quinta-feira, 15 de junho de 2017

Liberdade



 
O fim das terras do Educandário Dom Duarte se dava exatamente no fundo do Cenáculo de Nossa Senhora, esse era o limite da capital paulista também, entre o prédio das amaríssimas freiras e os mourões do sítio do Bráulio Silva, corria uma estrada longa, a qual, o sexteto tinha na conta de mágica.
  Essa estrada, geograficamente, já se encontrava em terras do Taboão da Serra, do fim da estrada, onde do alto de um enorme barranco precipitava uma longa caída, com uma mata densa e fechada, podia-se ver a BR-116, na margem oposta dessa, o gigantesco prédio da PRODESP.
  Ladeada de pinheiros e eucaliptos de replantio, tinha a garantia de sombra eterna, quando muito, o sol fazia uma linha de meio metro de claridade, bem no meio dela e alguns saguis pulavam livres por entre as arvores, o canto de várias espécies de pássaros também se faziam presentes, em toda a extensão.
  Andar por essa estrada nos era uma misto de desafio e exercício de liberdade, primeiro que, era proibido a qualquer interno, tinha um sabor de estar fora da lei e, tinha o valor histórico, contou o seu Tinoco que, foi por ali que as tropas de Getúlio Vargas tiveram acesso à Estrada Velha de Cotia e seguindo-a, surpreenderam as tropas paulistas em Pinheiros, na contenda de 1930.
  Coisa de um quilometro, no lado esquerdo da estrada, havia um pequeno casebre ao lado de um enorme barracão, onde uma senhora negra com roupas de mãe de santo ficava sentada na frente, tinha sempre o olhar perdido e parecia mesmo reagir ao canto dos pássaros.
  Quando nos convidou a entrar em sua propriedade, ao perceber que eu e o Viana tínhamos passos iguais e trejeitos parecidos, disse com um sorriso estranho:
  _Exu e Ogum são irmãos gêmeos.
  Quando havia festa, ela nos chamava para os banquetes e, em tardes calmas, ela contava, sentada em sua cadeira velha, histórias de espíritos guerreiros que amavam a liberdade.
  No dia em que passamos por ela, íamos para o confronto de futebol no Taboão, ela viu que o Sebastião estava com o grupo, quando passamos, inclinou a cabeça e disse:
  _ A Run Boboi!!! O Sebastião, que era adepto da religião dela, respondeu-lhe outra frase.
  Vendo que eu tinha a interrogação nos olhos, o Viana respondeu:
  _. É a saudação à Oxumaré.
  Do outro lado da estrada, havia um sítio de gente branca, lá não haviam mulheres, só gente mal-encarada que cuspiam no chão e andavam com armas à mostra.
  O casarão era antigo, da mesma construção dos prédios do Educandário Dom Duarte, o prédio lembrava o almoxarifado, a entrada, porém, lembrava o teatro com suas colunas romanas, dezenas de gaiolas, com pássaros de várias espécies decoravam o alpendre, tudo se podia ver da estrada, posto que, nunca fomos convidados a entrar.
  E, era sempre pesaroso, depois de passar pela casa simples da dona Maria, que falava com os bichos, ver aquela riqueza com animais privados de sua liberdade, era como se o céu fosse vizinho do inferno, nos dava tristeza.

   Naquela manhã, que era uma manhã morna de agosto, nenhum dos elementos do sexteto infernal fazia ideia de que iriam viver uma, de suas melhores aventuras.
  Quando cheguei no colégio, os cinco já eram amigos e andavam sempre juntos, o Spock, o Téquinha, o Viana e o Edson eram mais velhos e entraram com sete anos de idade, o Adilson era da minha idade, soldado raso feito eu e, já estava lá há três anos.
  Só na minha chegada foi que, começaram as aventuras de fato, como se eles estivessem me esperando, tudo o que um garoto de 10 anos precisa para ser feliz, era de amigos assim.
  Fizemos todas as obrigações no pavilhão e recolhemos as pipas com as latas de linha que escondíamos na sapateira, subimos o barranco das uvalhas, enchemos os bolsos com a fruta azeda e, debaixo da arvore cortada, começamos a correr contra o vento, o vento não estava forte e isso dificultava a subida das pipas, os maiores conseguiram colocar as pipas no alto, sem lograr êxito, eu e o Adilson nos deixamos ficar à sombra da arvore cortada, que nós batizamos de arvore fantasma, já que ela dava sombra e de noite, vista da janela do segundo dormitório, parecia uma pessoa parada na estrada.
  Não éramos bons, eu e o Adilson, no trato com as pipas, mas, gostávamos de ver as manobras que os mais velhos faziam no ar e, sempre dava para ajuda-los na hora da briga com as pipas dos rivais, tem que ser hábil para soltar ou enrolar a linha, nessas guerras aéreas, o sexteto possuía umas 50 pipas ou mais.
  Acaba que o vento não vingou mesmo, mantê-las no ar dava muito trabalho e sem ter com quem rivalizar perdia a graça da brincadeira, os outros quatro desceram as pipas, enrolaram as linhas e se acomodaram na sombra conosco, eu ainda não possuía o meu gravador portátil então, não podíamos ainda ouvir o Clube da Esquina, começaram a sugestões de que a gente poderia fazer para ocupar o resto do dia.
  É bem possível que acabássemos descendo para o campo do 14 e passássemos o dia jogando futebol então, escutamos o barulho de motor de um carro vindo da estrada do Cenáculo, olhamos todos para a direção, uma Rural passou por nós em alta velocidade, vinha com três ocupantes dentro dela, na parte traseira várias malas e no capô, algumas varas de pesca.
  A ideia não surgiu de imediato, todos atinávamos de que pessoas se tratavam, aquelas pessoas sebosas que mantinham dezenas de pássaros nas gaiolas e tinham olhares ameaçadores.
  Passados alguns minutos, todo mundo pensou na lógica daquilo tudo e, sabendo que só voltariam pela noite, a ideia foi unanime...soltar os pássaros cativos.
  Corremos para o pavilhão 14, guardamos as pipas e latas de linha e como se fôssemos uma barreira, partimos no mesmo passo, rumos à estrada mágica, fazer o bem na forma de mal.
  Enquanto esse estranho grupo caminhava, olhei no rosto de cada um deles e entendi a razão que os movia, liberdade era uma coisa que eles não tinham, alguns deles haviam sido entregues ainda bebês em orfanatos e agora caminhavam para libertar seres que nasceram para ser livres, mesmo sem ter a sua, dar aos outros já ajuda a alma...ah, eu só queria estar com meus amigos e fazer justiça, as consequências, sofreríamos juntos e de cabeças erguidas, afinal éramos cavaleiros errantes.
  Como heróis quebramos a curva da estrada, aos nossos pés e contra a luz do sol, uma fina e quase imperceptível névoa amarela subia das pontas do capim gordura e deixava um cheiro ocre no ar, ao chegarmos no portão do Cenáculo, uma noviça nos convidou para o suco com bolacha, ninguém tinha fome e, se tem uma regra nessa vida que tem poder, é aquela que reza que, nenhum órfão diz não à uma religiosa... nenhum.
  As freiras sempre advinham quando o guri tem cara de órfão, apareceram mais umas dez delas, todo o carinho e zelo foi entendido por nós como um encorajamento à execução da missão, partimos para a estrada mágica sem dúvidas de que estávamos a fazer o bem.
  Quando passamos em frente ao barracão da dona Maria, ela não estava sentada em sua cadeira, como de costume, estava em frente ao mourão da entrada do terreiro e, ao ver que alguns de nós se agachavam, adivinhou o mal feito e sorriu-nos cúmplice.
  Entramos com cuidado no sítio, subimos no alpendre e fomos abrindo as gaiolas, cada pássaro que se via livre sumia, não satisfeito em soltá-los, o Viana derrubou uma gaiola e chutou-a num gesto de fúria, o Spock fez o mesmo e o restou os imitou.
  No fundo da casa havia a mesma quantidade de gaiolas, toda gaiola que o Téquinha abria, dizia a espécie do pássaro preso...coleirinha, sabiá laranjeira, papa-capim e por aí afora.
  Quando a última gaiola foi aberta e quebrada, demos por encerrada a missão, na parte de trás da casa havia uma espécie de galpão, o Adilson se dirigiu para lá e ficamos esperando ele voltar, quando saiu, segurava numa corrente um cachorro que, de tão magro, fazia pena.
  Não voltamos pela estrada, nos fundos do sítio começava uma densa mata que ladeava o pomar e terminava no lago da olaria, mais uma aventura para o sexteto infernal, o Edson era um batedor de primeira linha e nos conduziu até o nosso destino.
  O lago da olaria ficava abaixo do campo do 14, o Adilson livrou o vira-latas da corrente, a gente sabia que ali, pelas casas dos funcionários, ele encontraria um bom lar e, passamos o resto do dia deitados à sombra da majestosa araucária do bosque.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Em três tempos




  Via de regra, eu sou um sujeito muito mal humorado, não queria me expor dessa forma, porém, se eu não dissesse isso, faltaria com a verdade... é da minha natureza, essas coisas que já vem do ovo e, não tem cura mesmo.
  Com o tempo, a gente vai abrandando, e ou, as pessoas aprendem a te aceitar como você é.
  E, aqui vão três passagens, separadas num espaço de 10 anos, onde o mau humor foi acrescido de dor de dente.
  Putz, calcule uma pessoa que já sofre da doença da chatice crônica e, junte a isso uma dor insuportável... pronto, você terá que se proteger num abrigo antiaéreo.
  Em 1978, meus amigos eram sempre os mesmos, aqueles que dividiam as aventuras do futebol e das armações, entretanto, no grupo escolar, eu era um pouco menos atirado, não participava das bagunças e não cabulava aulas... é, pra sua decepção, caro leitor, ainda que no tempo tivesse outro nome, eu era um nerd.
  Eu, o João Augusto do 12 e o Augusto do 17, costumávamos chegar umas 2 horas antes do horário e sempre ficávamos no mesmo lugar, em frente da escola havia umas arvores que desenhavam uma metade de um círculo, uma construção de alvenaria foi feita em redor dessas arvores, a intenção deve ter sido a de se fazer um jardim, mas acabou virando um enorme banco, ali os meninos aguardavam e podiam ver se algum professor faltaria para as aulas.
  Ali, naquele espaço arejado e protegidos pela sombra, nesse curto espaço de tempo, debatíamos as coisas da época, tipo:
  O espetacular poder do Uri Geller, que entortava talheres com a força da mente, a existência do Pé Grande ou os mistérios do Triangulo das Bermudas, algumas vezes, só ficávamos olhando o campão, em silêncio.
  Noutras vezes, quase chegando às vias de fato, discutíamos coisas de suma importância para  a existência humana, tipo:
  _Numa luta, quem venceria... o Coisa ou o Hulk??
  Todo santo dia, a Clarisse chegava uns minutos depois de nós e, se sentava uns cinco metros à nossa direita, ela morava no Jardim Cambará, minutos depois chegava o Clóvis e, se sentava a uns 5 metros a nossa esquerda, ele era filho de um funcionário do Cemitério Israelita que morava no serviço.
  Ambos sofriam do mal da timidez e seus olhares ficavam a se procurar e, nós três no meio dos olhares deles, todo santo dia a mesma coisa.
  Um dia falei pro Clóvis chamar a moça para uma conversa, ele disse que tomaria coragem e nada, às vezes, no calor de uma discussão, parávamos e ficávamos constrangidos com os olhares deles, parecia que os dois estavam no meio da nossa conversa.
  Num belo dia, acordei com o dente do siso me rasgando a gengiva, a dor era qualquer coisa entre o inferno e coisa pior, fui à administração e, dentista ... só no dia seguinte, peguei um sol de rachar o dia todo e, a dor só aumentava, não pude mastigar o almoço e fui para escola, quando cheguei, já estavam lá os amigos, que perceberam que eu não estava bem, o mundo rodava e a dor aumentava.
  Como de costume, chegou o casal e ficaram a nos fitar, isso fez a dor ir ao ponto da explosão.
  Levantei-me e fui ter com a Clarisse:
  _Está vendo aquele guri ali? Ele quer te namorar e não tem coragem, você quer namorar ele e não tem coragem...
  Peguei-a pelo braço e a levei até ele.
  _Esse cara nunca vai se declarar... pelo amor de Deus, aceita logo e mudem de lugar, caramba.
  As últimas palavras saíram gritadas, sem opção, o Clóvis a tomou no braço e os dois saíram para o lado do lago.
  No dia seguinte, nenhum dos dois apareceu na escola, no dia seguinte chegaram de mãos dadas, mas foram se acomodar para os lados da casinha do campão, que era mais apropriado para um casal.
  Quando a escola fechou para a reforma e tivemos que nos mudar para o Attiê, ficou muito longe para os dois e, eles foram estudar no Guiomar, nunca mais os vimos.
  Em 1988, eu já era pai de uma filha e morava na Osvaldão, o mesmo dente me machucava, a massinha caíra e uma carie me corroía a gengiva.
  Na época do prefeito Mario Covas, havia dentista 24 horas no posto de saúde do São Jorge.
  Eu estava sentado na saguão de espera, quando um sujeito muito grande e calvo apareceu gritando para o meu lado:
  _Pinhé, como vai à vida?
  Sem olhar para as fuças do sujeito, já fui rebatendo:
  _Pinhé é o escambau, meu nome é Nilton.
  O sujeito parou na minha frente com os braços abertos:
  _Sou eu, o Clóvis.
  Não demonstrei entusiasmo, ele percebeu a minha cara de dor e disse:
  _Daqui a pouco eu volto e, saiu porta afora.
  Esperei um pouco mais e fui atendido, um alemão com os olhos vermelhos enfiou uma seringa na minha gengiva, depois que a anestesia fez efeito, meteu o boticão e arrancou o dente, perguntou se eu o queria, diante da negativa, encestou no lixo sem chuá.
  Quando sai da sala, meio cambaleando, estavam lá o Clóvis e a Clarisse com duas crianças pequenas e um bebê ao colo.
  Fiquei feliz, a Clarisse me deu o bebê, perguntei o nome da linda criaturazinha.
  _Nilton. Responderam juntos.
  Dez anos mais tarde, o guri apareceu para jogar no meu Dínamo Futebol Arte...
  . Num dia de fúria, durante uma partida, meu time perdendo e meu dente doendo, esse menino ousou questionar meu método, fiquei furioso.
  Eu disse para o atleta:
  _. Está falando o que menino, se não fosse eu, você nem teria nascido.

E o coadjuvante vira artista principal.

 
  É certo que eu gosto de falar de mim na terceira pessoa e, por um bom tempo, eu fui expectador das proezas dos meus amigos, as amizades da infância são pra sempre.
  Não obstante, um dia eu teria que seguir o meu próprio caminho, ser o norte da minha vida.
  Logo na primeira semana que desembarquei em terras Educandariana, veio o Jordão e disse pros guris do 14:
  _Estão vendo esse gurizinho, tratem bem dele, esse guri é meu primo.
  Lógico que isso não era verdade e, esse favor eu fiquei devendo para o Jordão, que já cuidava de mim, desde a Casa de Infância, isso me deu um respeito que eu jamais conseguiria, me livrou de ter um caminho difícil.
  Eu vinha de um colégio de freiras e nunca havia pisado descalço no barro, a adaptação à nova vida foi rápida, mas eu gostava de ser, da turma, o que menos chamava atenção pra si.
  Já houveram pessoas que disseram conhecer todos os meus amigos de infância e assim mesmo, não se lembravam de mim.
  Não me magoa, era assim que eu gostava de viver, quase invisível e, isso tinha uma vantagem.
  Quando o caldo entornava, ninguém sabia que eu estava lá e, sempre escapava das consequências.
  No fundo, eu era triste, e esses novos amigos me ensinaram que a alegria está nas coisas mais simples da vida, andando com eles, eu aprendi a ser feliz e, pra aprender, eu tive que ser um observador quase invisível.
  Gostava de ficar observando o pessoal do teatro, não por ser fã das artes cênicas e sim pela música, essa turma gostava de peças musicais.
  Por não ter idade suficiente, não poderia estar em cena, eu ia assistir na esperança de aprender e ficava ali, sem que os atores me notassem.
  Sempre tive facilidade com as letras, um dia entreguei uma pilha de papéis ao Jordão e recomendei:
  _Se perguntarem, diga que é de sua autoria.
  E assim foi feito, a peça foi ensaiada e o Jordão musicou as parte de poesia, disse pra todos que a autoria era dele.
  Eu tinha certeza que, se soubessem, que tinha sido escrita por um guri de 13 anos, jamais encenariam, alguns dos atores tinham o rei na barriga.
  Às vésperas da festa da Liga, o Jordão foi me procurar, disse que a peça seria representada no dia e, que precisava de uma poesia inédita, para ler no dia.
  Escrevi um poema que falava dos caminhos do Educandário Dom Duarte, um poema quase parnasiano, dei-o ao amigo, quando eu ia fazer a recomendação, me disse o Jordão:
  _Tá bem, vou dizer que os versos são meus.
  E, diante da presença das senhoras da Liga das Senhoras Católicas, com o teatro lotado, os meninos com suas calças jeans azuis e suas camisas brancas, cada um com o saco de "bode" na mão, a peça foi encenada e, até elas aplaudiram com entusiasmo, é claro que eu, aplaudi mais que todo mundo.
  Depois da palestra do padre Paulo, para encerrar a festa, veio o Jordão com ar imponente, tomou o microfone e interpretando com fervor, recitou o poema.
  O amigo era tão bom que, o poema empolgou a plateia, ficou o Jordão a esperar o termino dos aplausos, uns cinco minutos.
  Quando se fez o silêncio, o Jordão falou:
  _Senhoras e senhores, tanto a peça como o poema que acabei de recitar não são meus, são de um amigo.
  Entre as cadeiras da turma do 14 não havia como me esconder, assim mesmo, eu tentei.
  A expectativa se fez no público e o Jordão me procurava na plateia, como não me achou, gritou em alto e bom som:
  _O autor é Nilton Victorino Filho.
  Ainda abaixado, ouvi a salva de palmas, os meninos do 14 aplaudiam mais que todos, na saída todos me olhavam e cumprimentavam.
  Depois desse dia ficou difícil passar pelas pessoas e não ser reconhecido passou de uns 50 amigos pra mais de 200 e... nunca mais fui invisível.