quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Um tempo tenebroso.


Em 1975, o Brasil foi assolado por um surto de meningite, se no mundo todo, o vírus fora erradicado, no país progressivo que rasgava a Amazônia, prendia e matava inimigos políticos, a doença ganhou corpo, matou pessoas e tomou posse do país, virou epidemia.
Não, não se assuste com o discurso, essa visão veio bem depois, na época eu era apenas um guri que lia os romances da Benedita da rouparia e as revistas da portaria, as notícias alarmantes do rádio e da televisão pouco mudava o rigoroso cotidiano da Casa da Infância do Menino Jesus.
A única medida que podia ser tomada no combate ao vírus foi tomada e então, a dona Augusta foi chamada a defender a vida dos meninos internos.
A dona Augusta era uma senhora negra, dessas que lembrava a figura de descendentes de escravos, usava saias rodadas e um torço cobria os cabelos brancos, chinelos e uma meia grossa completava o figurino, dificilmente um guri que a tenha conhecido, não vá se lembrar da tia Anastácia do Sito do Pica Pau Amarelo ou da Bá, a ama que cuidava da Escrava Isaura.
A função da dona Augusta era consertar as roupas e, ela o fazia na mão mesmo, pouco se via a habilidosa costureira sentada na Singer do século XIX.
Com a ajuda de seus melhores ajudantes, o Hélio e o Sebastião, confeccionou bolsinhas de pano, cada qual levava duas pedrinhas de cânfora, amarradas num grosso cordão, era um colar nos pescoços dos meninos.
Participei dessa empreitada, não como ajudante, pois não tinha habilidade, porém, era bom ouvinte e ela gostava de contar suas histórias, aquele espaço em que ficava a rouparia, fizesse sol ou chovesse, era sempre frio, a dona Augusta vivia com saudades do sol.
Nas filas ou nas salas de aulas, os guris viviam cheirando o colarzinho.
Mesmo que, mais tarde, fosse confirmado que a cânfora não tinha qualquer propriedade eficaz no combate à meningite, sempre compro um potinho de Vic Vaporub, o aroma me lembra a dona Augusta.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Uma aventura na Bertioga.


A Olga era a moça que tomava conta do pátio do Sagrado Coração, rosto suave, cabelos longos e louros, boca pequena e olhos de um castanho quase verde, dona de uma beleza de tirar o fôlego..., porém, se eu quiser ser fiel ao pensamento da criança que eu era em 1973, tenho que retirar toda a descrição que acabei de fazer.
Calma, que me explico já.... Na cabeça de um menino de sete anos, a consideração de beleza é muito relativa, a beleza, obrigatoriamente, tem que ser acompanhada da bondade.
Bondade era uma coisa que a moça não tinha, portanto, no critério dos meninos, a moça não era bonita, era um canhão.
Outra coisa, para essa aventura trocaremos o cenário do prédio da Casa da Infância do Menino Jesus, no emergente bairro do Ipiranga e vamos à bucólica Bertioga, uma praia que, por esse tempo, era o paraíso na terra.
No mês de janeiro a turma reduzida, por conta das férias, descia a Serra do Mar e se alojava numa escola municipal, nas salas, todas as carteiras eram amontoadas num canto e se armavam os beliches de lona, parecidas com as do exército.
Nos quadros, ao lado da lousa, ainda ficavam expostos os trabalhos de sala dos alunos e com as notas, o pátio de recreio virava uma enorme sala e a cantina virava cozinha.
A escola era enorme e murada, no mato crescido da área de lazer, vaga-lumes voavam e a lua chegava bem perto, acima da montanha que ficava ali pertinho.
Meu amigo mais comum era o Fernandinho, sempre, a corda e a caçamba, nessa aventura, o Oscar se juntou à nós.
O Oscar era um guri albino, muito branco na pigmentação e para enxergar bem, tinha que se aproximar muito das coisas, em contraponto, era de nós, o mais esperto, o que tinha maior presença de espírito, para usar um termo atual...o mais descolado.
A turma era tão reduzida que não se usava o critério das divisões de pátios, todo mundo junto, nem todas as moças iam para o passeio e, para nosso azar, depois de um ano aguentando a Olga, ela foi conosco.
Uma coisa que merece nota, em janeiro de 1974, a rede Globo estreou o programa Fantástico, aquela abertura que tinha a Clara Nunes e os Secos e Molhados, assistimos em Bertioga.
Me lembro de ter dito:
_. Ah, que lindo. Logo depois, o trio correu à caça dos vaga-lumes na noite escura.
A praia ficava a menos de 1 quilometro da escola, Bertioga era uma cidade interiorana, à medida que chegávamos mais perto, o barulho do mar aumentava.
As freiras vestiam maiôs e pediam para que, não disséssemos a ninguém que eram freiras, ora, os maiôs eram tão grandes que, era como se elas estivessem vestindo seus hábitos.
Brincando de castelo de areia, eu o Fernandinho e o Oscar percebemos que um jovem aproximou da Olga, o jovem, encantado com a beleza da moça, investiu.
O cara tinha boa presença e a moça se derreteu toda.
_. Por que você está sozinha??
_. Estou cuidando dos meus sobrinhos.
_. Ah, você é um anjo que caiu do céu.
A sobrinhos, ela se referia a nós, dois guris pretos e um albino, aproximou-se do trio e passou a nos acariciar, aquela bandida e, o trouxa caindo como um patinho.
Ainda que ele quisesse, ela não permitiu que fosse beijada, ela olhava disfarçada para o resto dos meninos e as freiras.
Quando as freiras resolveram voltar para a escola, ela se despediu do laranja, digo jovem, pegou na minha mão e fomos todos, numa relativa distância do grupo, quando ela se certificou que já estava longe, soltou a minha mão, o Oscar ria e esfregava as mãos.
Mais tarde, ela deu desculpa que ia num mercado, para que não desse na vista, pediu para levar o trio, para nós tudo bem, era hora do repouso e, junto do jovem Romeu, fomos conhecer o forte de São João, que beleza, nós vimos, a moça não, estava ocupada e com os olhos fechados.
O rapaz tinha uma moto e queria se exibir, deu cavalinho de pau, pulou umas rampas, acelerou e freou.
Agachado, catando conchinhas não percebi a aproximação da moto e fui atropelado.
Atropelado é força de expressão, eu cai e o pneu dianteiro passou em cima do meu braço, nem doeu e nem marca deixou, correram os meninos para me socorrer, o Oscar chegou primeiro e antes que eu me levantasse, ele disse:
_. Não, não levanta não.
Eu ia dizer a ele que não havia acontecido nada, ele me segurou no chão e gritou:
_. Olha aí, quebrou o osso, a madre Marcia não vai gostar nada disso.
O Fernandinho que não era bobo, me ajudou a levantar e já ensaiava um choro, o rapaz estava branco feito uma vela e a moça tremia feito vara verde.
Aí foi que o passeio ficou bom, até de Bugre nas areia eles nos levaram, pela primeira vez na vida, experimentamos o gosto de um bom Sunday.

sábado, 19 de agosto de 2017

O fujão


Alguns meninos viraram lendas por terem conseguido fugir do colégio, os muros altos e a vigilância atenta das pessoas que cuidavam dos internos na Casa da Infância do Menino Jesus, faziam dessa missão, uma missão impossível.
Mentira, a única pessoa que eu soube, que logrou êxito foi o Álvaro, no entanto, nessa narrativa eu cuidarei de outra pessoa, aliás, os dois eram muito amigos, entre eles...a fome e a vontade de comer, senta que lá vem história.
O Chicão fora batizado com o nome de Francisco de Assis, uma homenagem ao santo protetor dos animais, as mães gostam dessas coisas, pensam que estão assegurando, pelo nome, que o rebento será uma pessoa de paz, na maioria das vezes, o tiro sai pela culatra.
Deixa eu interromper a narrativa, só para constar que o batismo do Chicão se deu no mesmo dia que o meu, a minha madrinha foi a doutora Zilda Arns e a dele foi a tia Erotildes da segunda série, desculpe-me e voltemos à história.
Nem de longe, o Chicão tinha um comportamento de santo, ele gostava de ficar pendurado nas rampas, da segunda ele se jogava no jardim, as vezes na quadra, na última de cima, ele também ficava, enfrentava as moças, brigava com os outros meninos...bom, o menino era o cão chupando manga, ao cubo e, sempre que ficava de castigo, dizia que na primeira oportunidade que tivesse, fugiria e se meteria no mundão.
Particularmente, eu gostava muito dele, mas, essa amizade me custava muita manutenção.
Um dia, nós nos brigamos e passamos a não nos falar por um tempo, coisa de uma semana, ao cabo desse tempo, me veio o Chicão e disse:
_Nilton, vamos voltar a conversar???
_. Não.
_. Por que???
_. Tem uma semana que não fico de castigo.
E, de tanto a praga me aborrecer, cruzamos os dedos mindinhos.
Presta atenção para como isso funciona, nossa moça era a Cinira, ela era do pátio do São Miguel, cursávamos a segunda série, portanto, o ano era 1974, morou na jogada???
Mais uma interrupção, vamos de volta lá.
Algumas vezes, a Cinira nos levava a brincar na quadra, era proibido brincar no jardim, subir a rampa e entrar na portaria e vai todo mundo brincar de esconde-esconde.
Alta tarde, todo mundo no pique e, ninguém achava o Chicão, para que a brincadeira pudesse ter continuidade, fazia-se imperativo que todos saíssem à cata do moleque.
Bateram em todos os cantos e, nada do Chicão, a Cinira foi alertada, ela chamou as freiras, todo mundo na busca.
A última pessoa que o havia visto, disse que ele estava perto da porta da lavanderia, essa porta estava destrancada, a porta que dava acesso à garagem também.
Conclusão lógica, o Chicão se escafedeu.
A notícia passou com alegria pelo pensamento dos meninos, o revoltado havia cumprido o que prometia há tempos.
Uma das freiras acabou com a alegria deles, disse que o menino não tinha familiar nenhum em São Paulo, todos os parentes dele moravam no interior.
Ninguém mais comemorou a fuga do amigo, a ideia do Chicão vagando pelas ruas, sem destino, nos entristecia.
Todos tristes, de volta ao pátio, era sexta-feira, dia de lavagem geral.
Quatro meninos eram escalados para lavar os corredores e halls, eu e o Wilson pelo São Miguel, Zé Almir e Vander pelo São Pedro, essa atividade começava às 8 da noite e terminava às 10, 11 ou meia noite.
Era muito divertido, enquanto o resto do colégio dormia, uns poucos felizardos se divertiam e acabavam dormindo tarde, só que essa noite não foi divertido, o pensamento no Chicão estragou tudo.
Depois de terminado o serviço, a Cida Preta nos dava um café reforçado acompanhado de biscoitos generosos, feito pelas vovozinhas da cozinha, que já haviam ido para as suas casas.
A mesa ficava no hall, bem de frente à escada que levava à lavanderia, comíamos e conversávamos sem pressa.
Um arrastar de pés veio daquela escada, todos ficaram atentos, de lá uma voz falou:
_. Caramba, estou morrendo de fome.
O Zé era o mais velho de todos e foi o primeiro que correu, o Chicão apareceu cambaleando.
Ele não havia fugido, havia entrado na rouparia, para se esconder e pegou no sono.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Um choque coletivo.


De vez em quando, os internos eram encarregados de ajudar os funcionários do colégio em suas funções, creio que isso lhes daria noções de responsabilidades para o futuro, então, alguns meninos eram mandados para ajudar na rouparia, na cozinha, na lavanderia e etc.
O Juventino era um, dos dois únicos homens deste ambiente predominantemente feminino, o outro era o seu Paulo motorista.
O Juventino era o herói da molecada, havia até uma musiquinha que falava da barriga dele, de vez em quando, ele se encrespava com a euforia dos meninos e, fingindo estar de mau humor, fazia careta e gritava o seu bordão:
_ô raça ruim.
O xingamento que deveria servir para calar os meninos, tinha o efeito contrário, ele dizia isso com o seu sotaque de baiano do interior, o resultado era gargalhada geral.
A madre Lodir era vietnamita e não falava nem bom dia em português, não sorria a madre, na maioria das vezes ela gritava, ainda que eu não tenha provas disso, já que não sei coisa nenhuma dessa língua, pela cara que ela fazia, parecia xingamento tudo aquilo.
No entanto, a madre Lodir cuidava do jardim com uma dedicação tão grande que chegava a comover, se lhe faltava o trato bom com as crianças, com as plantas, ela compensava, suas botas de sete léguas e o habito não combinavam bem.
O jardim ficava na mesma altura da quadra, o que separava os dois espaços era a rampa que saia da portaria e subia até o hall da cozinha, haviam duas arvores grandes, uma encostada no muro oposto à rampa e outra no meio, mais para esquerda do terreno todo, o resto eram plantas ornamentais ou flores mesmo.
No canto, quatro metros da direção da porta do saguão da portaria, havia uma gruta, com uma linda imagem de Maria ao centro e, se eu disser que sou mariano, vou poupar o leitor de ter que descrever o amor que eu nutria por essa imagem, ela sempre dormia sob uma luz azul.
Bom, nessa tarde, eu estava ajudando a madre Lodir e, para a minha sorte, as ordens dela eram seguidas de mímica, enquanto ela podava umas folhas, eu regava as flores rasteiras, a irmã saiu a procurar uma ferramenta, eu acho.
A certa altura, chegaram o Juventino e seus ajudantes, o Álvaro, o Adilson e o André, tomei o cuidado para não molhar a ninguém, quando passaram por mim e foram até a gruta, ao que parecia, alguns ratos haviam roído os fios que ligavam o bocal da lâmpada azul, o Juventino e os meninos procuravam o tal fio.
A fiação passava, dentro de um conduíte, por baixo da terra, quando a levantaram, puderam ver os fios roídos, sorriram então, o Juventino ordenou que eles se afastassem, enquanto ele ia achar a caixa de força e, ele não fazia menor ideia de onde ela poderia estar, seguiu ele à portaria e nada, talvez estivesse dentro do quartinho de ferramentas, quase em frente ao corredor da lavanderia.
Com a demora do Juventino, o Álvaro, que era muito atentado, resolveu que podia dar jeito e levantou os fios, eu estava a uns dez metros de distância e gritei:
_. Não mexe, pode ser que...
Não terminei a frase, o alemão estava grudado e se retorcendo, bateu o desespero e querendo ajudar o amigo, o Adilson foi em socorro e ficou grudado também, o André que, dos três era o mais besta, se grudou aos outros, sabendo que, como eu estava, teria o mesmo destino, gritei para o Juventino.
O Juventino veio para salvar a pátria, pulou no jardim e ficou também na corrente elétrica, quatro pessoas eletrocutadas e eu, molhado sem poder fazer nada, a única solução era a de gritar por socorro.
Como se fosse um raio, a madre Lodir apareceu com suas botas de sete léguas, armou-se de um cabo de vassoura e, com habilidades de uma ninja, deu no meio dos quatro, a pancada provocou uma explosão e os quatro foram parar em baixo da rampa.
Quando voltaram à razão, os quatro tiveram que ouvir da freira, sem entender uma palavra, que é muito perigoso, esse negócio de eletricidade, eu acho, pois, tudo isso foi dito na língua dela.

A Margarida.


A moça do São José, que já era madura, foi a primeira pessoa que me fez rever os conceitos, toda essa coisa de mocinhos e vilões, bem e mal, enfim...essa papagaiada toda de filosofia e, fazendo isso, tive que admitir que eu não era um guri tão bom assim, vou logo me desculpando disso e usando a desculpa mais esfarrapado do mundo..."eu era criança".
Bom, todo menino que chegava no ano que ia completar os dez anos, passava para a quarta série e saia do pátio do São Pedro para o São José.
Essa praxe era um ritual de crescimento e, como tal, provocava nos internos um certo medo, não pelo ritual em si, efetivamente, se passava das mãos da carinhosa Rúbia para as mãos da Margarida.
A mudança dava calafrios, já contei em postagem passada que, para fugir das chineladas da Cinira, eu e meu amigo Fernandinho, usávamos a tática de correr, bater na parede e voltar, cada qual para um canto, no fim das contas, a pobre se cansava e não acertava nenhuma pancada, ou seja, nádegas ilesas.
A Margarida era o gatilho mais rápido do Oeste, a cada chinelada, havia a garantia total de uma nádega atingida, se o leitor não me acredita, presta atenção nisso:
Num finzinho de tarde, começo de noite, assim que a janta foi servida, a moça foi levar aquele carrinho de ferro de volta à cozinha, nesses poucos minutos de sua ausência, deu-se início à um falatório entre os meninos, que virou discussão e acabou em briga, sabe como é briga né???metade de um lado e metade para um outro, o único que não foi para lado nenhum, foi o Xavier, aquele guri que tinha uma saúde debilitada.
A Margarida entrou no refeitório sem dizer um a, fechou a porta atrás de si, tirou do pé o chinelo que, graças a Deus não era de borracha e, com a habilidade de um pistoleiro do velho oeste, passou a distribuir chineladas, à torto e à direito, trinta meninos era o efetivo de cada pátio, em todos os vinte e nove, ela deu duas chineladas, uma para cada lado da bunda, o Xavier estava sentado e sentado ficou, no fim, ela tirou uma nesga de cabelo dos olhos, soltou o chinelo no chão e o calçou, sem qualquer sinal de que isso a tivesse cansado.
Ah, deixa eu me corrigir, a moça era muito melhor que qualquer pistoleiro...58 chineladas por minutos, que marca incrível.
Não era bela, a Margarida, já passava dos trinta e cinco e pintava os cabelos, as enormes unhas sempre num vermelho chamativo e batom em cor igual, sua voz era meio grossa, cabelos grandes amarrados sempre, suas calças apertadas ao corpo, ajustavam aos seus mais de um metro e oitenta.
Por mais que eu gostasse da Margarida e note que esse gostar, já era um sinal de submissão à força feminina, fui convidado a participar da força tarefa que se vingaria da moça.
Juntaram-se ao bando vingador o Vladimir e o Adilson, que eram os chefes, o Alaor, o Oscar, o Luís Carlos Pezinho, o Silvano, o Fabiano e esse seu criado aqui.
O plano era bem simples, um susto na moça nos vingaria de todo mal que ela nos tivesse impingido, ah...a moça se arrependeria do dia que havia nascido.
A Margarida, por esse tempo, não morava no colégio feito as outras moças, que tinham seus quartos no hall das moças, quando chegava, por volta das duas da tarde, entrava pelo portão da garagem, subindo da lavanderia, dois lances de escadas davam acesso ao hall da cozinha, nos postamos no primeiro lance dessa, das nossas posições uma longa linha de costura se estendia ao chão, na ponta havia uma meia grande e preta de seda, o piso estava devidamente encerado, quando ela abria a porta vidrada de correr e iniciou a caminhada pelo saguão, uma coisa enorme passou na sua frente, parecia uma cobra, não me lembro o que veio primeiro, o grito de horror ou o baque do corpo ao chão, em todo caso, a gangue ria em alto volume.
O problema de planos mirabolantes de criança de dez anos é que eles só têm a primeira parte e, eu gostaria de dizer que essa vingança lavou nossas almas...ah, eu queria mesmo, mas...
Assim que a Margarida se recuperou do susto, se levantou e partiu como um foguete, subimos alguns lances de escadas e ela atrás, paramos na ante sala da clausura, ali era um local de silêncio total, paramos e ficamos encurralados, a Margarida venceu os últimos degraus da escada e parou, pensamos mesmo que ela ia respeitar aquele lugar, em câmara lenta ela pôs o dedo indicador na boca, tirou o chinelo do pé e, numa precisão cirúrgica de dar inveja, deu as chineladas...lépt, lépt, lépt...sem fazer barulho.
Pegamos castigo e, mais tarde, nos deliciamos com o prazer de ver a Margarida mancando no pátio, por uns dias sentávamos de lado, as chineladas podem não ter feito barulho, mas, foram fortes.
O que mais me incomodava com relação à Margarida era o fato de, mesmo eu não gostar muito dela, ela me adorava.
Então, quando eu já estava no E.D.D, na primeira oportunidade de passeio, fui visitar a Casa da Infância do Menino Jesus, ao revê-la, senti uma saudade imensa, um abraço demorado e um beijo, numa das mais importantes pessoas da minha vida.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A visão do mundo.


Em 1976, tudo o que eu entendia por mundo havia se modificado, esse era o meu último ano na Casa da Infância e a angustia de me afastar do meu lar me consumia.
Eu, o Fabiano, o Valdir Lustosa e o Hélio combinamos que, mesmo em pavilhões separados, no Educandário Dom Duarte, jamais deixaríamos de nos encontrar, nossa amizade atravessaria os confins do infinito, essa promessa fora feita no pátio do São José, com toda a pompa que a ocasião merecia.
Ir embora da minha casa, não sendo mais a pessoa que eu havia sido, me tirava o sono...alguma coisa havia me tirado do contato com o menino que eu era em 1969 e, eu não podia atinar o que podia ser.
Quando eu estava no segundo ano de colégio, no pátio do Nossa Senhora, houve um mutirão de extração de amídalas, todos os meninos, com exceção dos mais velhos sofreram a cirurgia.
É lógico que o tratamento consistia em repouso e muita gelatina e sorvete na dieta, para que os pontos se cicatrizassem, a alimentação era ótima, mas o repouso me agoniava.
Subindo na cabeceira da cama, com esforço, se alcançava a janela gigante vidrada e se tinha a visão do mundo, a igreja matriz, um pedaço da avenida Nazareth e um pedaço do pátio do São José, os meninos gritavam e seus gritos nos alcançavam.
Essa era a visão do meu mundo, da minha visão de casa.
Voltei ao presente e estava me trocando para sair com meu padrinho, para passar as festas de fim de ano.
Quando estava já arrumado, fui à janela e lancei um olhar para fora, o prédio da administração me impedia de ver a imagem completa do mundo, talvez fosse essa, a resposta.
Corri e desci a escada, no primeiro andar, entrei no segundo dormitório e ele estava vazio, agora eu não precisava mais subir na cama, encostei o nariz na janela e lá estava a visão do começo, perfeita.
Certo de que o mundo era o mesmo, desci para a portaria, confiante que, o que viesse não me assustaria.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Das histórias tristes


Bem cedo, aprendi que histórias não se separam pela emoção, tristes ou alegres, não importa, são histórias.
Eu não seria verdadeiro, se dissesse que, só vivi de alegrias e, meus amigos eram fidalgos e perfeitos, não daria.
As borboletas e abelhas beliscavam de leve as flores amarelas dos hibiscos que seguia ladeando o campão, no campo de cima, bando de anus gritavam seu canto agoniado e bandos de bico de latas davam rasantes por cima do lago, pequenas frutas caíam dos oitis que circundavam o lago, a força dos ventos faziam os galhos dos bambus se contorcerem, o entrelaçamento deles emitia um som peculiar e tudo era vida.
No ponto de ônibus, do lado oposto da portaria do Educandário Dom Duarte, uma pequena multidão se acotovela, um público formado de meninos internos assistia ao trabalho do gênio.
Indiferente à balburdia que se instalava ao seu lado, o Satírio olha para a tela, instalada num cavalete médio, fecha um dos olhos, compara a imagem do outro lado da calçada e molha o pincel na tinta, fecha o outro olho e, vigorosamente, lança o pincel à tela.
O Satírio não era um gênio do futebol, era muito mais raro que isso então.
Acostumado a fazer desenhos em cadernos com as canetas simples, enquanto voava por outros mundos em sala de aula, chamou a atenção da professora Anésia de educação artística, imediatamente, ela indicou-o ao curso de belas artes e ele voltou assim, genial.
O Satírio era do lar 20, um amigo de conversações e considerações filosóficas, de assuntos espirituais e políticos e até, um piadista de primeira, a mente do amigo fervilhava.
E, correndo o risco de ser indelicado para com os demais amigos, falo com sinceridade, a mente mais brilhante, dentre todos os meus contemporâneos.
Quando andavam, os gênios da bola, feito o Valdevino, o Pelezinho e o Esquerdinha, tinham seguidores, o Satírio tinha os seus, eu nesse meio.
Quando terminou a tela, eram quatro horas da tarde e o retrato da portaria, saiu iluminado pelo sol do meio dia e, se para nós, que olhamos a imagem final, já nos havíamos esquecido do sol, ele estava na tela...imortalizado.
Essa obra prima foi exposta no antigo prédio da Liga das Senhoras Católicas, ainda na rua Jaceguai e, por lá ficou.
A mente do Satírio realmente fervilhava, toda aquela genialidade pulsava de maneira galopante e evolutiva.
Ainda criança, eram assíduos seus ataques de sonambulismos e as depressões, bem como surtos eufóricos e os tais ataques foram evoluindo.
Se ocorressem nos dias de hoje, esses sintomas seriam facilmente diagnosticados, um profissional prescreveria remédios e tratamento e pronto, estaria o amigo curado, vivendo em sociedade.
Mas qual, em 1981, o Satírio teve um violento surto, seguido de uma profunda depressão, uma ambulância foi busca-lo no pavilhão 22 e, nunca mais se teve notícias.
Eu tenho a obrigação de informar, aos que não sabem que, por esse tempo, pessoas que sofriam de distúrbios de qualquer natureza, eram tratados como bichos e amontoados em sanatórios infectos.