domingo, 4 de junho de 2017

O tênis vermelho




  A roupa que os internos do Educandário Dom Duarte usavam eram todas produtos de doações, claro que muitos tinham roupas que as mães davam, no entanto, esse não era o meu caso, desde que entrei no Educa, até o meu primeiro salário na P.G. E, minhas roupas vinham da rouparia central, que era comandada pela dona Djalmira.
  Essa já havia trabalhado no lar 22, a fama de enérgica vinha desse tempo, é fácil que alguém diga que a senhora era seca.
  Eu respeitarei a opinião de quem quer que seja, mas, minha visão das pessoas nunca se deixou ser influenciada por opiniões alheias.
  Para mim, ela era uma personagem num papel trocado, eu a via como uma viúva dos romances de Josué Montello, uma aristocrata que se viu obrigada a conviver entre a plebe.
  Quando me lembro dos adultos da minha infância, são poucos os que tinham um sorriso no rosto, supõe-se que a carestia daquela época tirasse-lhes a alegria de viver,  era um tempo de liberdade cerceada.
  Ela olhava por cima dos óculos e raramente sorria, depois que ela media a roupa no corpo, tomava distancia pra ver o caimento e dava a última avaliação, com a linha na boca, mandava que eu fosse embora e, invariavelmente, eu lhe beijava as mãos.
  Primeiro vinha a mão levantada para o tapa, depois o riso contra a vontade, logo em seguida o grito:
  _Vai embora, menino abusado.
  A sala dela ficava na administração, eu trabalhava com o seu Tinoco, dizia que, pelo fato de eu ser magricela o caimento era perfeito, mas que eu não confundisse isso com um elogio.
  Mês de Dezembro, todo mundo experimentando a roupa da Liga e ela me deixa por último, com razão, quando chegou a minha vez ela me vestiu, além da roupa da Liga, uma calça boca de sino preta, uma camisa branca social e um colete, viu que nada precisava de ajuste e, por cima dos óculos de gatinho, me surpreendeu:
  _Parece um dos Jackson Five.
  _O Michael ???
  _Não, o Germany é mais bonitinho.
  Às vésperas de eu ir pra escola nova, encontrei com ela no caminho do mercado Paraná, eu subindo e ela descendo, gritou-me, do outro lado da rua João de Lorenzo:
  _Passa lá, que eu tenho um presentinho.
  Depois do grito, fez sinal para que eu não atravessasse a rua pra beijar-lhe as mãos.
  Depois de comprar as guloseimas corri pra ver o presente, um tênis Tiger vermelho, na caixa e embrulhado em papel de presente.
  A coisa mais linda do mundo, embrulhado e com dedicatória, o que indicava que esse não fora doação e, dessa vez, não tive que roubar a mão para o beijo, ela mesma as esticou.
  _. Isso quer dizer que a senhora gosta da minha pessoa???
  _NÃO.
  Virou objeto de adorno, não fui pra escola com ele, ficava trancado no meu armário o tempo todo.
  Um dia, tive a infeliz ideia de ir ao estádio calçado nele.
  Sem muito dinheiro fui para a geral do Morumbi, meu timão jogando e nada de visão boa do campo, fiz o que sempre fazia, esperei os policiais se distraírem e escalei a cerca que separava a geral das cativas, um dos PMS voltou e segurou meu pé, como eu não parei, arrancou o tênis do meu pé esquerdo.
  Pulei para o outro lado e iniciei a corrida, mas parei, me lembrei do sorriso da dona Djalmira, voltei pra cerca e falei pro policial:
  _Eu volto, pode até me levar preso, contanto que me devolva o tênis.
  Surpreendido, o policial perguntou o que fazia daquele tênis tão especial assim, outros policiais se juntaram, balburdia no estádio e eu gritando pra explicar a procedência do calçado.
  Devolveu-me o tênis e me conduziu à saída do estádio.
  Não queria assistir mesmo, nesse dia o Corinthians perdeu.

O All Star importado.



 
  Depois de um tempo, garrei uma raiva tão grande de tênis que, passei a só usar sapatos, os tênis tinham tendência a me dar azar...acabavam me colocando em cada situação que, Deus me livre.
  Diferente daquele Tiger que a fofa da dona Djalmira havia me dado de presente, esse eu comprei com o meu suor.
  Bom, quem viveu no começo dos anos 1980 sabe da dificuldade que era, se possuir qualquer artigo fabricado fora do Brasil.
  Refrescando a memória de quem viu e explicando aos mais jovens, a nossa nação tinha os portos fechados, os cidadãos dessa terra eram obrigados a engolir todas as porcarias que eram fabricadas aqui, tudo o que vinha de fora, por conta das taxas abusivas, eram quase impossíveis de se obter.
  Se esse tênis, nos Estados Unidos, era usado pelos pretos pobres dos guetos, aqui era um luxo para poucos, um luxo que dava status e, por ser um neguinho da moda...claro que eu merecia um desses.
  Morando no pavilhão 22 e trabalhando no almoxarifado da Procuradoria Geral do Estado, juntei exatos quatro meses do meu salário e ainda faltou dinheiro, que remédio, tive que recorrer ao seu Tinoco, que me passou outro sermão, mas me deu o dinheiro.
  A coisa funcionava desse jeito, na Faria Lima ou em outro ponto de Pinheiros, havia um cara, que atendia pelo nome de Ananias, ele abria o capô da Variante e exibia seus artigos importados, ou contrabandeados, como se dizia na época.
  Essa era uma atividade ilegal, por isso ele vivia mudando de ponto, os seus fregueses sabiam do risco e falavam baixo, a qualquer momento poderiam dar de cara com o Dops, aí o bicho pegava.
  Bom... depois de dar o dinheiro ao Ananias, tinha-se um prazo de 3 meses de espera, isso era o tempo de ele viajar, comprar o produto e te entregar a mercadoria, se acontecesse algo diferente nesse período...o azar era seu.
  Peguei meu but no sábado e depois de calçá-los, o exibi aos amigos do segundo dormitório do pavilhão 22, os amigos comemoraram e ficou de eu os usar no domingo, na matinê da Chic Show.
  Pinheiros, rua Paes Leme e coisa e tal e, eu de tênis zerinho.
  Nesse dia, entramos com a galera de sempre, chegamos juntos eu e o Viana e esperamos o Valdevino, que parou na lanchonete com a namorada dele, dentro do salão o DJ anunciou com orgulho que aquela equipe de som já dava bailes naquele local, para mais de 11 anos e não havia tido nenhuma briga, nesse período todo.
  O Tadeu tinha uma namorada que não era muito certinha, fomos ao bar para tomar umas cervejas e o Tadeu ficou com ela, o Valdevino também ficou com a mina dele, pudemos ver os dois de longe.
  A menina que estava com o Tadeu deu entrada para um patrício de Osasco, o Tadeu não gostou, partiu para o pau, a turma de Osasco enquadrou o Tadeu, o Valdevino foi socorrer e começou a briga de dois internos contra uns vinte...historicamente falando, a primeira treta do salão da Chic Show de Pinheiros.
  Nós, o resto da gangue, estávamos a uns 40 metros do epicentro, assim que começou a troca de murros, o resto do povo fechou a roda e, por mais que tentássemos, não conseguimos chegar até eles e, de longe com as luzes piscando, pudemos ver a mais linda luta de todos os tempos, nem o cinema poderia reproduzir essa cena fantástica, o Valdevino bailava e desferia golpes, juntava as mãos em defesa e quando dava um soco, caíam uns 4.
  Quando finalmente conseguimos alcançar os amigos, a treta tomou proporções de guerra e, por segurança, abriram as portas de emergência, lá fora virou guerrilha urbana, nas ruas de Pinheiros, não eram mais o Butantã contra Osasco, virou mil contra mil e só acabou quando a tropa de choque dispersou todo mundo, correndo em cima ponte Eusébio Matoso, enquanto ria, via meu tênis azul ainda limpo.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Uma coisa que incomodava.




  Nessa passagem, vou falar de um mal que aflige a sociedade e, por acontecer com muito mais frequência do que é divulgado , nos incomoda demais...a violência familiar.
  Por compensação, no desenrolar dessa história, vou contar de fatos históricos e, de quebra, vou relembrar de uns quatro personagens queridos e você vai matar as saudade deles.
  Quando eu tinha pouco mais que 16 anos, sai do Educandário Dom Duarte e fui morar na goma do Maurício, onde moravam o Toninho (Testão), o Oliveira e mais uns 5 ex internos.
  Por esse tempo, a comunidade da rua Osvaldão se podia contar nos dedos e o córrego Bota frias era o que limitava esse contingente de pessoas.
  De quando em quando, alguém tentava construir um barraco no outro lado do córrego, alegando auto risco de vida, a prefeitura era avisada e derrubava o barraco, um pouco mais de tempo e aparecia outra pessoa para construir lá, vinha de novo a prefeitura e procedia da mesma forma.
  O Paraíba tinha por nome Romualdo Correia dos Santos, trabalhava no Cemitério Israelita e, além de ser um sujeito muito legal, tinha uma penca de filhos, grande parte desses, eram meninas.
  Não era nenhum gênio em leitura, mas era fera na matemática e entendia de comércio como poucos.
  Sem precisar invadir terras do lado oposto do córrego, achou uma estreita faixa de terra nas costas dos barracos e, espertamente levantou um barraco de palafitas, tal e qual os barracos da 'Favela de Alagados', por ser suspensa a moradia, evitava que as águas lhe incomodassem e metade do seu barraco ficava dentro do córrego, essa foi a principal desculpa para que o povo começasse a invasão da área vazia.
  O Paraíba era mesmo muito esperto, além de morar bem, construiu no seu barraco uma Casa do Norte, em pouco tempo progrediu e foi-se.…dizem que voltou à terra natal.
  Com a devida desculpa, em poucas semanas, no lado oposto do córrego já haviam mais de cem barracos, a invasão foi quase total.
  Contando da calçada, ao lado do bar do Kleber, uns vinte metros adentro, essa parte ficou intacta, sempre que vinha alguém para pegar o terreno, o Flavinho, que morava na laje do avô, cuja a entrada ficava na Eiras Garcia, vinha e dizia que tinha ordens da prefeitura para zelar por aquele pedaço de terra.
  E, por um longo tempo, essa conversa colou...só quem conhecia o Flavinho sabia da verdade, bom... o Flavio era meu amigo e sempre que ele me contava a verdadeira história, eu me acabava de rir.
  Aquele pedaço de terra, há anos, era usado para o cultivo da Cannabis e, então o Flavinho era o maconheiro mais feliz do mundo, produzia para o seu próprio consumo.
  Num belo dia, entregaram o agricultor à polícia, por sorte, ele não estava em casa, mas procederam a derrubada da horta, na saída da polícia, já havia gente com cavadores e meia hora depois, já havia ali, um novo barraco.
  Para esse barraco, mudou-se um casal com pouca idade, uma moça quase sem muita beleza e silenciosa e seu jovem marido, esse tipo de sujeito que te olha de rabo de olho e parece um rato, o tipo de pessoa que ninguém se sente bem em ficar ao lado, tinha esse sujeito, o habito de dar surras na moça, do nada, se ouviam as pancadas, os gritos e tudo parava, dali um tempo o cara saía na frente da casa e acendia um cigarro.
  Tem aquela história clássica..."Em briga de casal”…Todo mundo que morava por perto se sentia incomodado e, o que se pode fazer...
  Numa bela noite, assistíamos televisão, eu, o Viana e o Mauricinho, quando o Toninho veio da rua e abaixou o som, para que nós pudéssemos ouvir os gritos da moça apanhando.
  Não houve um comando, levantamos juntos do sofá e não nos conversamos, saímos de casa e descemos a João de Lorenzo, quando dobramos ao lado do bar do Kleber, o cidadão já havia terminado o serviço e já estava pitando o cigarro, nos viu e ficou tranquilo, como se não tivesse qualquer pecado no mundo, juntamos o sujeito e o arrastamos conosco e, ele gritava feito mulher.
  A primeira intenção nossa foi arrastá-lo até um terreno baldio, dos muitos que ainda haviam na Eiras Garcia, passando do bar do Kleber vinha a oficina do Arlindo, quando passamos em frente, ele abiu o imenso portão de ferro, nos olhou e em seguida saiu para a rua, jogamos aquele lixo humano lá para dentro e o Arlindo nos trancou.
  Meia hora depois, saímos, eu e o Viana, ficamos em silêncio ao lado do Arlindo a esperar o Mauricinho, ele chegou e disse:
  _. Ainda está vivo.
  Antes de dobrarmos a Osvaldão, vimos o Arlindo jogar o lixo na rua.
  . Nunca mais, o valentão nos deu o prazer de sua companhia.