quarta-feira, 10 de maio de 2017

O caso dos 12 cavalos.




Tinham os internos do Educandário Dom Duarte, oriundos da Casa da Infância do Menino Jesus, o habito se reunirem, independentemente de estarem em pavilhões (geograficamente) distantes. Era a convivência da primeira infância e a saudade das freiras, que os mantinham juntos, posto que, foi lá que começaram as amizades. Em ocasiões específicas, como domingos de visitas, quando a atenção dos administradores e funcionários estava desviada, ou nas férias, quando o efetivo de moradores se reduzia a menos da metade, que eles se encontravam e saiam pelo espaço do Educandário em aventuras.
Então, era comum que eu, que morava no 14, que se localizava no extremo sul, encontrasse com regularidade com (por exemplo) os irmãos Lustosa, que moravam no 24 (extremo leste), por vezes essas aventuras chegavam até a caixa d’água (João XXIII) ou no Pirajuçara. Por vezes, essas andanças acabaram em tragédias, cito o caso do Alaor, que, brincando com combustível, acabou morrendo carbonizado no 19, ou o caso do Ratinho e o Xodó, ambos do 21, que jogaram BHC na caixa de água, que abastecia o colégio, ou a ocasião que invadimos a escola Luiz Elias Attiê, ainda em obra. Num dia de domingo, como estávamos com a tarde livre, eu, o Fabiano (12), o Donizete (12), o outro Donizete (19), os Paulo e Valdir Lustosa (24), o Celso (13), fomos ao pomar, que ficava atrás do Cenáculo, que era mais conhecido como lar 25, vizinho da igreja, que ficava ao lado do 18. Costumávamos colher mexericas e jabuticabas, por lá e depois tínhamos que correr, já que o vigia costumava receber os visitantes a tiros de sal, ele costumava esconder-se, enquanto recolhíamos as frutas e só aparecia quando já havíamos enchido nossas camisas pulôver, aí ele saía, gritando palavrões e atirando.
Terror puro, correr carregando uns sete ou 8 quilos, com um maluco atirando em você, mas, ele não corria muito e sempre dava para escapar, ainda tenho na pele essas marcas.
Descemos pela mata que chegava à olaria e subimos em direção ao 14, no caminho que dava na estrada do 18, havia o campo e acima, o que chamávamos de bosque, esse era o limite territorial do pavilhão, do lado esquerdo uma grande extensão de terra, que havia sido a horta do japonês, mas, já tinha dado tudo que tinha de dar e estava já abandonada, ali crescia um alto capim e, uns cavalos pastavam ali, era o local ideal para matar o tempo. Às vezes empinávamos pipas, mas a maioria das vezes, ficávamos brincando e montando os cavalos, foi ali que aprendemos a montar, demos até nomes para os cavalos, o meu se chamava Odilon e era malhado, era o mais calmo de todos, que não sou bobo.
O fato é que, numa bela tarde de primavera, apareceu na estrada, um senhor bem vestido, disse ser o dono dos cavalos, muito educado, tinha um Corcel II marrom, disse que ia dar um dinheirinho, caso a gente ajudasse na remoção dos animais, na hora topamos.
Na estrada, um segundo homem estacionou um caminhão, desses que transportam cargas vivas, com a esteira para subir na carroceria. Buscamos os animais, que se espalhavam pelo terreno e, um a um, levamos para o caminhão, não gastamos mais de meia hora. Pegamos o dinheiro e fui para o mercado Paraná, gasta-lo, eu comprei três pacotes de bolacha, um pote de Amendocrem e um desodorante de limão.
Está rindo do que? Eu tinha 11 anos, isso foi uma compra de responsa. Quando já anoitecia, dispersamos a turma, orgulhosos de um dia legal. Eu já dormia á muitos, quando me acordaram aos gritos:
_. Tem uma viatura da polícia, estão te chamando. Assustado e confuso, as mãos no cordão que segurava o meu pijama, fui para a área do pavilhão, uma Veraneio preta e vermelha estava estacionada lá, abriram a parte de trás e eu pude ver o Paulo e o Fabiano, mas tive a impressão que os outros amigos estavam todos amontoados lá dentro, pensei que iam me jogar lá também, mandaram que eu me sentasse no banco de madeira, bem ao lado do tanque, sentei-me. Só então, fui perceber que conhecia os policiais, sempre que eles passavam pelo milharal pediam umas espigas e eu dava, uma vez recolhemos um saco, desses de 60 litros, cheios de milho, então, eles já sabiam meu nome:
_Nilton, Conta para a gente como foi o seu dia, todo mundo se sentou para ouvir. Comecei a história com riqueza de detalhes, desde o apanhar das frutas, que isso eu sei fazer desde muito pequeno... tudo, do jeito que acontecera e todos prestando atenção.
Quando terminei a narrativa todos riram, riram tão alto que os meninos, de dentro do camburão esticaram-se para saber a boa.
Um dos policiais falou ao rádio e outro foi tirar os meninos da traseira e conduzi-los aos bancos do carro, iriam leva-lo, cada um a seus respectivos pavilhões
Quando se despediram, ainda riam e depois disso, sempre que nos encontravam, faziam piadas de cavalos.
Nunca soubemos quem de fato era o dono dos cavalos.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Meu melhor amigo (Final)




  Já que essa é uma quarta parte de uma história, não vou me ater em prefácios ou considerações desnecessárias, posto que, em um capitulo eu poderia ter escrito tudo.
  Não, não poderia e, você vai entender o motivo da minha demora.
  Feito isso então, convido o leitor a uma história das que eu não gosto de escrever, uma história sem final feliz.
  Não era muito comum de acontecer, mas em algumas tardes fazíamos atividades numa salinha que ficava no fundo da quadra e era o subsolo do teatro, as atividades eram mais recreativas que, propriamente lúdicas.
  Como isso se dava em horário de recreio, ao invés de subirmos pro pátio, brincávamos na quadra.
  Brincar na quadra sem bola exigia muita criatividade, alguém sugeriu esconde-esconde e determinou que, se alguém subisse pra rampa não valeria.
  Amigos que éramos, assim que o Hélio virou-se pra bater cara na parede da sala de jogos, corremos juntos, da portaria para o refeitório, a rampa faz um perfeito angulo de 90 graus, nessa inclinação ficou um vão, nesse vão foi construída uma pequena sala, onde eram guardadas as ferramentas de jardinagem, revestida de madeira e a porta ficava de frente com o portão vidrado que dava acesso à lavanderia. Esse depósito estava na altura da quadra e um pequeno muro separava o jardim.
  . Corremos juntos e, a intenção era nos esconder no jardim, era nosso costume apoiar as mãos no muro (que tinha a altura de nossas cinturas) e jogar os corpos para a frente, como se pulássemos no dorso de um cavalo. O fizemos juntos e ao mesmo tempo, o que não podíamos imaginar é que, no lado de dentro do jardim, alguém havia jogado uns cacos de garrafas quebradas.
  Ora, a primeira coisa que guri faz, pra iniciar uma corrida é se livrar do calçado, quando alcançamos o chão do outro lado, aterrissamos em cima dos cacos, a dor não foi imediata, o choro era causado pela angustia de tanto sangue, fechamos os olhos e gritamos por socorro.
  A madre Enfermeira nos atendeu, lavou-nos os pés e o seu Paulo já nos esperava pra levar ao hospital.
  Meus cortes foram profundos e sempre tive a cicatrização rápida, enquanto eu era atendido num leito simples, o Fernandinho foi levado pra outra sala, um time de médicos e enfermeiras o acompanhava, em coisa de duas horas, o médico disse que eu estava liberado, os dois pés enfaixados, o seu Paulo trouxe uma cadeira de rodas, perguntei do amigo e ele disse que ainda havia umas radiografias a ser tirada, a madre Enfermeira ficaria com ele, notei que o seu Paulo disfarçava uma preocupação.
  Em uma semana, já haviam me retirado as faixas e eu tentava andar, apenas uma pequena dor e nada do Fernandinho, a madre Enfermeira me evitava e as outras freiras não conseguiam evitar um ar de crescente pesar, eu perguntava sobre e todas elas desconversavam.
Mais uns dias se passaram, eu já jogava bola e a turma do São Pedro foi convocada pra uma reunião, a Madre Brasil explicou que o Fernandinho ia ficar um bom tempo na enfermaria, tudo o que era dele havia sido levado pra lá, ao fim da reunião a madre disse pra eu ficar, queria falar comigo a sós. Me disse que a única pessoa que poderia visita-lo era eu, não queria ver mais ninguém.
  Levou-me à enfermaria, falou que eu deveria ser forte, imaginei o pior e quando me viu sorriu, não me pareceu tão mal assim.
  Seus pés ainda não haviam cicatrizado e era uma carne purulenta, feio de se ver.
  Desde muito pequeno, tenho a capacidade de disfarçar algumas emoções, dificilmente me assustam as coisas, na verdade assustam, só que eu não demonstro que me assustei, criei isso sozinho, pra me defender, se não me vissem sentimentos como o medo e o horror, jamais poderiam me atingir.
  Então, se aquela ferida me dava náusea, o amigo não perceberia e jamais sentiria o constrangimento de causar o horror em olhares alheios.
  Fiquei na enfermaria com o amigo e só saí na hora da janta.
  No dia seguinte a madre Márcia perguntou se eu não me importaria de dormir no leito vizinho do amigo...sem problemas e, fiquei.
  Todas as revistinhas da sala de jogos foram levadas pra nós, eu tomava café, almoçava e jantava na enfermaria, só saía em horário de aula, assim que terminava a aula, a tia Sonia subia comigo e passava as mesmas lições que passara em sala, quando não dava para fazê-lo me encarregava de passar a matéria pro amigo.
  Conversávamos muito, brincávamos e riamos muito, porém, eu via no olhar dos adultos, que a coisa não ia bem.
  Uma tarde quando eu vinha da aula, não estava na cama o amigo, disseram que ia sofrer uma cirurgia e voltaria em uns três dias, os olhos da madre Brasil estavam vermelhos e ela evitava me olhar de frente, que remédio... voltei pro pátio.
  Em três dias voltou me avisaram e quando subia as escadas, nos últimos degraus parei, sem que elas me vissem, fiquei a olhar a cena, a madre Brasil chorava copiosamente e a Enfermeira a acalmava, estavam ali, fora do hall da enfermaria, para que o paciente não percebesse a cena, dei uns passos pra trás e voltei pro começo do último lance da escada e iniciei a subida batendo os pés com força, perceberam a minha presença e ficaram em posição de sentido, dei bom dia para as irmãs.
  As duas respiraram fundo e corresponderam à saudação, já sem as lagrimas, a madre Brasil, como já era de costume, ajoelhou-se e fico da minha altura, me deu um beijo e disse:
_Seja forte, muito forte.
  Não deu pra entender, mas, fiz que houvesse entendido, levantou-se e pegou na minha mão, me levou ao quarto do Fernandinho.
  O amigo estava deitado, seus olhos tristes buscavam um ponto inexistente no raio de sol, que vinha da janela de vidro, a madre Enfermeira ficou na porta, a outra foi comigo até o pé da cama.
  Só agora, olhando de perto, vi o que fazia a infelicidade do amigo, o joelho da perna esquerda estava enfaixado e terminava ali, haviam amputado o resto da perna.
  Não me olhou o amigo, um profundo silêncio reinou no quarto, uma borboleta bateu no vidro, ainda que ela pudesse ver o ambiente do outro lado, não podia transpor a barreira, inconformada, jogou-se contra o vidro na vã tentativa de entrar.
  Nove anos eu tinha, nessa pouca idade já presenciara coisas que fariam essa cena ser banal, abri a janela, com a borboleta, uma brisa refrescante invadiu o quarto, mostrei o meu melhor sorriso:
_Caramba, imagina se te derem uma perna biônica, daquela do "Homem de seis milhões de dólares", não seria legal?
  E saiu assim, na maior de todas as naturalidades do mundo, o amigo não olhava mais pro tal ponto, fechou os olhos e começou imaginar o que eu havia proposto, segundo depois soltou uma sonora gargalhada e me abraçou, ria também a madre Brasil, madre Enfermeira entrou e, entre as risadas fazia SSSSSHHHHHHH.
  A mãe dele vinha nos fins de semanas, como era costume de anos, trazia os nossos doces, na cama brincávamos de forte apache e a Rúbia emprestou-nos uma vitrola com vários discos, o tio do Alberto veio num dia de visitas e mandou instalar uma televisão em cores, doou pra enfermaria, de vez em quando ele pedia pra passear pelo colégio, na cadeira de rodas e eu empurrando, por todos os caminhos que costumávamos nos aventurar.
  Um dia, eu estava em aula, chegou à madre Da Glória e disse que o amigo havia partido, só então, me disseram que se tratava de câncer.
Houve velório e cerimônia de enterro, me recusei a comparecer nos dois eventos.
Entre a entrada no hospital e o final de tudo, foram cinco meses e, a falta é eterna.

Meu melhor amigo (Parte terceira)




  Como eu disse, fazíamos parte de uma mesma moeda, diferentes, mas sem antagonismos e tínhamos assuntos pra toda hora, muitas vezes, em hora de repouso, ficávamos com a toalha de mão nos rostos, fazendo que dormíamos e continuávamos cochichando, posto que éramos vizinhos de cama.
  Algumas vezes virávamos um trio, quando batíamos nas latas penduradas na tela que dividia os pátios, fazíamos o som e o André cantava os sambas mais lindos desse mundo.
  Em sala de aula, desde o jardim de infância, nossa companheira era a Marta Yoshie, até que tentaram nos separar dela, mas ela ficou muito triste, a ponto do pai dela implorar que nos deixassem juntos, era um trio estranho aquele, numa sexta-feira, ao final da aula, o pai dela nos levou pra um passeio, ela ia completar oito anos no domingo, passamos esses dias na casa dela e ainda que fosse no Cambuci, era uma réplica das casas do Japão, com jardins, lagos, cascatas e santuários.
  Avisados com antecedência, os convidados trouxeram presentes para a aniversariante e para os amiguinhos dela que, coincidentemente, aniversariavam na mesma semana.
  Mas, via de regra, desde quando chegamos, não nos apartamos mais e a dupla era chamada pelo nome e o sobrenome, geralmente quem aprontava era ele, mas eu era o maior, meu nome vinha em primeiro, na hora do grito:
_NILTON E FERNANDINHO !!!!! e, lá vinha o castigo, metade pra cada.
  Eu não tinha visitas, a mãe dele trazia "bode" pra dois, no caso de recomendações, ela fazia pra mim, pois sabia que ele fatalmente esqueceria.
  Um dia, com a desculpa de resgatar uma bola, subimos naquela lage que tem, entre a sala de aula e o pátio, como a moça, estava ocupada com os outros meninos se distraiu, fomos andando, voltando os pátios agachados, chegamos ao Menino Jesus, havia ali duas linhas de arames farpados, com facilidade pulamos pra rua, fizemos a volta no quarteirão e chegamos na portaria.
  Todo mundo foi chamado, a Olga foi acusada de ser negligente e se defendia, de canto de olhos dava pra sentir que ela queria nos esganar, a madre Márcia queria o pescoço de alguém, menos os nossos, a madre Da Glória já nos havia presenteado com seus famosos beliscões, os meninos foram trazidos pela Olga e nos olhavam com olhos de cumplicidade e admiração e, com certa pena, já que se falava-se em desinternação ou transferência de colégio.
  De cabeças baixas, esperamos e torcemos por um milagre, de frente pro Fernandinho, pude ver que, acima dos ombros dele, a rampa estava iluminada de sol, um vento fazia o véu da madre Brasil esvoaçar e, não tive mais medo de nada, ela entrou no saguão e o saguão se iluminou, em vezes, dava a impressão que ela sempre andava acompanhada de um batalhão de anjos.
  Caminhou em nossa direção, ficou no meio de nós e pousou as mãos em nossas cabeças e, com a naturalidade de quem educa disse:
_É logico que eles ultrapassaram os limites, mas voltaram.
  Se pularam é porquê estava fácil, se fossem outros meninos poderia acontecer o pior.
 E, resolveu tudo, o Juventino consertou a falha na segurança e, isso não evitou o castigo, ficamos sem ir ao Zoológico.
  Mas, quem disse que a dupla, sozinha, não se divertiu na Casa de Infância vazia???