certo, essa coisa de bater em alguém pela diferença da sua cor ou postura social e, como se eles quisessem mais explicações, lembrei-lhes que meu pai era branco, chovia na Rua Paes Leme, saímos, os três abraçados, nunca mais, eles fizeram tal coisa.
No Palmeiras, uma equipe que se dizia o máximo da produção musical, apresentaria um show do Gilberto Gil, na época ele lançava a música Palco, que tinha um arranjo bem Funk.
O que falta, nas pessoas que só pensam em dinheiro, é a visão.
 A pessoa mais mal informada saberia que, o grosso das pessoas que gostam do Gil, são pessoas desprovidas de racismo e jamais o contrataria para cantar numa casa de exclusividade racial.
Sabendo que iria dar o que falar, cheguei muito cedo, a música ecoava na pista... One Way, Bráss Construction e tome Funk na moçada, a certa altura, começou a entrar os fãs do Gil, gente de trancinhas, jeans desbotados e chinelões... Na maioria, gente de cor clara.
E, por não serem afeitos à música ambiente, andaram entre os dançantes, alheios a tudo, tudo aquilo não lhes dizia nada... 
E, enquanto os blacks dançavam suas coreografias ensaiadas, passaram a se sentar na pista, pra esperar o Gil chegar.
Todos acharam estranho, tudo aquilo... tic, tac...podia-se ouvir a bomba relógio no ar, as rodinhas de dança se comprimiam, não havia espaço na pista...tic, tac.
Indignado, o DJ desligou a música, um breve silencio ameaçador, ele abriu o microfone e passou a reclamar da postura das pessoas que estavam sentadas na pista, disse-lhes que aquele era um lugar sagrado para a prática da dança, o que elas faziam era desrespeitar o ambiente e não se esqueceu de classifica-las de "gente branca”.
Ainda que se fizesse um silencio sombrio na plateia, eu ainda ouvia... tic, tac, tic, tac...
O que o DJ não sabia, é que o Gil já estava em seu camarim, viu a situação e entrou no palco, antes que as palavras do DJ alcançassem seus objetivos, tomou-lhe o microfone e disse-nos:
Vocês estão vendo o que estamos virando? Estamos virando "eles”... depois disso vamos fazer o que?...
E, seguiram-se 10 minutos de inteligência contra a boçalidade das pessoas que discriminam outras pessoas, todos a escutar o Gil em silencio, ao final da aula, seguiu-se um silencio perturbador, havia cessado o tic, tac... As pessoas de cor preta passaram a se sentar na pista e todos aplaudiram, mas não aplaudiram o palestrante, aplaudiam as pessoas.

Guardadas as devidas proporções




Diz a lenda que, Muhammad Ali, ao derrotar o tanque George Foreman, cumpriu uma velha profecia africana, no exato momento em que ele ergue os braços ao céu, com o derrotado a seus pés, pingos de chuva se precipitam e, já não chovia no Zaire havia 13 anos, no estádio, a torcida comemorava a vitória do herói e a chuva tão esperada.
Então Muhammad Ali, efetivamente fez chover, isso o povo do Zaire vai afirmar com certeza, passará centenas de anos e o fato não será esquecido.
Bom, aquele negão era malandro e, sendo ele à época, a pessoa mais popular do planeta, posto que, andava cercado de reis, empresários, presidentes e Beatles, não é muito difícil imaginar que tivesse amigos na NASA, o que explica o fato de ele ter marcado a luta para aquele lugar da África e, como era doutrinador, deu o golpe fatal, segundos antes do tempo previsto para a chuva.
Mas tudo bem, se diz a lenda que Ali fez chover, eu aceito, essa é uma linda história.
O Valdevino não era ídolo no planeta, só era conhecido nas imediações do Educandário Dom Duarte e arredores, mas, guardada as devidas proporções, era o nosso ídolo e, numa tarde de inverno fechado, fez o sol brilhar.
O ano era 1978 e todos que se lembram desse ano, ão de se lembrar de que foi um inverno muito rigoroso, por conta disso, as aulas no Attiê foram suspensas.
Cuidava do meu time e fui ter com o Mello, que morava na Santa Barbara, perto do final do João XXIII, querer jogar eu não queria, mas já havia marcado semanas antes e tinha que cumprir o combinado, não se esqueça de que eu era um guri chato.
Quando cheguei à casa do Mello, encontrei-o cheio de dedos e com medo de me dizer o que havia acontecido, apertei-o e ele me disse que um tal de Daniel disse que o jogo só seria realizado se ele participasse.
O Daniel tinha o apelido de Maconha, além de ser maior de idade, andava na famosa gangue do Pivete, o ladrão mais temido da região.
Tendo a liberdade de desmarcar o jogo, não o fiz, julguei que aquilo fosse desaforo... é, eu disse que era um guri chato.
Empenhei a palavra e fui ter com os amigos, encontrei o Viana, o Feliz e o Fabiano, que conversavam amenidades na bifurcação entre o 12 e o 14. Contei-lhes o ocorrido e disse que ia dar um jeito na situação, nesse instante, sai do bananal do 12 o Lourival e uma luz me veio à mente:
- Ô Lourival, o Valdevino está no pavilhão?
Ele acenou que sim, puxei-o pela camisa e fomos pelo fundo do 12, os dois pastores alemães vieram em minha direção e o Lourival os acalmou feito isso gritou o nome do amigo.
O Valdevino ainda não fazia parte do meu círculo de amizades, expliquei-lhe a situação com muita calma, ao fim da minha explicação fiz o pedido e, é claro que ele aceitou, antes tinha que se recuperar da lesão e me mostrou o tornozelo direito inchado.
  Ah, tenho que citar que, o Valdevino era chamado de "O exército de um homem só".
Nesse ponto, vou dar uma pausa na narrativa e explicar um fenômeno peculiar do Educa, dá-se a isso o nome de "fominha", é aquele jogador que, mesmo em coma, não sai de campo.
Todos os internos do Educandário Dom Duarte eram fominhas, todos, sem exceções... os craques, eram ainda mais. Era uma segunda-feira, eu e o resto do time acendemos velas na intenção da recuperação do Valdevino. O amigo tinha 15 anos, a nossa faixa de idade era 11 e 12 anos, o jogo seria às 16:00 horas, quando saímos, ele ainda estava na gráfica, na Eiras Garcia o vento gelado cortava a alma, tremíamos de frio e de medo de que o Valdevino não viesse para nos ajudar.
Quando chegamos, o adversário já estava em campo, se aqueciam para evitar o frio, um terreno baldio na Rua Santa Barbara seria o cenário da contenda, entramos tremendo, feito ovelhas que chegam ao matadouro, além do Daniel, havia outro mais velho no time deles.
Juntei o time e disse:
- Vamos segurar até o Valdevino chegar... se ele chegar.
As nuvens negras se mostravam no céu, uma fina garoa se precipitava e o vento gelado a espalhava entreguei o nosso dinheiro para o Mello e ele me mostrou o dinheiro deles.
O jogo começou e os dois mais velhos dominavam, ficamos na defesa, ainda que, a diferença de corpo e de idade deixasse a situação muito desigual, fomos valentes e, no primeiro tempo eles só marcaram dois gols.
Intervalo, a vizinhança toda estava presente e riam, pela primeira vez em suas vidas, estavam vendo um time do Educa sendo arrasado, olhamos em volta e toda a extensão do muro que cercava o terreno, bem como as lajes e os barrancos da vizinhança estava tomada de torcedores hostis.
O juiz apitou e a bola era nossa, a bola foi tocada pra mim, eu a recolhi e a levei pra defesa, repentinamente o sol rasgou as nuvens negras e se mostrou, olhei pra entrada e vi o Valdevino entrando no terreno, chutei a bola pra fora e pedi tempo, jogo parado, quando passei pelo Daniel e o outro mais velho, vi o pânico nos olhos deles, a torcida, que conhecia o amigo silenciou, tirei a minha camisa e joguei pro Valdevino, o sol só durou meia hora, o tempo exato que duraria a segunda etapa, inacreditavelmente, o Valdevino fez sete gols, sob a vigília atenta do sol.
Quando acabou o jogo, saiu correndo, disse que tinha uma partida de futebol de salão na quadra do colégio Etchegoyen.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Fazendo história.



É verdade que, o que unia a todos os internos sempre foi o futebol, quando o Grêmio Educandário entrava em campo, todos esqueciam suas diferenças territoriais e seus times do coração e, torciam pelo time preto, que uniforme lindo.
Mas num belo dia, acabou-se o time.
  E passamos a nos reunir nos bailes ou, nos jogos de futebol, nos jogos era complicado, posto que, nem todos torcíamos para o mesmo time.
  . Então, numa tarde de muito sol, dispensamos a matinê de Pinheiros e fomos assistir ao clássico no Morumbi, na época, o Santos era a segunda maior torcida de. Sampa e, eles tinham "os meninos da vila"(Juari, João Paulo e sei lá quem mais) e.…o Corinthians, sempre forte.
  Éramos, no total, uns vinte menores, meio a meio, entre corintianos e santistas e, por sermos todos amigos, saímos juntos do Educandário Dom Duarte, na saída, pegamos no pé do seu Felipe(o porteiro), que era São Paulino, entramos no buzão na maior algazarra, feito uma torcida só, primeiro gritavam os maloqueiros, depois as viuvinhas, para não ter que ir até a Paineira e pagar outra condução, pagar é só força de expressão, descemos na Raposo Tavares, no posto Batalha, em frente à Previdência, ali tinha um acesso prum escadão, que, entre as arvores levava direto pra avenida Elizeu de Almeida, íamos bagunçando o caminho todo, jogando pedras no gatos, tocando as campainhas das mansões e arrancando os retrovisores dos carros e, é lógico, entoando cantos de guerra, cada turma do seu time.
  Na avenida Elizeu de Almeida, que ainda não era canalizada, havia um córrego largo, para atravessa-lo, tinha-se que, passar por uma ponte feita de toras de madeira.
  Esse era o ponto que haveria a separação das torcidas, é provável que só nos veríamos no dia seguinte, O Valdevino gritou que os Santistas tinham o direito de sair na frente, o Zé Almir questionou esse direito, eu apoiei o Zé, o Lourival apoiou o Santista...Bafafá formado, então decidimos da forma mais democrática do mundo, o Valdevino pediu par e o Zé Almir pediu ímpar, perdemos, o Corintiano chamou uma melhor de 3, perdemos de novo, os Santistas sairiam primeiro, os corintianos esperariam um tempo, ficamos ali, uns 5 minutos e saímos.
  Ao chegarmos na ponte, vimos a coisa mais surreal de nossas vidas.
  A ponte de toras havia cedido, com muita gente atravessando ao mesmo tempo, ela cedeu, justo na hora que os amigos a atravessaram, em seu leito haviam centenas de torcedores em meio à lama, não tinha branco e preto ou preto e banco, todos eram de uma só cor, marrom.
  . Nesse dia o Timão ganhou de 2x0, dois gols do Palhinha, ficamos um mês zoando a cara dos Santistas.

Sem final feliz.


Quem acompanha as minhas narrativas, vai logo identificar o Valdevino como um bom amigo, em quatro, ou mais postagem ele aparece em primeiro plano, deveras.
Foi um amigo mais velho que eu admirava e acabou virando um amigo do peito.
Também notará o leitor que, em várias aventuras o Lourival dá o ar de sua graça, cito a postagem "Rebola Sebastião, rebola" e outras.
Os dois moravam no pavilhão 12, a história dos dois era parecida com a história de muitos dos meninos que foram abandonados e conduzidos ao Instituto Sampaio Viana, de lá seguiram uma triagem em alguma das várias dependências da FEBEM e posteriormente mandados ao Educandário Dom Duarte, em tempos distintos, feito a história de milhares de crianças.
O Valdevino tinha uns três anos a mais da minha idade e o Lourival, uns meses mais novo que eu.
Ao primeiro, Deus deu o dom da habilidade nos esportes, ao segundo coube à fidelidade e não se apartavam nunca, os dois.
O Lourival era para o Valdevino uma espécie de Sancho Pança, um cavalariço fiel, qualquer um que os via, tinha a certeza que aquela amizade vinha de outras encarnações.
Juntos no Educa, viveram suas vidas e cresceram, como manda a natureza humana, cada qual com seus jeitos e modos.
Em épocas de saída, já adultos, foram pras suas vidas, cada qual pro seu lado.
O Lourival formou-se e constituiu família e bateu-lhe a curiosidade de saber da própria história, de posse de seus documentos procedeu a uma investigação por conta própria.
Descobriu que a mulher que o havia deixado aos cuidados do Sampaio Viana, já havia feito a mesma coisa anos antes, vasculhou tudo e descobriu que o seu melhor amigo do colégio era, na verdade, seu irmão mais velho.
Porém, já se fazia tarde demais, por esses tempos o Valdevino já havia perdido a alma e dependente das drogas, havia virado um andarilho no centro de São Paulo, meses depois partiu dessa vida.

sábado, 22 de abril de 2017

Amigos para sempre.




Essa é, como todas as outras, biográfica, no entanto ela transcende o limite do tempo, pois, começa no ano de 1980 e termina em 2007, portanto 27 depois.
Nunca, em tempo algum, tive amigos feito os que tive no lar 14 do Educandário Dom Duarte.
  Claro que, no decorrer da minha vida tive umas centenas de amigos, tenho a natureza de fazer amigos com facilidade, mas igual aqueles, nunca mais.
  E então, ao final daquela partida contra o 13, em 1980, foi como se houvessem retirado a cereja do nosso bolo, simbolicamente, aquele título selaria com chave de ouro a vida daqueles meninos.
  Se aquele dia marcou o apogeu daquela turma, também marcou o início do fim de uma era, aos poucos, os amigos foram saindo do Educa e, aquela turma foi diminuindo, até restar só eu.
  Nos caprichos da vida, ingressei na carreira do esporte e, uma dúvida cresceu dentro de mim: Será que se eu estivesse do lado de fora do campo, a nossa sorte teria sido melhor???
  Como saber disso com certeza? Só se existisse uma máquina do tempo e, a gente poderia voltar no tempo, para resolver aquilo tudo.
  Mas, pode o leitor confiar em mim, sem usar os milagres da tecnologia, eu consertei tudo.
  Nunca escondi que a minha escalada esportiva se deveu aos ensinamentos que tive no Educa, sentado na escada do campão, apaixonado pelo futebol do Grêmio Educandário, fui aprendendo os segredos do esporte, tendo mestres como os professores Aguirre, Pazzeli e Claudinei, me destaquei e escrevi a minha trajetória como treinador...num sentido mais amplo, tudo o que ensinei aos meus alunos, aprendi no Educa.
  Em 2007 haveria a terceira edição do Cingabol, uma competição com 24 equipes de conjuntos habitacionais das periferias de São Paulo e, me veio uma ideia à cabeça:
  Que tal tirar aquela velha dúvida???
  E, tendo um time com 3 anos de treino, decidi remontar aquele time do 14, ao meu filho caberia o meu papel, os outros jogadores do Dínamo seriam os outros internos, meus grandes amigos.
  Já que a tática do nosso time antigo foi criada mesmo por mim, era ela mesmo que eu usaria.
  Não precisou de muito esforço, o time do meu filho tinha um nível de amizade que se aproximava exatamente ao que tínhamos, eu e os moleques do 14.
  Um pouco antes de começar o campeonato, numa partida amistosa, a bola não estava em jogo, o trio de meio campo ficou a conversar e, eu sabia que não estavam falando nada a respeito do jogo, por uns instantes eu pude ver uma cena do passado, eu, o Viana e o Feliz, descontraídos, falando besteiras.
  Uma coisa só, era diferente nesse time, diferente de mim, que era esforçado, meu filho era craque.
  E, eu tinha mesmo razão, do lado de fora, pude consertar todas as falhas do time.
27 anos mais tarde, meu filho, com 12 anos de idade, ergueu o troféu de campeão invicto, para lavar a alma dos meninos do pavilhão 14.