Tem uns amigos que você vai lembrar para o resto da vida, alguns, você se
lembra do começo de tudo, quando ainda nem havia o que se lembrar e, o amigo já
estava lá, tem aqueles amigos que você simpatizou à primeira vista e tem
aquelas amizades que começaram com a antipatia gratuita, depois de muita
brigas, veio a paz e, aos poucos... a amizade.
O Zé Almir foi esse última opção, ele era uns dois anos mais velho que
eu, tenho lembranças de a gente brigando e da gente correndo juntos, para não
apanhar da torcida do Palmeiras, na saída do Morumbi.
Nas muitas aventuras
no Educandário Dom Duarte, as turmas dos pavilhões se juntavam, nós, do 14,
juntávamos aos caras do 12 e saíamos de rolê, o Zé era do 12, ele era feito eu,
sempre relegado ao papel secundário.
O Zé, era o melhor amigo do Valdevino e eu, era unha e carne com o
Viana, nós quatro colecionávamos gibis...O Valdevino possuía um baú com
centenas de revistas do Téx e mais centenas do Fantasma, o Viana era
proprietário de uns 200 exemplares de Os Vingadores, entre os Marvel do Zé
Almir, haviam uns raros, entre eles, a primeira aparição do Falcão Negro e a
minha coleção do Homem Aranha chegava fácil à uns trezentos gibis.
Todos, éramos fanáticos pelos mineiros do Clube da Esquina e, quando nos
juntávamos a outros meninos, editávamos a nossa versão do futebol profissional,
saíamos pela área do Educa e desafiávamos outros times, quem vencesse, levava
umas garrafas de Tubaína.
Por essa época, o capitão Pazzeli montou uma equipe poliesportiva que, além
de jogar o futsal, também praticava o Handebol, o Basquete e as provas
olímpicas, tudo isso com apenas 12 atletas, isso fez com que nós, não
desapartássemos por nada, ou quase nada.
Dessa turma, o que primeiro conheceu a glória de se enamorar, foi ele, o
Zé...e não foi com qualquer uma, foi a Elzamar, simplesmente a menina mais
bonita da escola.
10, entre 10 alunos do grupo escolar suspiravam por ela, sua pele
trigueira, os cabelos de um negro que brilhava de tão escuro, os lábios
carnudos, os olhos d'um castanho irreal e, principalmente o andar
suave...muitas vezes, no pátio, aquelas rodinhas de amigos que se formam para
falar dos mais variados assuntos eram desfeitas, para ela passar e, vinha o
silêncio, quando ela andava, jogava no ar o odor de jasmim, truta, era como se
o mundo parasse, só quando ela já estava longe, as rodinhas voltavam a se
formar e o alarido continuava.
É claro que,
começamos a olhar o Zé com a má vontade de quem perde um duelo e, passamos a
fazer piadas sobre o casal, tachamos o romance de "A bela e a fera".
Coincidentemente, encenávamos uma peça de Shakespeare, (nem sei qual
delas) eu, de mocinho, de meia calça e espada, a mocinha em meus braços, o
diretor Sergio mandou e, eu beijei a Elzamar, muito mais tempo do que a cena
pedia, depois que gritaram
_CORTA, eu a
encostei na parede de cenário e a beijei, como se não houvesse amanhã.
Nessa hora, eu não lembrei do amigo, do compromisso dela e... ela
continuou a cena, quando nos soltamos, notei, pelo avermelhado de sua face, que
havia feito besteira, não me pesou a consciência, não mesmo...aquele foi o
primeiro beijo da minha vida.
Instantes depois, coisas de 10 minutos, o Zé me barrou na fila do
refeitório, muito revoltado, exigia uma explicação, para tamanha canalhice, eu
não queria brigar, disse que exageraram a coisa toda, foi somente duas pessoas
interpretando um beijo, só um beijo técnico.
_Como o amigo pode acreditar que eu, não lhe tenha a consideração????
O capitão Pazzeli não era muito alto, era um militar que
gostava de mostrar a sua autoridade, gritava o tempo todo, estando certo...ele
gritava, estando errado também. Ele gritava:
_Democracia???estou cagando e andando para essa tal de democracia.
. Um dia, pedi um aparte e disse, que se fosse possível, ele parasse de
me chamar de Niltinho.
_. Olha aqui, pivetinho, até a hora que você merecer, vai ser chamado no
diminutivo e, aproveitando que você está ousado hoje, cai no chão e paga 50 flexões.
E, ainda que fosse ele assim, tão autoritário e arrogante, era o
professor mais querido que já tivemos.
Para falar a
verdade, foi nele que eu me inspirei, quando me tornei professor.
Em 1981, fomos disputar uma Olimpíadas entre algumas escolas estaduais,
no município de Ribeirão Pires, como eu disse, nosso plantel era composto dos
melhores atletas do Educa mais eu, que só fazia parte da equipe, por ser um
excelente auxiliar técnico, de quebra, fazia o salto em distância, corria os
400 metros, pegava no gol do handebol e entrava na quadra para bater as faltas
e os pênaltis(entrava, fazia os gols e voltava para o banco) com 12 anos eu já
estava fazendo estágio, na minha profissão futura.
Quando descemos no estádio da cidade, o professor declarou que queria
bater o recorde do ano anterior, que havia sido de 19 medalhas.
No handebol e no
Basquete foi como tirar doce da boca de criança, no futsal levamos a de ouro,
mas foi tão dura a disputa, que a maioria dos atletas mal tinham folego para
disputar as provas individuais.
. No salto em distância, apareceu um guri que media o dobro da minha
altura e, ao invés de espinhas na cara, tinha barba, o pior salto dele foi a
minha melhor marca, e isso me rendeu a prata, mas peguei o ouro nos 400.
Os meninos, que haviam
dado tudo no futsal, sentiam as dores, o Valdevino, que fazia 100 em 10
segundos, levou a medalha de ouro, mas, acabou com um estiramento dos nervos, a
essa altura, havíamos arrecadado 18 medalhas, parecia que o sonho do capitão
havia ido para o brejo.
Anunciaram no alto-falante, a última prova, 800 metros, num dia feliz,
essa prova seria dividida pelo Zé Almir e o Valdevino, seriam duas medalhas
certas, o professor pediu tempo para os organizadores, foi falar em particular
com eles e os outros professores, olhei para os nossos atletas, o Valdevino
jazia na arquibancada, sem qualquer condição física, o Zé estava em pé,
mas, os 200 metros o havia deixado sem folego nenhum.
Depois de um tempo, voltou o capitão Pazzeli a sorrir, me
chamou de canto e disse:
_O Valdevino está fora, você está substituindo ele.
_Professor...
_. Você vai ser o coelho, fica emparelhado com todo mundo, na marca dos
400, dispara em velocidade, isso vai forçar todos, você sai e o Zé ganha a
corrida.
_Professor...
_. Isso é uma ordem.
_Professssor...
Pôs a mão direita em
meu ombro e segredou:
_O Zé está só o pó da rabiola, você vai ter que, quando disparar, dizer
alguma coisa, que faça ele esquecer a dor.
_Professor...
_Sua missão...NILTINHO.
Eu já estava me aquecendo na linha, o Zé chegou na raia dele, se
arrastava, parecia um corpo sem alma, fiquei pensando o que eu faria para o
morto ressuscitar.
O tiro ecoou, partimos, nos 800 não existe arrancada, nesse instante
percebi que todos estavam exaustos, não só o Zé, o ritmo da corrida era muito
mais lento que se podia imaginar, avançamos 100, velocidade mínima, 200 e 300,
ouvimos o retardatário cair, alguém chegou no seu último esforço e tombou,
agora éramos apenas 7, me preparei para o sprint, os 400 já chegavam, olhei para
o lado esquerdo, a careta de dor do Zé me dizia que ele ia se entregar, a marca
se aproximava, chamei o Zé :
_Zé...a boca dela é muito macia.
_Que é, moleque ???
Pisei na marca dos 400 metros, disparei e gritei:
_A boca da Elzamar, seu trouxa.
No meio daqueles guris de pernas longas eu acelerava, como se fosse um
fundista, nos 600, quando eu ia parar, ouvi a voz do Zé:
_Filho da puta.
Ele não tinha
intenção nenhuma de me ultrapassar, acelerei, tinha medo que ele me derrubasse
naquela pista cheia de pedrinhas, na velocidade que eu ia, a coisa ia ficar
feia.
700 e o Zé no meu encalço, dava para ouvir ele bufando nas minhas
costas, o pior é que ele gritava palavrões, acelerei mais ainda.
Ninguém entendeu nada, quando pisei na marca de chegada, continuei a
corrida, até o estacionamento e o Zé atrás, subi numa arvore, o professor
chegou e explicou que era tudo mentira, tudo fazia parte do seu plano, quando
desci da arvore, o capitão me levantou e me jogou nos ombros, rumo ao pódio.
_Vamos lá NILTÃO, buscar nossas medalhas.