segunda-feira, 26 de junho de 2017

O primeiro texto



  
  Sou ajustador mecânico, formado pelo SENAI do Educandário Dom Duarte, de 32 alunos na turma do professor Gregoruth, depois de seis meses de teoria, só eu completei o curso.
  Quando comecei a trabalhar, gostei mesmo de ser office boy, levei uns quatro anos na função e o diploma amarelou num canto.
  É da natureza humana, amadurecer, eu fiquei adulto e, sendo assim, já pai de uma menina, passei a procurar emprego nessa profissão.
  Passando por uma metalúrgica na rodovia Raposo Tavares, vi uma placa:
  Precisa-se de torneiro mecânico e porteiro.
  Resolvi me arriscar, nunca havia trabalhado nisso, mas o diploma me qualificava e, conhecimento da área eu tinha, não custava tentar.
  Da minha casa até a empresa não era muito longe, só que naquele dia houve um acidente na Raposo e o transito não andou, tive que descer na Vila Borges e seguir uns bons quilômetros a pé.
  Minha intenção era ter chegado às 6:00, com o infortúnio, cheguei às 7:30 horas e cansado, ao me ver, o porteiro supôs que, pela minha aparência, eu estivesse ali pela vaga de ajustador e disse:
  _A vaga de ajustador já foi preenchida.
  Assim que ele me informou, umas sessenta pessoas saíram da fila, todos os jovens, ficaram só os que aparentavam mais de trinta anos.
  Segundos de reflexões, minha natureza de ser não aceita portas na cara, acordar cedo, andar muito e voltar para casa sem ter feito sequer a ficha, não estava certo...em segundo tomei a decisão:
  _. Não, eu vim pela vaga de porteiro.
  O homem da portaria se espantou, as pessoas na fila se espantaram e, não sem justificativa, apesar de eu ter 19, aparentava uns 16 anos de idade, entre no fim da fila.
  Enquanto esperava a hora de entrar para me qualificar, passei os olhos no titular da vaga e, cheguei à conclusão de que o que ele fazia, eu faria tranquilamente, na verdade, aquilo é que era ganhar dinheiro na moleza.
  A sala de entrevista parecia uma sala de aulas, uma lousa e várias cadeiras com acento de braços acoplados, a moça que ministrava a ação era uma consultora de recursos humanos contratada e, usava um guarda pó, feito uma professora de primário.
  Ela distribuiu uma ficha de cadastro para todos os alunos, digo, todos os pretendentes à vaga,
Números dos documentos, séries, datas, escolaridade e antigos empregos, tudo como manda o figurino...na metade da página traseira, um espaço para uma redação e, essa tinha que, obrigatoriamente, conter mais de trinta linhas.
  Bom, todos terminamos juntos a parte de preenchimento dos documentos e, percebi que todos pararam e passaram a coçar as cabeças, ainda que o tema fosse livre, todos se perguntavam qual a necessidade de um porteiro ser bom de redação, será que para anotar uma placa de carro, precisava ser formado em letras???
  Gosto de escrever e, imaginando que jamais me qualificaria para a vaga, lancei o lápis como quem brinca de escrever, a redação era uma revolta com o transito que peguei, o atraso, a demora na fila e a indignação de ter que escrever para satisfazer uma moça com óculos de gatinho, as trinta linhas foram poucas, tive a pachorra de pedir mais uma folha para a moça, usei toda ela e, a entreguei rindo.
  Quando sai da empresa, o transito continuava a mesma coisa, parti os quilômetros até a minha casa achando-me o cara mais azarado do mundo.
  Quando cheguei em casa, já haviam ligado para lá, a vaga era minha, era para eu levar os documentos no dia seguinte.
  Acaba que foi uma parte memorável da minha vida, esse tempo de porteiro, antes da constituição de 1988, pagava-se razoavelmente bem.
  Bom, qualificado e devidamente empossado, a moça do recurso humano me chamou em sua classe...digo sala.
  _. Queria te propor um negócio, Nilton. Disse isso e já jogou em cima da mesa, a pacoteira.
  Peguei o maço de notas amarrado com um elástico e contei, sem saber do que se tratava, haviam três meses do meu salário...sem descontos.
  Estou comprando aquela sua redação.

domingo, 25 de junho de 2017

O seu Felipe



  . Se aquela imagem da portaria, que virou até tela de quadro, nos identifica e nos leva a ter boas lembranças da infância, a lembrança do porteiro, nos dá a mesma satisfação.
  O seu Felipe se esforçava para ser um profissional linha dura, daqueles que cumprem tudo à risca, fora do seu horário de trabalho era bonachão e, ao lado do seu Bernardo, jogava truco valendo dinheiro e frequentava casas de má reputação no bairro Pinheiros e na Boca do Lixo.
  Quem o via na portaria, nem imaginava que era um homem, para usar um termo atual, descolado.
  Era são paulino doente, para ele, o pior de todos os bandidos do mundo se chamava Vicente Matheus.
  _Por que, seu Felipe?
  _Estava tudo certinho, o Sócrates já estava comprado e, vai o bandido na calada noite e.…
  Eu me acabava de rir daquele careca ridículo, que como eu disse em outra postagem..."Me viu entrar criança e sair adulto feito".
  Mas, nem sempre foi assim, a consideração minha para com o porteiro.
  Ás vezes, eu ganhava uns trocadinhos e queria gastá-los, comprar umas guloseimas no Mercado Paraná ou no bar do Brás.
  Via de regra, saíamos pela casinha de força, se saíssemos pela portaria, seríamos barrados e o seu Felipe diria:
  _Menor, só sai com um bilhete da administração.
  Essa era a ordem que ele tinha que cumprir, independente da nossa indignação.
  Uma tarde, estávamos eu, o Viana e o Chumbinho, depois de uma rebatida no campão, resolvemos que, à pulso, sairíamos pela portaria, gostasse o seu Felipe ou não.
  Ficamos na escadinha, perto do mastro da bandeira e, assim que um carro ficou em frente do grande portão, nos levantamos.
   Preparados na estrada de paralelepípedos esperamos com calma, o porteiro abriu as duas partes do portão, com uma prancheta na mão, passou a fazer perguntas para o motorista, nesse instante passamos correndo e ganhamos a rua, para voltar, usamos a casinha de força.
  Claro que a ousadia nos custaria caro, o seu Felipe iria contar na administração, ficamos preparados para o pior... entre a mão pesada do Domingão e os beliscões na barriga, que o Augustão daria e até, o castigo no corredor, a escolha era difícil.
  Estranhamente, passaram-se uns dias e nada aconteceu, curiosos, fomos à pensão no período da tarde e, ele estava jogando com o seu Bernardo.
  Perguntamos o motivo de ele não nos ter denunciado.
  _Para que? Vocês iriam apanhar ficar de castigo... tudo repetido.
  . Falou conosco sem tirar o olho do adversário, depois, com calma disse:
  _. Fiquem aí que, depois que eu rapelar esse marreco, vou ensiná-los a jogar dominó.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

O Jordão.



 
 Toda a minha vida, para cada momento, tem uma canção para se lembrar, minha memória funciona como se a música fosse a bateria.
   Poucos dias depois da inauguração da cozinha central, estávamos de bobeira, do lado de fora do refeitório e cantávamos.
  A comida não era mais feita no pavilhão 23 e o chefe era o Ivo.
  Nós, eu, o Chumbinho, o Téquinha e o Viana, estávamos em horário de descanso, já havíamos servido o almoço e lavado as bandejas da refeição.
  Tínhamos o habito de cantar como se fossemos um coral, os quatro juntos, éramos todos jogadores do infanto-juvenil e, por conta disso, eu estimo que eu estava com uns 12 anos, os outros tinham um ano a mais que eu.... Se não me falha a memória, nesse dia, era Fagner que cantávamos...
  Ai, coração alado desfolharei meus olhos nesse escuro véu.

  Ainda cantando, pudemos observar que o Jordão descia a rampa do pavilhão 15, vinha em nossa direção, com ares de quem ia nos mostrar uma coisa surreal.
  Carregava no ombro direito um grande rádio portátil (aquele dos anos 80) ao aproximar-se de nós, tirou do deck uma fita cassete branca... Clube da esquina 2, e ria, um riso desafiador que nos incomodou.
  O Jordão era mais velho, tinha uns 16 anos, cantava num coral profissional e, ainda fazia teatro.
  . Batia a fita no peito e ria.
  -Vocês acham que isso é música?
  -E o que é que você tem aí? Perguntei-lhe, já constrangido.
  -Milton Nascimento.
  -Ah, já conhecemos Milton-disse o Téquinha – E, nem é tudo isso.

  O Jordão era um negro alto e magro, com sua cabeleira Black Power ele ficava bem mais alto, pôs a fita no deck, sem ainda o fechar, colocou com zelo o rádio no chão e passou a bater no cabelo, como quem os arredonda.
  _Crianças inocentes... sentem-se e prestem atenção.
  Sentamo-nos e, ele fechou o compartimento da fita, em seguida apertou o botão de ligar e foi bobinando até chegar a faixa desejada.
  De repente, a música tirou-nos do chão, era como se levássemos, ao mesmo tempo, um soco no estomago.
  O que era aquilo?...Que som era aquele?...Que letra agressiva.
  Que tipo de poesia era essa??? E, o Milton Nascimento cantava em duas vozes???
  Ele ainda tocou a música duas vezes mais e, foi-se embora.
  . Ficamos ali, por algum tempo atônitos.
  Desse dia em diante, o Jordão virou nosso GURÚ.