sábado, 20 de maio de 2017

O troco



  Às vezes, as pessoas com quem convivi na infância, discordam do jeito com que eu descrevo as coisas e os fatos...para eles, havia muito sofrimento naquilo tudo e, eu entendo isso.
  Suponho que, se eu tivesse uma família ou uma casa e, fosse impedido de estar lá, o colégio me seria um martírio sem fim, mas não é o esse, o meu caso, no meu caso o colégio era a minha casa, os meninos e os adultos eram a minha família, posto isso, eu detesto desapontá-los, eu tive uma infância maravilhosa.
  Eventualmente, haviam coisas tristes, feito existem em vários lares, só que as coisas boas foram infinitamente maiores que, nem vale a pena lembrar as partes ruins, quando lembro do guri que eu fui, sei que vivia feliz e sabia disso.
  Quando cheguei à idade de 17 anos, fui voluntário na F.E.B.E.M da Celso Garcia, possuía vontade de ser professor e resolvi fazer esse estágio, me passei por um adulto e pensei que possuía conhecimento de causa, fui ensinar futsal.
  É claro que havia acabado de sair da adolescência, por esses tempos vivemos uma época de encantamentos românticos...o passo era muito maior que a minha perna.
  Me enganei completamente, aqueles não eram menores carentes, eram infratores, desses pivetes que você mantêm distância, só de encontrar na rua.
  Alguns deles eram mais altos e mais fortes que eu, uns tinham barba, coisa que eu só fui ter com 30, eram avessos ao comando, bastava um gesto mais brusco e, se tinha uma rebelião, eu ia tentando e tentando...era feito falar pra uma parede.
  Sem a vivência que só fui adquirir mais tarde, procurava um jeito de me fazer notar, uma deixa qualquer, pra que eu pudesse entrar no mundo deles.
  Se me fosse permitido a entrada...eu poderia tocar seus corações.
  O tempo passava e, eu não conseguia me impor, não andava, se andava era pra trás e, eu já mostrava sinais de cansaço.
  Um grupo de meninos rebeldes que jogavam bola com uma habilidade de dar inveja aos profissionais da bola, com comportamento de meter inveja aos profissionais do crime, passei a rezar para o meu contrato terminar e covarde, convenci a mim mesmo que aquele não era o meu ramo.
  Por esse tempo, me veio à cabeça uma velha canção de Belchior, quanto mais eu me perdia, mais ela vinha forte..."Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas".
  Como eu poderia amar e mudar aquilo tudo??mentalmente eu respondia ao cearense ilustre:
"A vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior".
  Estar ali, me irritava, às vésperas de chegar ali, meu corpo se recusava e, a alma me arrastava...minha alma é de uma teimosia de besta selvagem.
  Dentre esses meninos havia um líder, o mais violento de todos, olhava pra todos com olhar desafiador, media quase 2 metros de altura.
Sua conduta antidesportiva fez com que ele fosse impedido de praticar esporte, mesmo com a proibição, ele foi à quadra pra ver se revertia a situação.
  Eu já havia iniciado a aula e os meninos estavam sentados no chão, diante de mim e, ele chegou-se afoito.
  Não se desculpou e, foi logo perguntando:
  _O que eu posso fazer, cresci sem família, sem amor...a vida me fez assim, o que é que eu posso fazer???
  Os outros guris permaneceram sentados, todos olhavam para mim, como se a pergunta fosse deles também, com calma fiz sinal para que ele se sentasse também.
  Do nada, o milagre havia caído no meu colo, eu os tinha em meu controle, respirei fundo e virei adulto:
  _Você dá o troco na vida, não é preciso receber pra dar.
  A interrogativa permaneceu ainda nos rostos deles, passei a contar da minha infância, sem maquiagem, tudo e, só a verdade.
  Do corredor da delegacia, até a saída do Educandário Dom Duarte, foi um longo caminho...pagando a generosidade das pessoas que me deram carinho, até não haver mais dividas.
  A aula, que deveria durar 40 minutos, ultrapassou as 3 horas e sequer encostamos nos materiais esportivos, percebi que eu tinha que contar a minha história, qualquer coisa didática e teórica jamais teria o mesmo efeito que a minha própria vivencia, havia chamado a atenção daqueles meninos.
  Ao final da aula, pela primeira vez na vida, alguém me chamou de professor.
  Essa foi a minha primeira turma e, tenho saudades dos títulos que conquistamos juntos.
  Muitos anos mais tarde, estava eu com meus filhos e mais uns vinte meninos do meu time, fazendo churrasco no Parque do Piqueri, alguém grita o meu nome e, eu nem fazia ideia de quem pudesse ser, volto-me, tentando reconhecer.
  Um homenzarrão vem em minha direção e me abraça, me apresenta 3 filhos lindos, conta como virou a sorte da vida e apontando para o filho mais velho e diz:
  _O nome dele é Nilton...dei o troco na vida.




sexta-feira, 19 de maio de 2017

Velhos tempos.


 

O ano era 1983, na véspera, estripei o estofado do acento do ônibus da Viação Castro e fiz uma pizza na barra da minha calça, achei mesmo que ficou legal, combinando com o mocaçim cinza, feito sob medida no Izack.
   E, bonito, fui assistir minha amiga Célia, que se apresentara num show de Jazz no A.C.A.C.A.B, ali na Rua Bela Cintra.
  A Célia, além de ser militante do Partidão, feito eu, era a primeira pessoa assumidamente homossexual com quem me relacionei, gostava muito de andar com ela, além de ela ser uma mulata linda, visualmente falando, tinha a cabeça parecida com a minha, até o Black era parecido com o meu.
   A Célia reclamava dos bailarinos da peça, sempre querendo se mostrar mais que as moças.
   _. É fia, eu também não gosto de homens. E caímos na gargalhada.
  . Não queríamos pegar toda a extensão da Paulista e entramos nas alamedas, estava com meu rádio portátil e ainda que ele tivesse o tamanho de uma televisão, não pesava quase nada, nesse tempo não havia pendrive ou MP3, minha seleção era guardada numa fita cassete, quando entramos na rua Hadock Lobo liguei o som, o silencio da rua arborizada recebeu os primeiros acordes e ressoou no ar... I Never Knew Love Like This Before, a voz doce de Stephanie Mills, demos as mãos e cantamos juntos a canção.
   Na altura da Alameda Lorena, vimos uma figura do lado oposto, paramos e atravessamos a rua, a Célia havia se familiarizado, mas o nome não saía, ela esticou a mão em direção dele e o nome não vinha atrás dela eu gritei:
   _Mutinho.
   Ele sorriu, envaidecido por ter sido reconhecido, depus o rádio no chão e vasculhei os bolsos, à cata de uma caneta.
   A Célia já havia achado e procurava uma folha em branco no caderno da escola, entrei na fila.
   Um vento bateu forte, os galhos das arvores se abriram e um raio de sol bateu no rosto do Mutinho e. Por um breve instante eu vi outra pessoa, tive um momento de hesitação, o que me levou a piscar, feito quem está contrariado.
   Eu estava de frente pra ele e pensei que ele não havia notado,
   Após assinar o caderno da Célia, passei-lhe o meu e ele me perguntou o que havia acontecido.
   _Cara, por um instante seu rosto pareceu o de outra pessoa.
   _O rosto de quem?
   _Do Lupicínio Rodrigues.
   Abriu um sorriso de orgulho e disse com voz baixa:
   _É que sou sobrinho dele.
   Ué... como eu poderia saber!?? Não existia o Google nessa época.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Inocência




  No bambual, quase colado à piscina, morava um enorme lagarto teiú, verde, com detalhes amarelos, talvez nem fosse tão grande assim, (crianças de 10 anos tem tendências ao exagero mesmo) sei que a lembrança que tenho dele é d'um enorme e ameaçador, animal pré-histórico.
  Às vezes, ele aparecia na parte da estrada, que subia para o SENAI ou subia por trás do teatro, no barranco do 15 ou fazia aparições na estrada do 14, se escondia no milharal ou aparecia no bananal do 12, mas ele morava mesmo, no bambual que descia para o campão.
  Eu, o Viana, o Téquinha, o Ovinho, o Edson e o Chumbinho o perseguiam, quando ele aparecia nos limites do nosso pavilhão, corríamos como caçadores, ágeis e silenciosos... Agilidade e silêncio que não bastavam, nunca chegávamos perto dele e, já ia o danado, sumindo entre o mato e o bambu.
  Sempre que estávamos na perseguição do bicho, encontrávamos o Cidão, o Valdeci, o Dalcides e o Ronaldo, que moravam no pavilhão 13, que geograficamente, era mais próximo do bambual e, quando a busca se dava nos limites do 12, apareciam o Zé Almir, o Fabiano e o Valdevino, a certa altura, isso virou uma disputa territorial, cada turma queria a honra de capturar o lagarto, para o seu pavilhão, ninguém anunciou, mas estava no ar.
  Um dia, quando nós, do 14, carregávamos a padiola com a comida para o lar, ao lado do SENAI, escutamos gritos, arreamos a padiola, fomos até o barranco da piscina e vimos os meninos do 13 correndo, não vimos o teiú, mas, sabíamos do que se tratava, poucos instantes depois, a turma do 12 desceu, sem perder tempo, escondemos a padiola nos arbustos e lançamo-nos à empreitada.
  É claro que, mais uma vez, o bicho nos deixou a ver navios e desapareceu na vegetação.
  Nesse dia o pessoal do lar 14 achou estranho, entre o frango com batatas, havia a companhia de formigas catiçeiras, perguntado desse fenômeno gastronômico, dei de ombros e disse:
  _O pessoal da cozinha central vai de mal à pior, na maior cara de pau.
  No recreio da escola, tínhamos o habito de fazer hora ao redor do lago, uns iam namorar, outros iam jogar bola e outros se sentavam nas sombras gigantes que as árvores proporcionavam, coincidentemente estávamos todos, as três turmas juntas, olhando a mansidão das águas do lago, ouvimos um barulho no mato e ficamos atentos, entre os mourões da cerca, ele saiu, à margem da água, sob os nossos olhares incrédulos, bebeu a água e voltou para o mato.
  Aquilo era muito mais que um desaforo, a revolta nos dominou e foi assim que se firmou o pacto de união, naquele momento a caça passou a ser nossa obsessão, em todos os fins de semana, nos juntávamos na empreitada, em todos os fins de semanas, terminávamos do mesmo modo, de línguas para fora e mãos abanando, capturar o réptil valia para nós, o que valia, para os exploradores, a tumba de Cleópatra e, nesse meio tempo, tornamo-nos inseparáveis.
  Domingo, a missa era celebrada no teatro, as enormes portas laterais ficavam abertas, o padre Graciano, sempre com seu sotaque italiano de aldeões, se não fosse o folheto, com o seguimento das etapas, ninguém entenderia nada, quando terminava, o padre Paulo, (que era cearense) vinha com os seus intermináveis discursos sobre a caridade cristã e os procedimentos e convivência no colégio, dali a pouco aquilo terminava, as portas laterais eram fechadas, as luzes se apagavam e a igreja virava cinema, assim, da angustia ao prazer, em poucos minutos.
  O alarido ia se abrandando aos poucos, até virar silencio total, os meninos se sentavam na ordem de seus respectivos pavilhões, por ordem de chegada, nós ficamos atrás do 12 e do 13, ainda nos perguntávamos qual seria o filme da vez... Mazzaropi, Charles Chaplin ou Bruce Lee?
  Na tela, já começavam a aparecer os créditos:
  Bud Spencer and Terence Hill...
Gritos unanimes no salão, o filme seria TRINITY.
  Percebi que algumas pessoas saíam, pela lateral esquerda, entre a parede e as cadeiras, meio apertadas, como se não quisessem ser percebidos, já acostumado com a escuridão, meus olhos puderam perceber que se tratava do Cidão e do Dalcides, poucos segundos depois, veio o Ronaldo, cutuquei o Viana, que cutucou o Chumbinho, que cutucou o Téquinha e saímos também, sem chamar a atenção de ninguém, ao passar pela turma do 12, o Zé Almir percebeu a movimentação suspeita e se levantou também, é claro que o Fabiano e o Valdevino fizeram o mesmo.
  O filme já começava lá dentro, cá fora o clima era de suspense, o Cidão correu na direção do fundo do prédio e gritou:
    _Ele correu para lá.

  Ao lado do teatro, havia um pequeno córrego de alvenaria, feito para conter as águas que desciam do bananal do 14 em época de chuvas, entramos nele e nada, entramos no bananal e o avistamos bem abaixo do abacateiro, quando percebeu a nossa presença parou, o Zé não correra conosco, ele e os outros do 12, haviam feito a volta e, num círculo, encurralamos o lagarto, à medida que fechávamos, ele virava a cabeça em todas as direções, quando o círculo fora reduzido a uns 2 metro de diâmetros, deu uma corrida e, para o seu azar, escolheu o lado errado, foi para cima do Valdeci que, com a habilidade de um goleiro, dobrou os joelhos, esperou que o réptil passasse ao seu lado e se jogou uma mão no pescoço e outra nos quadris, o danado se bateu, o Valdeci se levantou sem impulso e o ergueu ao céu, como se fosse um troféu.
  Pulávamos de alegria e cantávamos a vitória e com muito cuidado, passávamos o bicho de mão em mão, o danado era muito grande e brilhava no pouco sol, que os galhos do abacateiro permitiam passar, seu tamanho dava a extensão exata do meu braço, eu nem me atrevi a segurá-lo.
  Dava para ouvir as risadas que vinham do cinema e então nos acalmamos, sentamo-nos em círculo, entre as folhas secas do abacateiro e outras, da mangueira vizinha, o silêncio tomou conta, foi o Viana, quem quebrou o silêncio:
  _E agora?
    Surgiram ideias desencontradas de prender, de criar, de tirar o couro, todas sem fundamentos, todas eram seguidas de prós e contras, até que Fabiano disse que seria melhor que o comêssemos, disse que o gosto lembrava a carne de peixe.
  Paramos nessa ideia, íamos comer, agora mesmo, lá no teatro, as crianças riam, o Fabiano seguiu, vamos fazer uma fogueira aqui mesmo e asar o bicho, só que... primeiro, temos que matar.
  O silêncio que se seguiu, logo após a palavra matar, foi, durante toda a minha vida, o mais pesado.
  O Valdeci, que era o mais velho, devia ter uns 13 anos, ao ouvir a palavra, passou o lagarto para o Viana, o Viana o segurou por uns breves segundos, ao sentir o peso da palavra, tentou se livrar do bicho, ninguém quis ficar com a função, uma tristeza tomou-lhe, com o dedo indicador principiava um carinho, vimos à cena e entendemos o amigo.
  E, não éramos grandes caçadores como nos intitulávamos, éramos doze crianças e como, só às crianças, cabe o dom da vida, nos abaixamos com o Viana.
  Quando ele se livrou do lagarto no chão, o bicho ainda não foi embora, ficou ali uns instantes, depois sumiu na vegetação, quando voltávamos para o teatro, ali onde havia começado a aventura, pudemos ver na folhagem um ninho, nele haviam quatro ovos, tivemos todo o cuidado para cobri-lo e fomos assistir ao filme.
  Sempre que sobravam umas frutas eu o Viana, depositávamos no bambual, os caras do 12 e os do 13, faziam a mesma coisa.