domingo, 25 de junho de 2017

O seu Felipe



  . Se aquela imagem da portaria, que virou até tela de quadro, nos identifica e nos leva a ter boas lembranças da infância, a lembrança do porteiro, nos dá a mesma satisfação.
  O seu Felipe se esforçava para ser um profissional linha dura, daqueles que cumprem tudo à risca, fora do seu horário de trabalho era bonachão e, ao lado do seu Bernardo, jogava truco valendo dinheiro e frequentava casas de má reputação no bairro Pinheiros e na Boca do Lixo.
  Quem o via na portaria, nem imaginava que era um homem, para usar um termo atual, descolado.
  Era são paulino doente, para ele, o pior de todos os bandidos do mundo se chamava Vicente Matheus.
  _Por que, seu Felipe?
  _Estava tudo certinho, o Sócrates já estava comprado e, vai o bandido na calada noite e.…
  Eu me acabava de rir daquele careca ridículo, que como eu disse em outra postagem..."Me viu entrar criança e sair adulto feito".
  Mas, nem sempre foi assim, a consideração minha para com o porteiro.
  Ás vezes, eu ganhava uns trocadinhos e queria gastá-los, comprar umas guloseimas no Mercado Paraná ou no bar do Brás.
  Via de regra, saíamos pela casinha de força, se saíssemos pela portaria, seríamos barrados e o seu Felipe diria:
  _Menor, só sai com um bilhete da administração.
  Essa era a ordem que ele tinha que cumprir, independente da nossa indignação.
  Uma tarde, estávamos eu, o Viana e o Chumbinho, depois de uma rebatida no campão, resolvemos que, à pulso, sairíamos pela portaria, gostasse o seu Felipe ou não.
  Ficamos na escadinha, perto do mastro da bandeira e, assim que um carro ficou em frente do grande portão, nos levantamos.
   Preparados na estrada de paralelepípedos esperamos com calma, o porteiro abriu as duas partes do portão, com uma prancheta na mão, passou a fazer perguntas para o motorista, nesse instante passamos correndo e ganhamos a rua, para voltar, usamos a casinha de força.
  Claro que a ousadia nos custaria caro, o seu Felipe iria contar na administração, ficamos preparados para o pior... entre a mão pesada do Domingão e os beliscões na barriga, que o Augustão daria e até, o castigo no corredor, a escolha era difícil.
  Estranhamente, passaram-se uns dias e nada aconteceu, curiosos, fomos à pensão no período da tarde e, ele estava jogando com o seu Bernardo.
  Perguntamos o motivo de ele não nos ter denunciado.
  _Para que? Vocês iriam apanhar ficar de castigo... tudo repetido.
  . Falou conosco sem tirar o olho do adversário, depois, com calma disse:
  _. Fiquem aí que, depois que eu rapelar esse marreco, vou ensiná-los a jogar dominó.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

O Jordão.



 
 Toda a minha vida, para cada momento, tem uma canção para se lembrar, minha memória funciona como se a música fosse a bateria.
   Poucos dias depois da inauguração da cozinha central, estávamos de bobeira, do lado de fora do refeitório e cantávamos.
  A comida não era mais feita no pavilhão 23 e o chefe era o Ivo.
  Nós, eu, o Chumbinho, o Téquinha e o Viana, estávamos em horário de descanso, já havíamos servido o almoço e lavado as bandejas da refeição.
  Tínhamos o habito de cantar como se fossemos um coral, os quatro juntos, éramos todos jogadores do infanto-juvenil e, por conta disso, eu estimo que eu estava com uns 12 anos, os outros tinham um ano a mais que eu.... Se não me falha a memória, nesse dia, era Fagner que cantávamos...
  Ai, coração alado desfolharei meus olhos nesse escuro véu.

  Ainda cantando, pudemos observar que o Jordão descia a rampa do pavilhão 15, vinha em nossa direção, com ares de quem ia nos mostrar uma coisa surreal.
  Carregava no ombro direito um grande rádio portátil (aquele dos anos 80) ao aproximar-se de nós, tirou do deck uma fita cassete branca... Clube da esquina 2, e ria, um riso desafiador que nos incomodou.
  O Jordão era mais velho, tinha uns 16 anos, cantava num coral profissional e, ainda fazia teatro.
  . Batia a fita no peito e ria.
  -Vocês acham que isso é música?
  -E o que é que você tem aí? Perguntei-lhe, já constrangido.
  -Milton Nascimento.
  -Ah, já conhecemos Milton-disse o Téquinha – E, nem é tudo isso.

  O Jordão era um negro alto e magro, com sua cabeleira Black Power ele ficava bem mais alto, pôs a fita no deck, sem ainda o fechar, colocou com zelo o rádio no chão e passou a bater no cabelo, como quem os arredonda.
  _Crianças inocentes... sentem-se e prestem atenção.
  Sentamo-nos e, ele fechou o compartimento da fita, em seguida apertou o botão de ligar e foi bobinando até chegar a faixa desejada.
  De repente, a música tirou-nos do chão, era como se levássemos, ao mesmo tempo, um soco no estomago.
  O que era aquilo?...Que som era aquele?...Que letra agressiva.
  Que tipo de poesia era essa??? E, o Milton Nascimento cantava em duas vozes???
  Ele ainda tocou a música duas vezes mais e, foi-se embora.
  . Ficamos ali, por algum tempo atônitos.
  Desse dia em diante, o Jordão virou nosso GURÚ.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

A história de um gol.




  Com a licença do leitor, vou contar a história de um gol, não a mera narrativa de um gol magnífico e inesquecível, não... Fazendo isso, vou lembrar-me de pessoas importantes, pessoas que já se foram e, pessoas que são vivas vou contar sobre a evolução de um menino, não um simples gol de placa e sim o gol que marca a evolução de um homem.
  Já contei que assistia os mais velhos, jogando no Grêmio, sonhava em vestir a camisa preta e fazer um gol no campão seria a realização de um sonho, mas não nasci com a habilidade que se exige numa seleção, julguei que poderia haver um jeito que me encurtasse o caminho.
  Se por um lado, eu não tinha a habilidade motora, por compensação, Deus me deu uma capacidade intelectual fora do comum e, sendo assim, eu poderia aprender as coisas só olhando.
  Para encurtar o tempo aprendi a chutar, ficava observando o Roda, dono de uma bomba que fazia a trave de ferro zunir, toda tarde, no campo do 14, ele pegava a bola de capotão e sentava o dedo nela.
  O pobre do Zé Maria queria reclamar, mas a miséria do negão era cabuloso, todo mundo tinha medo dele, vira e mexe, ele quebrava as traves de madeira, isso, quando não estourava a bola.
  Num belo dia, durante o campeonato interno expliquei para ele o que ele tinha que fazer para escapar da marcação cerrada do time do 15 e, ele marcou quatro gols, com isso, consegui o respeito dele, o medo que eu tinha dele se foi e essa foi à primeira lição:
  Se existir o respeito, não tem necessidade do medo.
  . Para pagar o favor, no campo do 14, o Roda, que era a pessoa mais antissocial do mundo, me ensinou a arte de bater na bola.
  Passei a cobrar todas as faltas, escanteios e tiros de meta.
  . Para ser convocado, aprendi a segunda lição:
  “Uma andorinha não faz verão”.
  Junto com o Feliz e o Viana, formamos um trio que assombrou o campeonato interno de 1980, a convocação veio porque o Matheus do 11, que já jogava no Grêmio, convenceu o professor Claudinei que o trio do 14 era muito bom, o professor teve que chamar nós três.
  Quando chegamos ao Grêmio, tinha o Faustino do 16, o André do 20, o Dalcides do 13, o Matheus do 11, o Celso do 24 e o Mocó do 21... todos fora de série e todos eram volantes, entendi que, dificilmente eu vestiria a camisa 5.
  Terceira lição: Adeque o seu sonho à sua realidade.
  Nessa altura, já havia aprendido tudo, sobre todas as posições e, já era o técnico do time dos pequenos do 14, virei coringa e dono da camisa 15, entrava no segundo tempo e segurava o jogo... Quarta lição: “A paciência é a maior de todas as virtudes”.
  Nesse ponto, aconteceu uma coisa estranha, ao lado do professor, observando os jogos, aprendi a chave do jogo.
  Não fazia mais questão de entrar em campo, perdíamos o jogo contra os “Pequeninos do Jóquei” e o professor me chamou, disse que eu tinha que consertar a falha na lateral esquerda, o chamei de lado e disse que ele tinha que colocar o Celso em jogo, que era mais forte e mostrei para ele o lateral que começava todas as jogadas, completamente atordoado, ele chamou o Celso e passou as instruções que eu havia dado, fiquei ali, ao lado do professor Claudinei, que era uma espécie de Robin Hood, trabalhava numas três escolas particulares, ganhava muito dinheiro delas e, trabalhava de graça no Educandário Dom Duarte.
  Bom, o Celso entrou em campo e marcou o adversário certo, anulando a saída de bola deles, nosso time cresceu e empatou o jogo, depois da expulsão do Celso e do guri que ele marcava viramos o jogo.
  Ganhei o respeito do professor e virei auxiliar dele, ali, ao lado do campo o professor me ensinou o que me faltava de esquema tático e de amizade.
  Mas, treinava junto com os guris, o sonho do gol ainda estava presente, a quinta lição:
  “Esteja preparado para quando a sorte lhe sorrir”.
  E a sorte sorriu, o Baianinho do 11 estava suspenso do campeonato do DEFE e o Arthur do 19 estava doente, o professor mandou que eu usasse a camisa 9 nesse jogo, quando passei perto da arquibancada, vestindo a camisa preta do Grêmio, os amigos aplaudiram... me lembro da alegria do Pelezinho do 12, cujo talento justificava o apelido, usava a camisa 10 e disse que ia me ajudar.
  No outro lado do campo, estava o Guarani de Campinas, caso o jogo terminasse empatado, a vaga seria deles, enquanto amarrava os cordões do Kichute agradecia aos céus a oportunidade e a honra de servir o meu time em companhia dos meus amigos, tinha a certeza que faria um gol naquela manhã nublada de domingo, nem que fosse de canela, nem que fosse de nariz.
  Começa o jogo e mesmo o Guarani podendo empatar, foi para cima, nosso time estava nervoso e sem comando, mal conseguimos passar do meio de campo, dois jogadores marcavam o Pelezinho e ele mal conseguia dominar a bola, me dava vontade de voltar para defesa, ajudar os amigos, quando eu ameaçava em fazê-lo, o professor gritava para eu ficar no ataque, defendendo do jeito que dava, conseguimos ficar sem tomar gol.
  Estava posicionados entre os dois zagueiros do Guarani, na linha de meio de campo, na hora do escanteio do adversário percebi que o Pelezinho fez sinal para o André, o Pelezinho entrou na área e o André saiu, foi se posicionar na intermediária, percebi o que estavam tramando, com os olhos mostrei para o volante que estava exatamente no meio dos zagueiros, o passe teria que ser com curva e, isso ele sabia fazer com maestria.
  Cobraram o escanteio, o Faustino tirou de cabeça, a bola foi cair no pé do Pelezinho, correram para pegar o camisa 10 e esqueceram-se do André, o neguinho ameaçou de correr pelo lado esquerdo foi seguido e, sem olhar, tocou no lado direito para o André que, livre de marcação, dominou rápido, com rara habilidade enfiou a bola nas costas do primeiro zagueiro, tirando-o da jogada, quando eu a matei no peito do pé, interrompi a curva que ela ia fazer, o último zagueiro passou lotado, rompi a linha do meio e tinha a bola sob meu domínio, vendo que eu vinha sozinho em sua direção, o goleiro se apavorou e saiu para me pegar fora da área, tarde demais, antes que ele chegasse, toquei de chapa e fiquei olhando o arco que ela fez, caiu perto do travessão e estufou a rede, queria correr para comemorar a beleza daquele gol, qual nada, os amigos pularam em cima e me derrubaram, quando consegui sair do bolo de gente, o juiz estava tirando a torcida de dentro do campo.