sexta-feira, 19 de maio de 2017

Velhos tempos.


 

O ano era 1983, na véspera, estripei o estofado do acento do ônibus da Viação Castro e fiz uma pizza na barra da minha calça, achei mesmo que ficou legal, combinando com o mocaçim cinza, feito sob medida no Izack.
   E, bonito, fui assistir minha amiga Célia, que se apresentara num show de Jazz no A.C.A.C.A.B, ali na Rua Bela Cintra.
  A Célia, além de ser militante do Partidão, feito eu, era a primeira pessoa assumidamente homossexual com quem me relacionei, gostava muito de andar com ela, além de ela ser uma mulata linda, visualmente falando, tinha a cabeça parecida com a minha, até o Black era parecido com o meu.
   A Célia reclamava dos bailarinos da peça, sempre querendo se mostrar mais que as moças.
   _. É fia, eu também não gosto de homens. E caímos na gargalhada.
  . Não queríamos pegar toda a extensão da Paulista e entramos nas alamedas, estava com meu rádio portátil e ainda que ele tivesse o tamanho de uma televisão, não pesava quase nada, nesse tempo não havia pendrive ou MP3, minha seleção era guardada numa fita cassete, quando entramos na rua Hadock Lobo liguei o som, o silencio da rua arborizada recebeu os primeiros acordes e ressoou no ar... I Never Knew Love Like This Before, a voz doce de Stephanie Mills, demos as mãos e cantamos juntos a canção.
   Na altura da Alameda Lorena, vimos uma figura do lado oposto, paramos e atravessamos a rua, a Célia havia se familiarizado, mas o nome não saía, ela esticou a mão em direção dele e o nome não vinha atrás dela eu gritei:
   _Mutinho.
   Ele sorriu, envaidecido por ter sido reconhecido, depus o rádio no chão e vasculhei os bolsos, à cata de uma caneta.
   A Célia já havia achado e procurava uma folha em branco no caderno da escola, entrei na fila.
   Um vento bateu forte, os galhos das arvores se abriram e um raio de sol bateu no rosto do Mutinho e. Por um breve instante eu vi outra pessoa, tive um momento de hesitação, o que me levou a piscar, feito quem está contrariado.
   Eu estava de frente pra ele e pensei que ele não havia notado,
   Após assinar o caderno da Célia, passei-lhe o meu e ele me perguntou o que havia acontecido.
   _Cara, por um instante seu rosto pareceu o de outra pessoa.
   _O rosto de quem?
   _Do Lupicínio Rodrigues.
   Abriu um sorriso de orgulho e disse com voz baixa:
   _É que sou sobrinho dele.
   Ué... como eu poderia saber!?? Não existia o Google nessa época.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Inocência




  No bambual, quase colado à piscina, morava um enorme lagarto teiú, verde, com detalhes amarelos, talvez nem fosse tão grande assim, (crianças de 10 anos tem tendências ao exagero mesmo) sei que a lembrança que tenho dele é d'um enorme e ameaçador, animal pré-histórico.
  Às vezes, ele aparecia na parte da estrada, que subia para o SENAI ou subia por trás do teatro, no barranco do 15 ou fazia aparições na estrada do 14, se escondia no milharal ou aparecia no bananal do 12, mas ele morava mesmo, no bambual que descia para o campão.
  Eu, o Viana, o Téquinha, o Ovinho, o Edson e o Chumbinho o perseguiam, quando ele aparecia nos limites do nosso pavilhão, corríamos como caçadores, ágeis e silenciosos... Agilidade e silêncio que não bastavam, nunca chegávamos perto dele e, já ia o danado, sumindo entre o mato e o bambu.
  Sempre que estávamos na perseguição do bicho, encontrávamos o Cidão, o Valdeci, o Dalcides e o Ronaldo, que moravam no pavilhão 13, que geograficamente, era mais próximo do bambual e, quando a busca se dava nos limites do 12, apareciam o Zé Almir, o Fabiano e o Valdevino, a certa altura, isso virou uma disputa territorial, cada turma queria a honra de capturar o lagarto, para o seu pavilhão, ninguém anunciou, mas estava no ar.
  Um dia, quando nós, do 14, carregávamos a padiola com a comida para o lar, ao lado do SENAI, escutamos gritos, arreamos a padiola, fomos até o barranco da piscina e vimos os meninos do 13 correndo, não vimos o teiú, mas, sabíamos do que se tratava, poucos instantes depois, a turma do 12 desceu, sem perder tempo, escondemos a padiola nos arbustos e lançamo-nos à empreitada.
  É claro que, mais uma vez, o bicho nos deixou a ver navios e desapareceu na vegetação.
  Nesse dia o pessoal do lar 14 achou estranho, entre o frango com batatas, havia a companhia de formigas catiçeiras, perguntado desse fenômeno gastronômico, dei de ombros e disse:
  _O pessoal da cozinha central vai de mal à pior, na maior cara de pau.
  No recreio da escola, tínhamos o habito de fazer hora ao redor do lago, uns iam namorar, outros iam jogar bola e outros se sentavam nas sombras gigantes que as árvores proporcionavam, coincidentemente estávamos todos, as três turmas juntas, olhando a mansidão das águas do lago, ouvimos um barulho no mato e ficamos atentos, entre os mourões da cerca, ele saiu, à margem da água, sob os nossos olhares incrédulos, bebeu a água e voltou para o mato.
  Aquilo era muito mais que um desaforo, a revolta nos dominou e foi assim que se firmou o pacto de união, naquele momento a caça passou a ser nossa obsessão, em todos os fins de semana, nos juntávamos na empreitada, em todos os fins de semanas, terminávamos do mesmo modo, de línguas para fora e mãos abanando, capturar o réptil valia para nós, o que valia, para os exploradores, a tumba de Cleópatra e, nesse meio tempo, tornamo-nos inseparáveis.
  Domingo, a missa era celebrada no teatro, as enormes portas laterais ficavam abertas, o padre Graciano, sempre com seu sotaque italiano de aldeões, se não fosse o folheto, com o seguimento das etapas, ninguém entenderia nada, quando terminava, o padre Paulo, (que era cearense) vinha com os seus intermináveis discursos sobre a caridade cristã e os procedimentos e convivência no colégio, dali a pouco aquilo terminava, as portas laterais eram fechadas, as luzes se apagavam e a igreja virava cinema, assim, da angustia ao prazer, em poucos minutos.
  O alarido ia se abrandando aos poucos, até virar silencio total, os meninos se sentavam na ordem de seus respectivos pavilhões, por ordem de chegada, nós ficamos atrás do 12 e do 13, ainda nos perguntávamos qual seria o filme da vez... Mazzaropi, Charles Chaplin ou Bruce Lee?
  Na tela, já começavam a aparecer os créditos:
  Bud Spencer and Terence Hill...
Gritos unanimes no salão, o filme seria TRINITY.
  Percebi que algumas pessoas saíam, pela lateral esquerda, entre a parede e as cadeiras, meio apertadas, como se não quisessem ser percebidos, já acostumado com a escuridão, meus olhos puderam perceber que se tratava do Cidão e do Dalcides, poucos segundos depois, veio o Ronaldo, cutuquei o Viana, que cutucou o Chumbinho, que cutucou o Téquinha e saímos também, sem chamar a atenção de ninguém, ao passar pela turma do 12, o Zé Almir percebeu a movimentação suspeita e se levantou também, é claro que o Fabiano e o Valdevino fizeram o mesmo.
  O filme já começava lá dentro, cá fora o clima era de suspense, o Cidão correu na direção do fundo do prédio e gritou:
    _Ele correu para lá.

  Ao lado do teatro, havia um pequeno córrego de alvenaria, feito para conter as águas que desciam do bananal do 14 em época de chuvas, entramos nele e nada, entramos no bananal e o avistamos bem abaixo do abacateiro, quando percebeu a nossa presença parou, o Zé não correra conosco, ele e os outros do 12, haviam feito a volta e, num círculo, encurralamos o lagarto, à medida que fechávamos, ele virava a cabeça em todas as direções, quando o círculo fora reduzido a uns 2 metro de diâmetros, deu uma corrida e, para o seu azar, escolheu o lado errado, foi para cima do Valdeci que, com a habilidade de um goleiro, dobrou os joelhos, esperou que o réptil passasse ao seu lado e se jogou uma mão no pescoço e outra nos quadris, o danado se bateu, o Valdeci se levantou sem impulso e o ergueu ao céu, como se fosse um troféu.
  Pulávamos de alegria e cantávamos a vitória e com muito cuidado, passávamos o bicho de mão em mão, o danado era muito grande e brilhava no pouco sol, que os galhos do abacateiro permitiam passar, seu tamanho dava a extensão exata do meu braço, eu nem me atrevi a segurá-lo.
  Dava para ouvir as risadas que vinham do cinema e então nos acalmamos, sentamo-nos em círculo, entre as folhas secas do abacateiro e outras, da mangueira vizinha, o silêncio tomou conta, foi o Viana, quem quebrou o silêncio:
  _E agora?
    Surgiram ideias desencontradas de prender, de criar, de tirar o couro, todas sem fundamentos, todas eram seguidas de prós e contras, até que Fabiano disse que seria melhor que o comêssemos, disse que o gosto lembrava a carne de peixe.
  Paramos nessa ideia, íamos comer, agora mesmo, lá no teatro, as crianças riam, o Fabiano seguiu, vamos fazer uma fogueira aqui mesmo e asar o bicho, só que... primeiro, temos que matar.
  O silêncio que se seguiu, logo após a palavra matar, foi, durante toda a minha vida, o mais pesado.
  O Valdeci, que era o mais velho, devia ter uns 13 anos, ao ouvir a palavra, passou o lagarto para o Viana, o Viana o segurou por uns breves segundos, ao sentir o peso da palavra, tentou se livrar do bicho, ninguém quis ficar com a função, uma tristeza tomou-lhe, com o dedo indicador principiava um carinho, vimos à cena e entendemos o amigo.
  E, não éramos grandes caçadores como nos intitulávamos, éramos doze crianças e como, só às crianças, cabe o dom da vida, nos abaixamos com o Viana.
  Quando ele se livrou do lagarto no chão, o bicho ainda não foi embora, ficou ali uns instantes, depois sumiu na vegetação, quando voltávamos para o teatro, ali onde havia começado a aventura, pudemos ver na folhagem um ninho, nele haviam quatro ovos, tivemos todo o cuidado para cobri-lo e fomos assistir ao filme.
  Sempre que sobravam umas frutas eu o Viana, depositávamos no bambual, os caras do 12 e os do 13, faziam a mesma coisa.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Bruce Leroy.




  . No final dos anos 1970, comecinho dos 80, não havia epidemia que superasse o tal do Kung fu, esses filmes, geralmente de pouca qualidade técnica, eram produzidos aos milhares e entupiam os cinemas da cidade, assim como as academias, havia uma dessas, a cada 50 metros no centro de São Paulo.
  Aos milhares, os jovens se inscreviam nessas academias (que eles chamavam de templos) e seguiam rituais e doutrinas do ensinamento Shaolin, isso, coisa de maluco mesmo.
  O Educandário Dom Duarte estava contaminado, havia um punhado desses doidos, circulando por lá, com suas sapatilhas e seus quimonos coloridos.
  . Para seguir a tendência vigente, no cinema do Educandário, passou a ser exibido esse tipo de filme, em lugar das habituais fitas do Macister, os Bang Bangs e o brasileiríssimo Mazzaropi.
  Ao final de cada sessão, os internos saiam imitando os atores e, antes de chegarem a seus pavilhões, já estavam trocando tapas e pesadas, mas, pra dizer a verdade, eles não faziam mal para ninguém e, a paisagem ficava até mais divertida, entre os meus amigos da época, eu posso destacar dois, o Tadeu neguinho do 11 e o Avelino do 13, esses eram dos mais fanáticos, trajavam-se e falavam feito os gafanhotos chineses, logo de manhã, os víamos, em seus exercícios matinais.
  Por esse tempo, também nascia outro movimento, esse não era estimulados pela mídia, pelo contrário, esse foi um movimento à margem das conveniências sociais e visava consagrar os jovens da periferia, seus adeptos iam pros bailes e shows de cantores e bandas negras, era chamado de Black Power, mas ficou mais conhecida mesmo, como "função”.
  Se a primeira tribo pregava a não violência, a segunda não abria mão dela para se posicionar.
  Eu fazia parte do segundo grupo, mas nem por isso, deixava de ser amigo dos maluquinhos do Kung Fú, saíamos para as baladas, todos os fins de semana e em bailes de São Paulo toda.
   Nossa gang era constituída de internos do E.D. D, internos da FEBEM da Raposo Tavares, moradores do Arpoador, do Jardim Peri Peri e uns caras de Pinheiros, somávamos uns 60 integrantes, não havia um líder propriamente dito, mas, a única pessoa que tinha atitude para sê-lo, seria o amigo Viana, esse tinha "sangue no olho".
  E, ainda que a palavra gang, nos leve a uma ideia de crime, eu e muitos dos integrantes, só estávamos ali, pela dança, a música, as meninas e as cervejas... Não, necessariamente, nessa mesma ordem.
  Em algumas ocasiões, o Viana esteve prestes a acertar a orelha do Avelino, ele tinha a curiosidade de saber a eficácia das artes marciais diante da pegada firme do boxe, várias vezes eu cheguei em cima da hora e separei os dois, desde criança, eu era a única pessoa que ele ouvia, mas ele havia prometido que iria à forra.
  Numa ocasião, quando chegávamos à sede do Jardim Arpoador, onde havia uns bailes em sábados à noite, fomos avisados que um grupo havia encurralando um sujeito no banheiro e ele era interno, pagamos o ingresso e fomos lá, socorrê-lo.
  Lá, encontramos um pessoal do João XXIII, tentando arrombar o banheiro, dentro do banheiro estava o Avelino, o gafanhoto, que se vestia num traje completo de monge chinês, havia tentado cantar a menina de um deles, quando percebeu a nossa presença, o infeliz abriu a porta do banheiro, levou um soco, nós reagimos à altura e virou briga de gangs, pancadas, cadeiradas, uma faca e socos...
  No meio da briga, alguém que estava do nosso lado sacou do 38 e atirou pra cima, os caras do João XXIII correram.
  Agradeceu-nos, o Avelino e dissemos não ser nada de mais, nosso código de conduta era bem claro: “jamais deixar um irmão do Educa na mão” e, isso nunca foi desrespeitado.
  Na volta, eu estava no meio dos dois, voltávamos pro pavilhão 22, acima do Cemitério Israelita, uma lua nova quase vermelha dava o ar de sua graça e dava pra ouvir os nossos passos no chão de pedra da Rua Osvaldão, o Avelino quebrou o silencio:
  _Obrigado mesmo, vocês salvaram a minha vida.
  _Não foi nada, você sabe! Disse eu e citei o código sagrado dos internos:
  _ Brigou com um, brigou com todos.
  O Viana não aguentou e reclamou:
  _Para que toda essa baboseira de artes marciais, se na hora do vamos ver, o cara sai correndo pro banheiro.
  O Avelino, ainda massageando os hematomas protestou:
  _Na hora do vamos ver, quem estava me batendo era você.
  O Viana tranquilamente olhou pra lua e disse:
  _Bati em uns sete caras... Seis pra me defender... E em você, eu bati pelo prazer mesmo, só pra provar que o Boxe é superior.
  Dias depois, o Avelino lançou mão de suas roupas de monge Shaolin e matriculou-se numa academia de boxe.
  A última notícia que eu tive dele foi pelo jornal e a matéria era essa:
  “José Avelino de Palma, jovem de São Paulo defende título amador de boxe, no Chile”.