terça-feira, 20 de junho de 2017

O Luiz Paulo.




  Esse era muito popular entre os internos, pelo fato de ter sido um interno e ser muito jovem.
  Negro, d'um negrume que reluzia, num tempo de forte racismo, era a pessoa que contava as melhores piadas de negros.
  Sua função, no colégio era a de emergente, ele substituía o larista em sua folga e nas férias, mas acabava que fazia outras funções, uma delas era a de motorista da Kombi.
  Seu porte, esguio e muito magro, rendeu-lhe o apelido de formigão, falava alto e tinha um sorriso contagiante, conseguia ser popular entre os internos, sem cair em desagrado com a diretoria.
  Quando a diretoria dos "irmãos" foi embora, ele assumiu a função, que antes cabia ao irmão Augusto, passou a buscar a comida, no Mercado Municipal de São Paulo e levar as pessoas para a Liga das Senhoras Católicas...E, ele sempre dizia, em tom de piada:
  _. Para pegar os pés de frango, eu levo os meninos do 14, que era o pavilhão de pretos, para ir às festas da Liga, eu levo os branquinhos do pavilhão 22.
  E, piadas à parte, a divisão de menores nos pavilhões, seguia mesmo essa regra.                   
  Com a nova diretoria, o Luiz Paulo ganhou o status de intocável, passou a ser o motorista da própria diretora, a dona Camila.
  Como eu disse, ele era muito querido, em qualquer rodinha que chegava, era bem recebido, até técnico da seleção mirim, ele se tornou.
  Um dia, quando terminávamos o treino de futebol no campão, ele me disse que fosse logo para "casa" e me trocasse rápido, pois iríamos sair num rolê louco, fui correndo para o 14, que nessa época não tinha larista, o Odilon havia sido demitido e a fama dos meninos do lar 14, dava medos nos pretendentes ao cargo, a responsabilidade ficou nas mãos do Luiz Antônio, o mais velho de todos, que tratava à todos como se ele fosse um irmão mais velho, o pavilhão, nessa época era o paraíso na terra.
  Quando eu estava, de frente do espelho da área, ajeitando o Black, ouvi a buzina, olhei para a  estrada que levava ao cenáculo e havia uma Mercedes Bens estacionada, o sol das onze horas batia e reluzia no verde metálico do carro importado, o motorista saiu, pra mostrar a roupa, trajava um agasalho completo, verde com duas listras brancas nas laterais e um tênis Nike branco, só professores de educação física os usavam em 1979, uma grande corrente de ouro no pescoço, completava a estica...é, o negão estava em punga mesmo.
  E, fomos ao rolê, dois negrões num carro importado, ao som de Joe Egan e Isley Brothers...sensacional.
  A missão era simples, ir até a outra escola, onde a dona Camila também era diretora, que ficava no Quilômetro 35 da Raposo Tavares, consertar o pé da mesa do altar da igreja e pendurar uns quadros da santa ceia, nas paredes laterais, quando chegamos nas proximidades do colégio, ele me deu o volante e, no banco do passageiro, passou instruções para eu conduzir e estacionar o carro, apesar de grande, eu tinha 13 anos.
  Faltavam uns cinco quarteirões pra chegar ao nosso destino, quando uma viatura preta e vermelha nos abordou, descemos do carro e notamos que os policiais estavam mais nervosos que o normal, abordaram- nos de longe, no que eu abri a porta, o policial que havia se posicionado ao lado, engatilhou a arma e tremia, o que estava na porta do Luiz Paulo fez pior, quando ele abriu a porta, o policial caiu para trás e se protegeu, de joelhos, as armas sempre na nossa direção, o terceiro policial se posicionou na nossa frente e portava uma submetralhadora, já destravada, o motorista já estava fora da Veraneio e com um pé fora do carro e mais outro dentro, tinha nas mãos uma escopeta.
  Eu tinha medo de levantar as mãos, qualquer movimento em falso, seria o nosso fim, barulhos de sirene, mais duas viaturas chegaram, em 3 segundos estávamos cercados por todos os lados, gritaram para que colocássemos as mãos na nuca, todas as armas acompanharam os movimentos, mandaram que nos deitássemos, reparei que apesar de estarem ameaçando os dois, todos davam mais atenção para o Luiz Paulo, todos os olhos estavam voltados para ele.
  _. Conhece o doutor Toledo? -Perguntou o tenente.
  _. Conheço, eu trabalho para a filha dele.
  . Esse policial saiu, foi acionar o rádio e levou a carteira do Luiz Paulo com ele, os outros ficaram nas mesmas posições, alertas...os dedos coçando, eu soava frio e mentalmente rogava:
  Valha-me São Jorge.
  . Por incrível que pareça, essa não foi uma cena de racismo...dois pretos num carro importado e coisa e tal, não foi isso, apesar de, nesse tempo a corporação ser totalmente constituída de policiais racistas, afinal estávamos em 1979, "pouco preto na TV" e tudo mais.
  O que aconteceu de fato foi:
  Nessa época, o bandido mais procurado pela polícia era um tal de Chêpa, assaltante de bancos famoso, que fugia da polícia na base de tiros e já virava herói do povo...pra nosso azar, o Luiz Paulo(aos olhos dos policiais) era a imagem do bandidão.
  Depois que o tenente voltou com o esclarecimento, mandou que os caras nos liberassem, fixei os olhos no único policial que havia permanecido calmo, o motorista, ele media uns 2 metros e portava uma medalha de São Jorge, lentamente desengatilhou a escopeta e se encaminhou na nossa direção e, disse rindo:
  _Menino, você é a cara do meu filho. E, foi-se sorrindo. Isso me desconcertou, fiquei quieto, mas pensei:
  Que coisa louca, um instante atrás, um homem esteve prestes a fuzilar um menino que é a cara do filho dele, Deus me livre, de uma profissão dessas.
  Fomos fazer o serviço da igreja, conversamos calmos e, ainda sem acreditar em tudo aquilo, não conseguíamos rir dos fatos, o Luiz Paulo disse que foi muito azar.
  _Azar ou sorte, tudo depende do ponto de vista. Disse eu.
  _. Como assim??_perguntou o meu amigo.
  _. Você já se esqueceu que era eu que dirigia o carro, quando fomos abordados??
  Ele tomou um susto e voltou a sorrir, terminamos o serviço e saímos, íamos abastecer o combustível do carro, e, por si só, isso já seria uma ótima história, para se contar...
  Na altura do Rancho da Pamonha, havia um posto, quando nos aproximávamos desse posto de gasolina, ele encostou o carro e trocamos de lugar, disse que era para gastar mais um pouco da sorte.
  Manobrei e entrei no estacionamento, tudo com perfeição, quando parei o carro, pelo fato da maçaneta da porta de trás estar com defeito, tive que abri-la, para fazer uma piada de chofer, conforme eu abria a porta, fiz uma mesura, como se abrisse a porta para rainha da Inglaterra, nesse momento, uma mulher muito branca e gorda saía da loja de conveniências, portava uns sacos de compras, ao ver o Luiz Paulo sair do carro, em seu agasalho reluzente, estatelou os olhos e ficou sem fala, de tanto espanto.
  Ai meu São Jorge, ia começar tudo de novo, quase que o Luiz Paulo volta para o carro, dessa vez iríamos correr muito.
  A senhora se recuperou e gritou bem alto:
  _JOÃO DO PULO?
  E caminhou em nossa direção, o Luiz Paulo, tomado ainda pelo susto, não falou nada, ela o abraçou e beijou-lhe nas faces, antes que o Luiz Paulo tivesse chance de se recompor e pôr tudo a perder, puxei-o dos braços da senhora e disse:
  _. Minha senhora, deixe o João em paz.
  O Luiz Paulo entendeu a situação, sorriu e fez um gesto de calma para mim, eu soltei a senhora, que agora agarrava ele, nessa altura, outras mulheres e homens saiam da loja, os frentistas se juntaram à pequena multidão.
  Todos pediam autógrafos, o dono do restaurante pediu que entrássemos no seu estabelecimento, por conta da casa, na hora da sobremesa, ele pediu que um funcionário tirasse fotos dele... ao lado do João do Pulo.
  A vida é assim mesmo...pela manhã você é confundido com um bandido, à tarde você vira herói.

domingo, 18 de junho de 2017

A cobra da estrada



   A copa de 1978, aquela que fomos garfados pela Argentina, assistimos na sala do pavilhão 14, aquele ano fez muito frio, o chão quadriculado de marrom e bege deixou marcas em nossos traseiros. Os jogos foram disputados à noite, então corríamos da escola para chegar em tempo de não perder um minuto de jogo, lembro que o Mathiole e o Dalcides discutiram no recreio e chegaram mesmo a ficar beiço a beiço, numa atitude de vias de fato, o padre Paulo chegou e separou-os, agarrado pela turma do deixa disso, o Dalcides gritou em tom ameaçador:
  _8 e 15.
  Isso, equivalia à uma marcação de briga na hora da saída, posto que, o fim do horário das aulas se dava nesse exato horário, nos corredores começou o alarido, conversas e expectativas por conta da tal briga.
  O grande problema é que... era quinta-feira, logo mais o Brasil iria enfrentar a Áustria.
  É lógico que, quando o sinal das 08h15min bateu, todos correram, para os seus pavilhões e, nem se deram conta da briga marcada.
  O fato é que o Dalcides e o Mathiole nunca brigaram e ninguém mais tocou nesse assunto.
  Ruim mesmo, era ser criança e ter que aguentar, durante o jogo, as sandices do Seu Odilon.
  Na cabeça dele, a culpa toda foi do goleiro Leão.
  Quando o guarda metas da seleção fazia uma defesa, ele gritava:
    _Esse Lião é muito macho.
  Quando ele tomava gols, o grito era outro:
    _Esse Lião é um méida.
    A culpa mesmo eu colocava no Claudio Coutinho, o técnico, que bateu o pé e não levou o Falcão.
  Nos dias seguintes tinha uma narrativa diferenciada do jogo, ela era feita pelo Lucídio, um neguinho que gostava de contar histórias e interpretar aventuras, usava uns sapatos de bico fino e calças pula brejo, sua figura lembrava o personagem do Al Jolson no filme "O cantor de Jazz", com uma diferença, o ator se pintava e o Lucídio era daquela cor mesmo.
  Sempre que o neguinho se apresentava todo mundo parava, ele fazia vozes diferentes, quatro ou cinco vozes, que conversavam entre si... um show mesmo, ele jurava que iria trabalhar na televisão.
  O preferido de todos era o Carlitos do Chaplin, fazia isso com propriedade e por força do hábito e, devido à um problema físico, andava sempre com elas fechadas e quase não conseguia dobra-las.
  Por conta disso, não podia ser utilizado no eito, não dava conta de carpir por muito tempo e, como esse era o castigo predileto do Seu Odilon, ele se vingou.
  Para indignação de todos, foi mandado a trabalhar na olaria, onde eu trabalhava, todos os menores do pavilhão14 me pediram para tomar conta dele, alguns me ameaçaram, se não o fizesse.
  Fui junto a ele no primeiro dia, demos a volta na horta do japonês, já que, o declive da descida do campo do 14 era muito acentuado para ele, isso aumentava o meu percurso uns 800 metros, fui pelo caminho preparado para brigar, se alguém se metesse a besta.
 Mas qual, a simpatia do neguinho era fatal, em alguns minutos, já havia feito o que eu demorei umas semanas e, já o seu público havia aumento, na hora do descanso ele já mostrava a sua arte.
  Na volta, eu tinha que andar no passo curto dele, passávamos um descampado que levava ao lago, a mata à esquerda e o canavial do 11 à direita, seguia-se um pequeno pântano e chegava-se ao lago da horta e uma bifurcação, à direita vinha o campo do 14, bem em frente à mata.
 Corria entre os meninos, a lenda de uma cobra gigante que andava por aquelas paradas, dificilmente um guri não sentia arrepios, chegando à essa bifurcação.

 Em dias de chuva, devido à lama que se formava na estrada, o neguinho não conseguia subir o barranco da horta e, eu tinha que empurrá-lo morro acima.
  A cena era muito engraçada, toda aquela lama, eu com os chinelos nas mãos, escorregando e empurrando o Lucídio ladeira acima, eu gritando para ele colaborar e, ele se acabando de rir.
 Quase sempre, ficavam uns gaiatos do outro lado do campo, no barranco do mandiocal, eles sempre assistiam a cena e chamavam os outros meninos para assistir, quando chegávamos no pavilhão, estávamos cobertos de lama vermelha.
  Por essa época, o Roda estava com o habito de caçar cobras, para vender ao Instituto Butantã, eu fui à umas expedições que ele fazia na mata e, até inventei um cabo no bambu oco que prendia a cabeça da cobra, mantendo-a longe.

 Um dia, na saída, quando já íamos entrar na curva da horta, ouvimos um barulho na vegetação, voltamos e avistamos uma cobra enorme que media uns bons 12 metros, o Lucídio tremia de medo, eu estava fascinado, nunca imaginei ver uma daquele tamanho, se afastava lentamente na direção do lago.
  Resolvi que ia segui-la, para saber onde era o seu esconderijo, mais tarde eu chamaria o Roda.
  O neguinho ali parado, eu disse:
  _. Fique aqui mesmo, que eu já volto.
  E me apressei à bruta que, já estava longe... muito lenta, se encaminhou e quase desapareceu nas touceiras, sem fazer barulho continuei na espreita, na parte sombreada do lago havia uma enorme seringueira, embaixo da arvore, um buraco onde ela entrou muito devagar, quando metade do corpo dela havia passado, escutei uma correria atrás de mim, eram os amigos Edson, Téquinha, Spock, Adilson e Viana, vinham gritando e ao avistar metade da cobra silenciaram, ficamos os seis olhando.
  Ao final da cena, o Viana me deu uma piaba:
    _. Está maluco moleque?
  Voltamos para o caminho, imaginei que o Lucídio devia estar em pânico..., mas, espera aí...disse eu.
    _. Como foi, que vocês chegaram tão rápido?
  _O Lucídio chegou correndo, dizendo que você estava em perigo.... Não terminou a frase, desatou a rir, eu e os outros membros do sexteto caímos no mato de tanto rir.
O Lucídio, que não conseguia andar direito, acabara de quebrar a barreira do som.

sábado, 17 de junho de 2017

O lago




  É possível que as maiores mudanças que o Educandário Dom Duarte sofreu, foi durante a minha estada por lá, então vejamos:
  A fanfarra foi desfeita, o Grêmio se acabou, a colchoaria, a olaria e a cozinha central deram seus últimos passos, o lar 11 deixou de ser um pavilhão pra se tornar um asilo, a mata de trás da olaria e a horta do Japonês já não eram mais territórios do Educandário, conforme eu crescia, meus caminhos iam diminuindo, além dos amigos, os funcionários amigos estavam indo embora, aos poucos, o Educa foi perdendo o brilho da minha infância.
  Quando me fui, ainda que morasse no mesmo bairro, me recusava a transpor a portaria, não queria ver a casa da minha infância virar uma lembrança triste.
  Esse tempo durou até os meus filhos completarem a idade escolar, matriculei-os no grupo e, vi que meus medos não tinham fundamentos, o Educa havia melhorado, no tocante à educação, aproveitei e matriculei-os na Ozem, onde encontrei pessoas boas, educadores na melhor acepção da palavra.
  Meus meninos, feito eu, passaram a ter o Educa, nas melhores lembranças da infância.
  Sempre que eu estava de folga, fazia questão de levá-los ao prédio da Ozem, a tarde voltava pra buscá-los.
  Num belo dia, cheguei muito mais cedo e não queria ficar sentado na escada que dava caminho da cozinha para o Ozem, voltei pra perto do grupo escolar e me sentei na guia, de frente para o bambuzal, onde, em dias de aula, eu me sentava com os meus amigos, na parte de fora da guia precipita uma leve descida, que terminava no lago... esse lago não existe mais.
  Sentado ali, voltei mentalmente para aquele tempo, em que ali, existia um lago e, era um lago sem nome, dezena de árvores o circundava e isso dava uma sombra permanente, em horário de recreio, alguns casais corriam pra lá, debaixo da generosa sombra, se acariciavam e trocavam palavras de amor, mas logo vinha o padre Paulo ou o irmão Lacídes para expulsá-los de lá.
  Parecia uma água parada, as pequenas frutinhas e os galhos podres que caíam, as margens barrentas, davam a impressão de ausência de vida, nunca vi alguém pescando por ali, achava mesmo que naquela água rasa não haviam peixes.
  Por ser facilmente avistado da casa do Domingão, ninguém se arriscava a ficar muito tempo por ali, quase ninguém parava, era só passagem mesmo.
  Não tinha nome e, é provável que ninguém tenha feito uma foto dele, porém, todo mundo há de se lembrar de quando soldados do COI o atravessaram de moto, numa corda esticada nas arvores.
  E, para meu azar, essa foi uma mudança que eu tive que presenciar.
  Em 1982, reinava o clima de liberdade no Educa, os carrascos já haviam saído e os novos ares prometiam mudanças, marcamos um contra e misturados com os caras do 13, fomos enfrentar a rapa, ao passar pelo caminho da piscina, percebemos que o seu Paulo vinha com o trator na estradinha do lago, o Paulo tratorista era mais uma daquelas pessoas que ficaram na memória do menino que eu fui, mancava da perna direita por ter sido vítima de paralisia infantil e tinha um humor de cão, perguntamos o que ele ia fazer, ele disse que cavaria uma valeta e a água escorreria para contenção do campo, depois traria terra e taparia o buraco vazio, tudo rapidinho.
  Os meninos disseram que iam ficar para ver o serviço, eu disse que não ia ver, aquilo iria ferir a minha memória, deixar de jogar bola para ver um buraco sendo cavado? Sartei de banda.
  . Desci para o campo e me preparei para o jogo e, dava para ver o seu Paulo cavando a valeta, quando ele terminou a valeta, uma quantidade enorme de água inundou a contenção, aquela onde escoa a água da bica, e gradativamente foi se esvaindo.
  _. Pronto, já era o lago. Disse eu.
  Nesse mesmo momento, o Adailton do 20 gritou:
  _Peixe, peixe, muito peixe.
  Corremos e subimos o barranco, o lago estava seco, uma enorme poça de lama e os peixes se debatendo, dezenas de centenas de peixes, todos enormes.
  Em desespero, o seu Paulo gritou para que alguém corresse à cozinha e chamasse a dona Mercedes.
  Enormes panelas foram levadas para a cozinha central, devem ter ficado uma delícia, eu digo isso porque fiquei uns 3 dias sem comer na cozinha central, eu e a minha turma comemos peixe até de óculos.