domingo, 27 de agosto de 2017

A amizade


Tenho visto, pela vida toda, todo tipo de amizade e ainda não achei uma que fosse tão forte quanto aquelas que começaram na infância.
Raramente, você verá um ex interno da Casa da Infância do Menino Jesus que esteja isolado, tem sempre um vizinho próximo ou eles dividem a mesma casa, essa amizade é tão forte que a vida os fez irmãos.
A esposa do Udiney me contou que até hoje, o marido dela e o Galito se tratam por irmãos e, isso começou na Casa da Infância, existem inúmeros casos assim, eu, por exemplo, quando resolvi sair de São Paulo, não vi sentido em deixar o Biriba sozinho, uma amizade desde os três anos, trouxe ele comigo, até porquê...para os meus filhos ele é o tio Biriba.
O esquema de separação dos pátios contribuiu para que as amizades se perpetuassem, haviam quatro cercas, cada duas turmas brincavam juntas, uma de idade menor e outra mais velha, o menino que subisse na tela do Nossa Senhora, podia ver no último pátio, os meninos mais velhos do São Pedro e São José, não havia contato entre os menores e os maiores, isso trazia a admiração.
Nesse pátio, onde ele estava, ele era o maior, no próximo ano ele passaria para o Anjo da Guarda e no pátio ele seria o menor, pois o dividiria com os mais velhos do João Batista...um ano maior e um ano menor.
Esse esquema evitava o Bwiling e quase não haviam brigas entre os internos, eu disse quase.
Estávamos agora no São José, do alto de nossos dez anos, sabemos que as outras turmas nos admiram, já que somos os mais fortes e inteligentes, para chegarmos até aqui, muita água rolou por baixo dessa ponte.
O Luís Carlos era um guri bem escuro, atarracado e endemoniado que nos acompanhava desde o Menino Jesus, gostava muito de futebol, mas nasceu com um defeito no pé direito, esse pé não tinha dedos e era reduzido, no formato de uma bola, por conta disso, era chamado de Luís Carlos Pezinho, usava uma bota ortopédica com proteção de aço, nada que o impedisse de praticar esportes, por isso ele jogava futebol e.…tome bica na canela.
O Fabiano também pertencia a essa turma desde o berçário, quando estávamos no Sagrado Coração, todos participamos do velório de sua avó, um guri branco com sardas no rosto e temperamento explosivo, o seu cabelo nunca descia, então o apelido era Fabiano Testão, esse não só gostava de futebol, era um craque na verdadeira acepção da palavra.
O que tinham em comum esses dois???
Tirando o amor pela bola, nada, absolutamente nada, qualquer situação era, para eles, um motivo para rivalidade e, isso vinha desde cedo, viviam a discutir por tudo e por nada, muitas vezes foram separados bem na hora fatal.
Eu disse que, eu e o Fernandinho éramos tão amigos que dividíamos os castigos, pois bem, esses dois eram tão inimigos que dividiam os castigos também, esse era o tempo de paz da turma.
Quanto mais se convivia com esses dois, mais se tinha a certeza de que um dia, mais cedo ou mais tarde, eles chegariam às vias de fato.
A vantagem de se ser grande é que, quando a Margarida resolveu passar uma tarde nos jardins do museu do Ipiranga, nem precisou pedir a ajuda das freiras, perguntou quem topava e, macaco come banana???sequer precisávamos dar as mãos para atravessar as ruas, nada como estar no cume, mestres do universo.
Não entramos no museu, o entorno é uma área enorme e, enquanto a moça se refastelou num banco, ficamos brincando relativamente perto, afinal, nada de mais poderia nos acontecer.
Brincamos um pouco na grama e resolvemos subir à parte superior, escadas eram um incômodo para o Luís Carlos, mas, se alguém fizesse menção de ajudá-lo, ele se ofendia.
Vencemos a escada e ficamos a esperar, no corrimão largo haviam uns guris da região, uns cinco ou seis, o levantar e pisar da bota do Luís Carlos produzia um som metálico, esses meninos passaram a reproduzir esse som, em tom de gozação.
O Luís Carlos não levava desaforo e agarrou um deles pelo pescoço, rolaram a escada e se esmurravam, os outros meninos desceram para ajudar o amigo.
O tempo fechou, o Fabiano veio como uma bala e se atracou, pulamos todos e, na minha opinião, uma das melhores brigas que participei na vida, uma beleza mesmo.
Os meninos da área se aproveitaram, quando a Margarida interveio, eles fugiram.
Um senhor, que presenciara tudo, explicou o que realmente houve, não fosse isso, a moça já ia pegando o chinelo, ele aconselhou que fôssemos embora rápido, pois aquela turma era muito maior que aquilo.
No caminho de volta, o Luís Carlos tinha um corte na boca e o Fabiano tinha um dos olhos inchado e, para espanto de todos, andavam abraçados.
Tudo bom, não fosse o assustador silêncio da Margarida, essa felicidade não ia durar, assim que a coisa fosse jogada no ventilador, iríamos ser punidos.
Quando chegamos na porta, na parte de fora da portaria, a Margarida sentenciou:
_. Ninguém fala nada, sobre coisa nenhuma, deixem comigo.
Na versão oficial, antes de sairmos, os dois quebraram o pau, um machucou o outro, a Margarida os corrigiu e fomos todos passear.
Quem ouviu isso, não deixou de dizer:
_Ufa, finalmente eles brigaram.
No dia seguinte, o Fabiano entrou na fila no lugar do Luís Carlos, esse não gostou e começaram outra discussão.
Descobrimos, então, que existem vários tipos de amizade.

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