sexta-feira, 2 de junho de 2017

Uma coisa que incomodava.




  Nessa passagem, vou falar de um mal que aflige a sociedade e, por acontecer com muito mais frequência do que é divulgado , nos incomoda demais...a violência familiar.
  Por compensação, no desenrolar dessa história, vou contar de fatos históricos e, de quebra, vou relembrar de uns quatro personagens queridos e você vai matar as saudade deles.
  Quando eu tinha pouco mais que 16 anos, sai do Educandário Dom Duarte e fui morar na goma do Maurício, onde moravam o Toninho (Testão), o Oliveira e mais uns 5 ex internos.
  Por esse tempo, a comunidade da rua Osvaldão se podia contar nos dedos e o córrego Bota frias era o que limitava esse contingente de pessoas.
  De quando em quando, alguém tentava construir um barraco no outro lado do córrego, alegando auto risco de vida, a prefeitura era avisada e derrubava o barraco, um pouco mais de tempo e aparecia outra pessoa para construir lá, vinha de novo a prefeitura e procedia da mesma forma.
  O Paraíba tinha por nome Romualdo Correia dos Santos, trabalhava no Cemitério Israelita e, além de ser um sujeito muito legal, tinha uma penca de filhos, grande parte desses, eram meninas.
  Não era nenhum gênio em leitura, mas era fera na matemática e entendia de comércio como poucos.
  Sem precisar invadir terras do lado oposto do córrego, achou uma estreita faixa de terra nas costas dos barracos e, espertamente levantou um barraco de palafitas, tal e qual os barracos da 'Favela de Alagados', por ser suspensa a moradia, evitava que as águas lhe incomodassem e metade do seu barraco ficava dentro do córrego, essa foi a principal desculpa para que o povo começasse a invasão da área vazia.
  O Paraíba era mesmo muito esperto, além de morar bem, construiu no seu barraco uma Casa do Norte, em pouco tempo progrediu e foi-se.…dizem que voltou à terra natal.
  Com a devida desculpa, em poucas semanas, no lado oposto do córrego já haviam mais de cem barracos, a invasão foi quase total.
  Contando da calçada, ao lado do bar do Kleber, uns vinte metros adentro, essa parte ficou intacta, sempre que vinha alguém para pegar o terreno, o Flavinho, que morava na laje do avô, cuja a entrada ficava na Eiras Garcia, vinha e dizia que tinha ordens da prefeitura para zelar por aquele pedaço de terra.
  E, por um longo tempo, essa conversa colou...só quem conhecia o Flavinho sabia da verdade, bom... o Flavio era meu amigo e sempre que ele me contava a verdadeira história, eu me acabava de rir.
  Aquele pedaço de terra, há anos, era usado para o cultivo da Cannabis e, então o Flavinho era o maconheiro mais feliz do mundo, produzia para o seu próprio consumo.
  Num belo dia, entregaram o agricultor à polícia, por sorte, ele não estava em casa, mas procederam a derrubada da horta, na saída da polícia, já havia gente com cavadores e meia hora depois, já havia ali, um novo barraco.
  Para esse barraco, mudou-se um casal com pouca idade, uma moça quase sem muita beleza e silenciosa e seu jovem marido, esse tipo de sujeito que te olha de rabo de olho e parece um rato, o tipo de pessoa que ninguém se sente bem em ficar ao lado, tinha esse sujeito, o habito de dar surras na moça, do nada, se ouviam as pancadas, os gritos e tudo parava, dali um tempo o cara saía na frente da casa e acendia um cigarro.
  Tem aquela história clássica..."Em briga de casal”…Todo mundo que morava por perto se sentia incomodado e, o que se pode fazer...
  Numa bela noite, assistíamos televisão, eu, o Viana e o Mauricinho, quando o Toninho veio da rua e abaixou o som, para que nós pudéssemos ouvir os gritos da moça apanhando.
  Não houve um comando, levantamos juntos do sofá e não nos conversamos, saímos de casa e descemos a João de Lorenzo, quando dobramos ao lado do bar do Kleber, o cidadão já havia terminado o serviço e já estava pitando o cigarro, nos viu e ficou tranquilo, como se não tivesse qualquer pecado no mundo, juntamos o sujeito e o arrastamos conosco e, ele gritava feito mulher.
  A primeira intenção nossa foi arrastá-lo até um terreno baldio, dos muitos que ainda haviam na Eiras Garcia, passando do bar do Kleber vinha a oficina do Arlindo, quando passamos em frente, ele abiu o imenso portão de ferro, nos olhou e em seguida saiu para a rua, jogamos aquele lixo humano lá para dentro e o Arlindo nos trancou.
  Meia hora depois, saímos, eu e o Viana, ficamos em silêncio ao lado do Arlindo a esperar o Mauricinho, ele chegou e disse:
  _. Ainda está vivo.
  Antes de dobrarmos a Osvaldão, vimos o Arlindo jogar o lixo na rua.
  . Nunca mais, o valentão nos deu o prazer de sua companhia.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

O reencontro.




  Depois que sai do Educandário Dom Duarte, não saí de vez, fui morar ali por perto.
  Eu morei por um tempo na rua Osvaldo Libarino de Oliveira e, dividia as despesas com um bocado de ex internos, eram eles;
  O Valdevino, o Viana, o Zé Almir, o Mauricinho, o Everaldo...a casa pertencia ao Mauricio, o Toninho e o Oliveira, esses eram de outra geração, já que eram 10 anos mais velhos que nós.
  Sendo vizinho do Educandário, sempre que batia a saudades dos tempos idos, eu dava uma esticadinha e olhava os caminhos da infância.
  Depois fui morar no bairro da Liberdade e, as saudades, a gente matava de outro jeito.
  Na rua Xavier de Toledo, onde hoje se localiza a Financiadora Mappin, não a loja, prédio da financiadora, havia uma pastelaria chinesa, dessas típicas com azulejo branco, cuja os donos não falam português e, em determinados momentos, dá a impressão de que eles estão xingando o freguês.
  Creio que esse habito começou em 1982, alguns ex internos começaram a se encontrar, tomar umas cervejas com uma ótima pizza e lembrar do passado e toda história virava piada ou saudade... assim nasceu um compromisso que foi seguido durante um tempo.
  Dia de pagamento e vale o local era sagrado, o dono baixava as portas e os fregueses ficavam no estabelecimento, a filha dele, que era universitária e falava a nossa língua, servia.
  Logo cedo, a conta era dividida entre todos e cada um ia para um ponto de São Paulo, não antes de marcar o próximo encontro.
  Desses encontros me lembro do Ditinho, do Biriba, do Zé Antonio, do Zé Baiano, do Loucão, do Perão, do Pelezinho, do Dooley, do Edson Pirata do 16, do Jordão, dos irmãos Lucena do 14, do Gibi do 19, do Luiz Bandido do 14, do Tavares, do Zezinho da cozinha e muitos mais, de todas as gerações de internos e funcionários.
  Aliás, uma das coisas mais marcantes do tempo, foi a marcação do encontro no dia do comício das Diretas-Já.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Tempo da fúria




  Passos não tem endereços certos, caminhos são escolhidos em cima da hora propícia, alguns hão de escolher o lado de lá da ponte, outros vão ficar deste lado, onde as águas são claras e límpidas e, ainda existem os que não escolherão caminho algum, penderam pra sempre entre o bem e o mal, sabendo que o mal ou o bem é uma questão de visão ou de perspectiva.
  Uns poucos, muito poucos, podem abrir um portal do tempo e ver o seu futuro provável e, talvez assim, podem mudar os passos que a vida lhe reservou.
  Fui criado pra ser católico, amar como Jesus amou e tal e coisa... mas a percepção, me deu o livre arbítrio, e vendo que a maioria dos pregadores da palavra se perdiam na vaidade mundana, entre a escravidão da religião e a devassidão, me tornei um cristão reservado, depois da primeira comunhão abri mão dessa condição e, se Maria substituiu a minha mãe, virou meu símbolo de fé, se não houvesse Maria, eu seria ateu.
  E, sempre houve uma Maria a endireitar o meu caminho ou virar o meu olhar na hora exata do perigo, todas as freiras da ordem que administrava a Casa da Infância tinham Maria no primeiro nome, os olhos castanhos de uma Maria me salvou da morte no baile do Pombal e, outra Maria seria decisiva na minha hora crucial.
  Quando deixamos a brincadeiras dos pavilhões e o futebol parou de mover nossas vidas, crescemos e nos juntamos todos no lar 22, a infância havia passado e viramos adultos de uma hora pra outra, veio o tempo de fúria, em bailes mostrávamos poder e conquistávamos territórios, o número maior servia pra aniquilar e amedrontar a quem se pusesse no caminho.
  Alguns de nós já andavam armados e já faziam suas vítimas, as noites de São Paulo passaram a oferecer perigo, saindo do Asa Branca, dois caras correram em minha direção e pararam, sacaram os revólveres e descarregaram-nos, surpreendido com a rapidez da ação, só me coube o tempo de fechar os olhos, os doze estampidos me ensurdeceram, quando abri os olhos, a multidão havia se espalhado e um corpo jazia na calçada da Rua Paes Leme, desse amigo eu sabia pouco, que morava no bairro do Campo Limpo e tinha 14 anos de idade, imaginei que houvesse uma mãe pra chorar a perda.
  Ainda que ele estivesse a menos de um palmo de distância de mim e, isso fosse um grande argumento pra eu sair dessa vida, me deixei ficar.
  A Sorte é um espírito que anda ao seu lado e te promete fidelidade eterna, o outro espírito chama-se Medo, ele não fala, por vezes, só sussurra.
  Ainda que os amigos fossem os mesmos da infância, muitos deles já não eram os mesmos, uma sombra havia tomado suas almas e tudo indicava que eu seguiria o mesmo caminho.
  Na festa da primavera do colégio Vidigal, tiveram a infeliz ideia de me convidar pra encenar uma peça, argumentei que não ficaria bem de príncipe, meu porte e a minha cor não combinavam com tal personagem, o argumento da turma era exatamente esse mesmo, apresentar um príncipe negro seria uma quebra de tabu, relutei o máximo que pude e, no fim aceitei.
  A princesa da peça era a Ana Maria Puopolo e, chamar a Aninha de princesa era a coisa mais natural do mundo, tal era a beleza da moça.
Sequer havia um beijo na cena, apenas um abraço rápido e a plateia delirou, os amigos do Educa apareceram por lá e puxavam o coro, o tio da moça estava lá e não gostou de nada daquilo, me fuzilava com os olhos.
  Quando terminou a peça, ficamos ali pelo pátio a conversar e o cara ainda a encarar, incomodado com essa situação, resolvi que iria tirar satisfação, desse no que desse.
  Antes que eu saísse do bolinho e caminhasse na direção do homem, um revólver foi posto no bolso da minha jaqueta, enfiei a mão no bolso e o segurei pela coronha sem tira-lo de lá.
  A Aninha e a mãe dela seguravam o homem, ele tentava vir na minha direção, notei que a Aninha começava a chorar.
  A arma pesava no bolso e meu dedo indicador já dormia no cão, só faltava o impulso pra partir, subitamente percebi que uma força me impedia de andar, naquele pátio lotado o tempo avançou e, eu vi o futuro.
  Como se eu não estivesse no meu corpo, vi as coisas de cima.
As pessoas corriam pra se proteger, o homem caído na escada de saída e o sangue a escorrer nos degraus, guardei a arma quente no bolso e desci a escada correndo, não tinha como não pisar na poça vermelha, ganhei a rua e corri em direção à Raposo Tavares, quanto mais eu me distanciava da escola, os gritos da Ana Maria se faziam mais altos.
Quando voltei pro presente, as duas já haviam arrastado o homem para a escada, sabia que a Aninha estava me defendendo, virei de frente para os amigos e entreguei a arma para o Viana.
  _Vai ficar por isso mesmo?
  _Vai...Talvez fosse até o certo a se fazer, mas tem um porém.
  _Qual é?
  _Eu jamais faria Maria chorar.