quarta-feira, 14 de junho de 2017

E o coadjuvante vira artista principal.

 
  É certo que eu gosto de falar de mim na terceira pessoa e, por um bom tempo, eu fui expectador das proezas dos meus amigos, as amizades da infância são pra sempre.
  Não obstante, um dia eu teria que seguir o meu próprio caminho, ser o norte da minha vida.
  Logo na primeira semana que desembarquei em terras Educandariana, veio o Jordão e disse pros guris do 14:
  _Estão vendo esse gurizinho, tratem bem dele, esse guri é meu primo.
  Lógico que isso não era verdade e, esse favor eu fiquei devendo para o Jordão, que já cuidava de mim, desde a Casa de Infância, isso me deu um respeito que eu jamais conseguiria, me livrou de ter um caminho difícil.
  Eu vinha de um colégio de freiras e nunca havia pisado descalço no barro, a adaptação à nova vida foi rápida, mas eu gostava de ser, da turma, o que menos chamava atenção pra si.
  Já houveram pessoas que disseram conhecer todos os meus amigos de infância e assim mesmo, não se lembravam de mim.
  Não me magoa, era assim que eu gostava de viver, quase invisível e, isso tinha uma vantagem.
  Quando o caldo entornava, ninguém sabia que eu estava lá e, sempre escapava das consequências.
  No fundo, eu era triste, e esses novos amigos me ensinaram que a alegria está nas coisas mais simples da vida, andando com eles, eu aprendi a ser feliz e, pra aprender, eu tive que ser um observador quase invisível.
  Gostava de ficar observando o pessoal do teatro, não por ser fã das artes cênicas e sim pela música, essa turma gostava de peças musicais.
  Por não ter idade suficiente, não poderia estar em cena, eu ia assistir na esperança de aprender e ficava ali, sem que os atores me notassem.
  Sempre tive facilidade com as letras, um dia entreguei uma pilha de papéis ao Jordão e recomendei:
  _Se perguntarem, diga que é de sua autoria.
  E assim foi feito, a peça foi ensaiada e o Jordão musicou as parte de poesia, disse pra todos que a autoria era dele.
  Eu tinha certeza que, se soubessem, que tinha sido escrita por um guri de 13 anos, jamais encenariam, alguns dos atores tinham o rei na barriga.
  Às vésperas da festa da Liga, o Jordão foi me procurar, disse que a peça seria representada no dia e, que precisava de uma poesia inédita, para ler no dia.
  Escrevi um poema que falava dos caminhos do Educandário Dom Duarte, um poema quase parnasiano, dei-o ao amigo, quando eu ia fazer a recomendação, me disse o Jordão:
  _Tá bem, vou dizer que os versos são meus.
  E, diante da presença das senhoras da Liga das Senhoras Católicas, com o teatro lotado, os meninos com suas calças jeans azuis e suas camisas brancas, cada um com o saco de "bode" na mão, a peça foi encenada e, até elas aplaudiram com entusiasmo, é claro que eu, aplaudi mais que todo mundo.
  Depois da palestra do padre Paulo, para encerrar a festa, veio o Jordão com ar imponente, tomou o microfone e interpretando com fervor, recitou o poema.
  O amigo era tão bom que, o poema empolgou a plateia, ficou o Jordão a esperar o termino dos aplausos, uns cinco minutos.
  Quando se fez o silêncio, o Jordão falou:
  _Senhoras e senhores, tanto a peça como o poema que acabei de recitar não são meus, são de um amigo.
  Entre as cadeiras da turma do 14 não havia como me esconder, assim mesmo, eu tentei.
  A expectativa se fez no público e o Jordão me procurava na plateia, como não me achou, gritou em alto e bom som:
  _O autor é Nilton Victorino Filho.
  Ainda abaixado, ouvi a salva de palmas, os meninos do 14 aplaudiam mais que todos, na saída todos me olhavam e cumprimentavam.
  Depois desse dia ficou difícil passar pelas pessoas e não ser reconhecido passou de uns 50 amigos pra mais de 200 e... nunca mais fui invisível.


terça-feira, 13 de junho de 2017

O teatro do Educandário Dom Duarte.




  Não quero ser repetitivo demais, portanto não vou dizer, de novo, o quanto eu apreciava esse prédio, na minha memória, ele só perderá para o pavilhão 14 e para o campão.
  Muitos momentos importantes vivi ali e, uma vida não se conta com regras de cronologia, se conta em momentos, como flashes que vem ao acaso.
  A mangueira do 14 era vizinha do teatro, de cima dela ou a seus pés, eu sempre podia ouvir as músicas que vinham dos seus autofalantes, músicas que ainda ouço e, me transportam para esses tempos felizes e coloridos.
  A missa de domingo era celebrada ali, bem como as festas da Liga, depois da missa havia sempre um filme ou um show.
  O inesquecível Giuliano Gemma protagonizava o clássico filme "Por teto, um céu de estrelas", faroeste italiano com muitos tiros que, conta a história de uma vingança, a pouca luz da noite do Oeste deixava no breu a plateia, nas cenas de suspense dava para ouvir o bater dos corações aflitos dos meninos e, se a cena fosse exagerada, vinha um sonoro NÓÓÓ seguido de apupos e risadas.
  Explica-se que, na língua educandariana, nó era uma redução de Nossa Senhora, que se usa de interjeição para conotar espanto, esse “nó” que os meninos largamente pronunciavam, servia para manifestar vários sentimentos, como espanto, incredulidade, desaforo ou dúvida, sendo usado em duplo sentido, quando se queria dar conotação bizarra às coisas e momentos.
  Num domingo desses, um mágico se apresentou para essa plateia, se apresentava como mexicano...Gonzáles ou Morales, confesso que não me lembro o nome da criatura, porém, pelo sotaque, não chegaria ao bairro de Santo Amaro.
  Logo no primeiro truque, aquele manjado de cartas, deu a primeira mancada, todos os meninos perceberam a falha, um deles denunciou:
  _Nóóó, a carta estava na outra mão...nóóóó.
  Daí para frente, a coisa só ficou pior, ele se desculpou e fez um outro truque, esse foi pior que o primeiro e a turma:
  _Nóóó, encanei.
  Aparentemente, se tratava do pior mágico do mundo, esqueceu o portunhol e se desculpou com os meninos, um adulto e profissional pedindo desculpa para crianças.
  Fez mais alguns truques e, a mesma coisa se sucedeu, os nós e as vaias se agigantavam.
  O estranho é que ele não parecia apavorado, a cada fracasso, ria um riso cínico e, anunciou o último número, para tal precisaria de um voluntário da plateia.
  Não tenho bem certeza se o Marco Roberto do 15, que tinha uns oito anos, se ofereceu ou se foi empurrado ao palco.
  O mágico infeliz pediu o máximo de concentração de todos e todos riam, estava claro que não funcionaria esse outro truque, fosse qual fosse a marmota.
  Dirigiu-se com calma aos seus pertences e tirou de lá uma capa preta, uma enorme capa preta e, cobriu o guri com ela, ele não media mais que metro e meio de altura, evidentemente que a capa lhe servia como um cobertor... gritou uma palavra estrambólica e retirou a capa...o menino havia sumido de verdade.
  Fez-se um silêncio constrangedor, o mágico saiu rindo do palco, quando estava no meio do corredor que separava as duas metades das cadeiras da plateia, interrompeu a caminhada, cessou a risada e gritou, olhando em redor:
  _Nóóóó.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Um Ioda Negão??



 
  É certo que, todo discípulo carrega pra sempre, uma marca, aquilo o difere dos outros, um jeito que vai ficar pra sempre, uma marca peculiar de aprendizado, na idade média, todos os cavaleiros de Orleans, norte de França, tinham um modo específico de empunhar a espada, podia-se perceber, por essa sutil diferença, todos os alunos de Pierret, mestre de armas daquela região, eles não precisavam se identificar, bastava que alguém os vissem em batalha e, o simples manejo da espada, denunciava-lhes a escola.
  Assim também aconteceu com os atletas do Dínamo Futebol Arte, o jeito de chutar a bola, passou a ser uniforme, todos chutavam da mesma forma...45 graus de distanciamento, corpo apoiado na perna esquerda, a batida, entre o calcanhar e o peito do pé e, bola no angulo esquerdo do goleiro.
  O Victor, o Erasmo Anderson, o Maciel Henrique, o Maicon Melo, o Dener Alexandre Camargo Dos Santos, o Jose Roberto Sales Roberto, o Lagoa, o Rodriguinho, o Alex, o Alessandro Diniz, a Adriana Dourado, a Cacilda e muitos outros, batiam faltas do mesmo jeito, do jeito que eu ensinei-os a fazer, que era o meu jeito, minha assinatura.
  Mas pra se tornar mestre, faz-se imperativo que se tenha de onde aprender, só se chega a mestre, através da mão de outro mestre.
  Vou contar como eu aprendi a bater na bola, ou, como eu me permiti, aprender o futebol.
  . Eu tinha, entre 9 e 10 anos e morava num orfanato, o Educandário Dom Duarte, muito magrinho e com dificuldades no trato da bola, em outras palavras, peréba mesmo...O leitor já se deu conta que, perebas acabam se tornando professores de Educação Física? Aconteceu comigo também.
  No campo do lar 14, como em todo lugar, prevalecia a "lei do mais forte", por conta disso, quando os grandes desciam para jogar bola, nós pivete, saíamos do campo e, se ficássemos, eles nos atropelariam, simples assim.
  Mas, diferente dos outros meninos, eu não ia embora, ficava no barranco, assistia-os jogar.
  Procurava assimilar tudo, quando eles cansavam e saiam do campo, eu descia e os imitava, assim eu fui, gradativa e lentamente, aprendendo a arte.
 E por mais que eu me esforçasse, a evolução era lenta, meus amigos, que já tinham a habilidade natural, estavam anos-luz, na minha frente, resolvi, que tinha que ter uma arma a mais para me igualar, ter uma batida potente, me colocaria na vantagem e todos teriam que me engolir no time.
  Entre os grandes, havia o maior de todos, seu nome era José Aparecido dos Santos, mas só atendia pela alcunha de Roda, tinha uns 15 anos e era o tuba.
  Tuba era a definição que se dava ao mais forte, o bam-bam-bam, é uma derivação de tubarão, o que valia dizer que ele devorava os outros peixes do aquário.
  Meninos, tem, por habito, admirar os maiores, mas nesse caso não, tínhamos medo do Roda.
  Ele era o mau humor em pessoa, gostava de bater, batia em todos, por puro prazer, vendia sangue, para comprar cachaça e cigarros, caçava cobras e vendia ao Instituto Butantã, para manter o vício da maconha.
  Era provavelmente a pessoa mais odiada da face da terra, mas quando começava uma partida de futebol, todo mundo o amava, jogador completo, tudo o que os outros consideravam ótimos ele superava e, de longe.
  . Eu era inteligente, observava tudo e executava, certa manhã, jogando um contra no campinho do 17, nós jogamos contra o time dos grandes, o Roda observava atendo, do alto do barranco, eles tinham o Moacir, o melhor de todos os goleiros do Educa, simplesmente uma lenda.
  Não tínhamos a mínima chance de vencer, mas, não queríamos passar em branco, reuni meus amigos, O Téquinha, o Spock, o Lucídio e o Feliz, falei-lhes que o Moacir telegrafava os movimentos e mostrei como fazer para vencê-lo.
  Toda vez que contra-atacávamos, fazíamos um triangulo na frente dele, o da frente ameaçava, o goleiro caía, ele tocava para o cara da direita e quando esse chegava em cima do Moacir, tocava para o da esquerda, esse só tinha o trabalho de conferir, conhece a satisfação de um guri de 10 anos, que acaba de fazer gol num goleiro de seleção e que tinha 16 anos????
  Não ganhamos o contra, mas fizemos 8 gols, do mesmo jeito, revezando as posições do triangulo, na hora da saída o Moacir, que não gostou nada de tomar gols dos pivetes, achou que o Téquinha estava muito feliz e disse que ia nos dar uma lição e, veio correndo, pra bater em nós.
  Já havíamos começado a corrida, quando o Roda gritou:
  -Se bater nos meninos, vai se ver comigo.
  E, quando fomos agradecer pelo favor, ele sorriu e deu uma piaba em cada um, pela primeira vez, vimos o Roda sorrir.
  Dias depois, eu estava assistindo ao jogo da seleção, como de costume, no campão do EDD, eu ficava sempre no mesmo lugar, na lateral esquerda, perto do fosso, gostava muito daquele lugar.
  Nesse jogo, nosso time não estava bem, o time deles tinha uma defesa muito boa, marcavam em bloco e o Roda tinha quatro marcadores, no contra-ataque, eles fizeram um gol, por mais que ele tentasse, não conseguia vencer a defesa.
  Quando terminou o primeiro tempo, o Moacir acenou para mim, quando se dirigia ao vestiário, pensei que fosse ameaça e não fui com ele.
  Pouco depois, vieram, ele e o Roda em minha direção, o Moacir bateu na minha cabeça e disse:
  -Fala, sabidão...como é que a gente faz agora?
  O Roda se abaixou, para poder ficar da minha altura, enquanto eu falava:
  -Todos os seus marcadores são destros e te levam para o lado esquerdo, sabem que você não usa a perna esquerda, leve-o para a esquerda e corte para a direita, mas seja rápido, enquanto falava, mostra o campo e com a mão, mostrava a diagonal.
  Todo mundo achou estranho, menos os meus amigos, esses se juntaram a mim, pra ver o que dava.
  Começou o segundo tempo, bola na mão do Moacir, chute preciso, a bola acha o Roda na intermediaria, três marcadores estão à sua frente, ele dá um leve toque com o pé direito, ajeita ela no lado esquerdo, com velocidade, põe a bola do lado esquerdo, dominando-a com a perna esquerda, os marcadores também estão em velocidade, quando a bola parece que vai sair na linha de lado, ele ajeita o corpo, com a perna direita corta, no corte, ele tira os três do jogo e está na cara do goleiro, goleiro no chão e a bola já havia passado, por baixo dele.
  Ele fez mais 4 gols, dizem que nesse dia ele virou canhoto, no final do jogo o Moacir foi agradecer, o Roda só deu um sorriso amarelo e foi embora.
  . Eu não achava, de fato, ele fosse agradecer, a satisfação de colaborar com o meu time de coração me bastava, a vida segue, eu segui a minha, sozinho no campo do 14, eu treinava, eu e a trave.
  . Num belo dia ele desceu, pegou a bola e na educação, que lhe era peculiar disse:
  -Olha aí, seu FDP, é assim que se faz.
  Doou meia hora de seu tempo no mundo para me ensinar e, nunca mais falamos disso e, por menor habilidade que eu tivesse, eu agora sabia chutar.
  ...E foi assim, por causa do chute, que um guri peréba saiu do banco, para ser o camisa 10 do Grêmio Educandário.